Dum diversas
Dum Diversas (em português: enquanto diferente) é uma bula papal emitida em 18 de junho de 1452 pelo Papa Nicolau V[1] que concedeu direitos a Portugal para capturar territórios e escravizar populações na África Ocidental. Endereçada ao rei Afonso V de Portugal, a bula atribuiu a Portugal direitos sobre os territórios da África descobertos no início da Era das Navegações e autorizava a reduzir à condição de "escravos perpétuos" os sarracenos, pagãos e demais "inimigos de Cristo" que ali se encontrassem, assim como a usufruir de seus reinos, domínios e bens móveis e imóveis[2]. Considerada por alguns como base religiosa para a prática do comércio de escravos da África Ocidental[3], a Dum Diversas foi seguida por outras bulas, como a Romanus Pontifex, de 5 de janeiro de 1455, que estendeu às nações católicas da Europa domínio sobre todas as terras encontradas na Era dos Descobrimentos, desta forma autorizando as conquistas e a escravização que ocorreriam posteriormente também no Novo Mundo[4] e na Ásia.
Contexto[editar | editar código-fonte]
Reação aos otomanos[editar | editar código-fonte]
No verão de 1452, o sultão otomano Mehmed II concluiu a construção da fortaleza Rumelihisarı no lado ocidental (europeu) do Estreito de Bósforo. Localizada alguns quilômetros ao norte de Constantinopla (atual Istambul, na Turquia), a fortificação dominava a parte mais estreita do canal. Nessas condições, o imperador bizantino Constantino XI escreveu ao Papa Nicolau V para pedir ajuda. O sobrinho de Nicolau V, Loukas Notaras, fora megas doux no Império Bizantino.[5]
Emitida pouco antes da Queda de Constantinopla, a bula é entendida por muitos como uma tentativa de incitar nova cruzada contra o Império Otomano.[6] Não obstante, foi só quando Afonso V de Portugal respondeu ao apelo papal por ajuda que o Nicolau V concordou em apoiar as reivindicações portuguesas por territórios na África.[7]
Dificuldade de reunir forças[editar | editar código-fonte]
No período em questão, o cenário europeu não favorecia um engajamento militar do Ocidente no enfrentamento aos otomanos. Apesar da participação de algumas tropas de cidades-estado do norte da Itália no conflito, Nicolau V não tinha a influência que os bizantinos esperavam na mobilização do apoio dos reis e príncipes europeus. França e Inglaterra estavam enfraquecidos após a Guerra dos Cem Anos e Espanha ainda lutava para expulsar os mouros do sul da Península Ibérica. As contribuições ocidentais à época eram insuficientes para contrapor ao poder otomano no Bósforo.
Exceção portuguesa[editar | editar código-fonte]
Em contraste, Portugal vivia situação comparativamente favorável, após a expulsão dos mouros de seu território em 1249. Durante o reinado de Afonso V, em meados do século XV, a nobreza gozava de prestígio e a Casa de Bragança era rica e influente. As incursões e ataques portugueses ao Marrocos foram então retomados, com o entendimento de que se tratavam de "cruzadas autojustificadas pela religião, pela cavalaria e pela honra" [8]. Nos combates, havia cativos de ambos os lados, que eram resgatados ou vendidos como escravos. Após atacar Ceuta, Afonso V procurou obter reconhecimento papal de que travava uma cruzada e, em 1441, depois de atacar a Mauritânia, buscou novo reconhecimento de se tratar de um "conflito justo" – o que indicaria que os capturados poderiam ser legitimamente vendidos como escravos.[9]
O sentido da bula[editar | editar código-fonte]
Para alguns historiadores, o conjunto de bulas emitidas na sequência da Dum Diversas constitui extensão do legado teológico das cruzadas do papa Urbano II para justificar a colonização europeia e o expansionismo,[6] acomodando « tanto o mercado como os anseios da alma cristã »".[10]
Para garantir exclusividade de direitos comerciais a Portugal, Afonso V apelou a Nicolau V para, com a autoridade moral da Igreja, obter monopólio na exploração do norte da África.[11] A bula Dum Diversas concedeu licença para a conquista de territórios e a escravização de mão-de-obra e era, essencialmente, geograficamente ilimitada na sua aplicação, sendo talvez o ato papal mais importante para a colonização portuguesa.[12] Não obstante, alguns historiadores entendem que seus efeitos práticos eram circunscritos à costa da África Ocidental, única área ocupada por Portugal àquela altura. [13] Há quem avalie, igualmente, que os empreendimentos portugueses buscavam competir com as caravanas muçulmanas transaarianas, que detinham monopólio do comércio de ouro e de marfim na África Ocidental. [14]
Teor normativo[editar | editar código-fonte]
Pela bula Dum Diversas, dirigida ao rei Afonso V de Portugal, o pontífice afirma:
(...) outorgamos por estes documentos presentes, com a nossa Autoridade Apostólica, permissão plena e livre para invadir, buscar, capturar e subjugar sarracenos e pagãos e outros infiéis e inimigos de Cristo onde quer que se encontrem, assim como os seus reinos, ducados, condados, principados, e outros bens [...] e para reduzir as suas pessoas à escravidão perpétua. | (...) nós lhe concedemos, por estes presentes documentos, com nossa Autoridade Apostólica, plena e livre permissão de invadir, buscar, capturar e subjugar os sarracenos e pagãos e quaisquer outros incrédulos e inimigos de Cristo (...). |
No texto é utilizado o termo «sarracenos» (do grego: "sarakenoi"), uma das formas com que os cristãos medievais designavam os árabes e os muçulmanos em geral. As palavras "islão" e "muçulmano" só foram introduzidas nas línguas europeias no século XVII.
Desenvolvimentos posteriores[editar | editar código-fonte]
Em 1456, a Dum Diversas foi reiterada pelo Papa Calisto III, com a bula Etsi cuncti, renovada pelo papa Sisto IV, em 1481, e pelo papa Leão X, em 1514, com a bula Precelse denotionis. O conceito de consignamento de esferas de influência exclusiva de determinados estados-nação foi alargado ao continente americano em 1493 pelo papa Alexandre VI com a bula Inter cætera.[15][6][16][17]
Em 1537, pelo breve apostólico Sublimis Deus,[18] Em 1537 o Papa Paulo III considerou formalmente herética a ideia de que existiam sobre a terra homens sem alma e incapazes de receber a fé cristã. Ao mesmo tempo condenou a redução à escravidão dos índios americanos e ordenou que fossem todos restituídos à liberdade que lhes devolvessem todos os seus bens e possessões. Na mesma altura, considerava aceitável a escravatura em Roma, em 1545, as leis sobre escravatura promulgadas em 1547 por Henrique VIII de Inglaterra e, em 1548, a compra de escravos muçulmanos.[19]
Em 1686, o Santo Ofício limitou a bula ao decretar que os africanos escravizados por guerras injustas deviam ser postos em liberdade.[15]
Dum Diversas, em conjunto com outras bulas como Romanus Pontifex (1455), Ineffabilis et summi (1497), Dudum pro parte (1516) e Aequum reputamus (1534) documentam o ius patronatus português.[20][21] O papa Alexandre VI, natural de Valência, emitiu as chamadas Bulas Alexandrinas que limitavam o poder português em favor de Espanha, sobretudo as bulas Inter cætera e Dudum Siquidem (1493).
Ver também[editar | editar código-fonte]
Referências
- ↑ Paulo de Assunção (2004). Negócios jesuíticos. o cotidiano da administração dos bens divinos. [S.l.]: EdUSP. p. 94. ISBN 8531407990. Consultado em 26 de maio de 2015
- ↑ Davenport, Frances Gardiner (editor) (2004). European Treaties Bearing on the History of the United States and Its Dependencies to 1684. [S.l.]: The Lawbook Exchange Ltd. p. 12
- ↑ Love, David A. (29 de setembro de 2007). «The Color of Law On the Pope, Paternalism and Purifying the Savages». ZNet (Arq. em WayBack Machine)
- ↑ «Dum Diversas». Papal Bull Dum Diversas 18 June, 1452. 23 de julho de 2018 Texto "Doctrine of Discovery" ignorado (ajuda)
- ↑ Eaglestone, C.R. 1878. The siege of Constantinople, 1453. p. 7.
- ↑ a b c Sardar, Ziauddin, and Davies, Merryl Wyn. 2004. The No-Nonsense Guide to Islam. Verso. ISBN 1859844545. p. 94.
- ↑ Ehler, Sidney Z. and Morrall, John B., Church and State Through the Centuries: A Collection of Historic Documents with Commentaries, Biblo & Tannen, 1967 ISBN 9780819601896
- ↑ Payne, Samuel G., A History of Spain and Portugal, Vol.1, Chapt. 10, p.6
- ↑ Metcalf, Alida c., Go-betweens and the Colonization of Brazil: 1500–1600, p. 168, University of Texas Press, 2005 ISBN 9780292712768
- ↑ "both the marketplace and the yearnings of the Christian soul". Hood, Robert Earl. 1994. Begrimed and Black: Christian Traditions on Blacks and Blackness. Fortress Press. ISBN 0800627679. p. 117.
- ↑ Bown, Stephen R., 1494: How a Family Feud in Medieval Spain Divided the World in Half, p. 73, Macmillan, 2012 ISBN 9780312616120
- ↑ Grewe, Wilhelm Georg. 2000. The Epochs of International Law. Walter de Gruyter. ISBN 3110153394. p. 230.
- ↑ Raiswell, Richard. "Nicholas V, Papal Bulls of", The Historical Encyclopedia of World Slavery, Junius P. Rodriguez ed., ABC-CLIO, 1997 ISBN 9780874368857
- ↑ Phipps, William E., Amazing Grace in John Newton, Mercer University Press, 2004 ISBN 9780865548688
- ↑ a b Hayes, Diana. 1998. "Reflections on Slavery." in Curran, Charles E. Change in Official Catholic Moral Teaching.
- ↑ Hart, Jonathan Locke. 2003. Comparing Empires: European colonialism from Portuguese expansion to the Spanish-American War. Palgrave Macmillan. ISBN 1403961883. p. 18.
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- ↑ http://www.papalencyclicals.net/Paul03/p3subli.htm
- ↑ The Catholic Church and Slavery, J. F Maxwell, 1975, Barry-Rose Publishers.
- ↑ Desai, Guarav Gajanany Nair, Supriya. 2005. Postcolonialisms: An Anthology of Cultural Theory and Criticism. Rutgers University Press. ISBN 0813535522. p. 52.
- ↑ Mudimb̂ae, Valentin Yves y Mudimbé, Vumbi Yoka. 1994. The Idea of Africa. Indiana University Press. ISBN 0253208726. p. 31.