Beguina

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Desenho de uma beguina, retirado do livro Des dodes dantz, impresso em Lübeck em 1489

As beguinas, tal como as beatas e as merceeiras, eram mulheres leigas católicas que praticavam uma vida ascética em comum, parecida com a monacal, a maior parte das vezes nos chamados beguinários, na área da atual Bélgica. Após a sua fundação, espalharam-se, tal como aconteceu com os begardos, pelos Países Baixos, Alemanha e França.

As beguinas dedicavam-se ao cuidado dos doentes e dos pobres, assim como às tarefas caritativas e piedosas, sem estar contudo vinculadas a regras de clausura nem a votos públicos.

Num primeiro momento, as beguinas foram toleradas e mesmo encorajadas por serem consideradas um movimento religioso de utilidade para o povo. Contudo, em 1311, o Concílio de Vienne condenou-as por causa do perigo de heresia que representavam. Posteriormente subsistiram sob a forma de asilos para solteironas pobres.

Encontram-se ainda hoje alguns beguinários muito bem conservados em Bruxelas, Antuérpia, Courtrai e Gante (Bélgica), bem como nos Países Baixos.

Etimologia[editar | editar código-fonte]

Duas beguinas do beguinário de Dendermonde

A etimologia do termo Beguina é disputada. Em 1911, a Enciclopédia Britânica concluiu que esta palavra deriva-se de Lambert le Bègue, um padre de Liège que por volta de 1170 pregava o estabelecimento de uma associação de mulheres que se devotassem à vida religiosa sem fazer votos monásticos. Oponentes desta ideia chamavam tais mulheres de "beguinas". A Enciclopédia Britânica nega outras teorias, como a derivação a partir do nome de Begga de Landen, ou a partir de "beggen", uma palavra imaginária do saxão antigo que teria significado "mendigar" (como no inglês to beg) ou "orar", "rezar".[1] A Enciclopédia Católica, por sua vez, ventila a hipótese do nome se derivar de Lambert le Bègue, mas também cogita que pode ter se derivado do flamengo antigo "beghen" (no sentido de "rezar") ou do nome de Santa Begga.[2] Durante o século XX, alguns escritores sugeriram que "beguina" seria derivado de "algibenses".[3] Enciclopédias, quando mencionam esta última explicação, tendem a negá-la.[4]

História[editar | editar código-fonte]

Fotografia de uma beguina no século XIX

No começo do século XII, algumas mulheres solitárias dos Países Baixos dedicavam-se a rezar e a "boas obras" sem, entretanto, tomarem votos monásticos. Estas mulheres viviam na periferia das cidades, ajudando aos pobres. Por volta do começo do século XIII, algumas delas passaram a residir próximas umas das outras, sendo então chamadas de "beguinas" (um termo cujo significado original englobava todas as mulheres devotas.[5]) e formando as comunidades que viriam a ser chamadas de beguinários.[2][6][7]

Rapidamente, beguinários começaram a surgir em vários lugares e influenciar profundamente a religiosidade das pessoas. De uns poucos no início do século XIII, cresceram em número a tal ponto que, pouco antes de 1300, eram raras as comunas nos Países Baixos que não possuíam algum, enquanto cidades maiores contavam duas ou três comunidades de beguinas. Em 1400, também era raro encontrar uma cidade sem beguinário na Alemanha, especialmente na Renânia. Frankfurt possuía 57 beguinários; Estrasburgo viria a ter sessenta no meio do século XV, e Colônia teria nada menos que 106 comunidades.[8] Também surgiram várias comunidades no nordeste da França, e talvez até em Norwich.[7] Em 1261 Luís IX de França abriria um em Paris e no início do século XIV surgiram beguinários também no sul da França (onde a Inquisição os associou à Ordem Terceira de São Francisco e julgou que adotassem as posições de Pedro João Olivi).[8] Desta maneira, as beguinas (e outros movimentos inspirados por elas, como os begardos, ou semelhantes, como os seguidores de São Francisco) foram provavelmente a força religiosa mais importante a influenciar a vida e a cultura das cidades dos Países Baixos - mais até que os monges, geralmente assentados nos campos, e o clero secular - e marcaram profundamente outros movimentos, contemporâneos ou posteriores, assim como o misticismo alemão.[2][8]

O movimento se mostrou notavelmente adaptado a seu tempo, e houve várias razões para seu sucesso. Já no século XI a vita apostolica de Roberto d'Arbrissel abriria caminho, dando muito mais autonomia às mulheres.[5] Por sua vez, o século XIII era época das Cruzadas, e muitas viúvas tornavam-se neófitas dos beguinários.[2] Como as mulheres eram discriminadas tanto legal quanto economicamente, estas viúvas, mulheres que não conseguissem se casar e até mesmo senhoras casadas, com permissão dos maridos das quais se separaram,[5] juntaram-se nestas comunidades. A situação foi agravada, também, porque a Igreja Católica à época passou a aplicar em universidades parte do que ia aos mosteiros. Como às mulheres era vetada a entrada na universidade, os beguinários tornaram-se uma alternativa adequada às condições.[9]

Ilustração de uma beguina medieval em seus trajes

A relação das beguinas com a Igreja Católica foi bastante conturbada e contraditória. As beguinas contavam com um nível de liberdade muito raro entre as mulheres medievais, o que provavelmente era perturbador para muitos homens - em especial o clero, masculino, que não conseguia as controlar.[6] Ademais, os beguinários se tornaram centros místicos muito importantes e, em sua independência, frequentemente proliferavam neles crenças divergentes da doutrina católica. Assim, embora o papa Honório III tenha reconhecido informalmente o movimento,[9] desde meados do século XIII as beguinas (e outros movimentos semelhantes) foram perseguidas com maior ou menor intensidade.[2]

Já em 1259, um sínodo (em Fritzlar[2] ou Mogúncia[8]) exige restrições às beguinas: proíbem-nas, assim como a sua contraparte masculina, os begardos, de mendigar pão nas ruas, além de vetar o contato entre os dois tipos de comunidades.[8]. Outro sínodo em Mogúncia, em 1261, acusava as beguinas de causar escândalo; no ano seguinte, um sínodo em Colônia condenou a independência das comunidades, determinando que deveriam se confessar com um padre sob pena de excomunhão. Outras condenações foram proclamadas em Eichstätt em 1282 e Béziers em 1299, até que em 1310 foi vetada a entrada de padres em beguinários.[8]

O maior golpe, porém, viria do Concílio de Vienne, em 1312, que proibiu a vida comunal e condenou tais comunidades como heréticas. Ainda assim, o papa João XXII permitiu novamente que as beguinas retornassem ao modo de vida - se se submetessem à ortodoxia.[2] (Notadamente, embora o movimento fosse bastante diverso, muitas beguinas se identificavam como ortodoxas.[10]) Nesses conflitos, algumas beguinas chegaram a ser queimadas vivas.[5][6] Entre os diversos papas que, de alguma forma, se opuseram aos beguinários, podemos citar Clemente V, Urbano V, Gregório XI e o próprio João XXII. Já o papa Eugênio IV foi responsável por reabilitar as beguinas no século XV.[7]

Após o ápice na Baixa Idade Média, o número de beguinas começa a diminuir, por várias razões. Uma delas era a decadência do mercado têxtil, uma das principais fontes de sustento das comunidades. A Reforma Protestante também foi fator relevante na redução dos beguinários, que ainda assim persistiram. Um golpe bem mais forte foi a Revolução Francesa, que apreendeu muitos dos bens das beguinas. A decadência do movimento, que já vinha do fim da Idade Média, acentuou-se. Ainda assim, as beguinas persistiram até após o século XX, em alguns lugares da Bélgica. Em 1900 havia cerca de mil beguinas.[11] Em 1960, restavam apenas nove beguinas no beguinário de Courtrai, sendo que a última delas, Marcella Pattyn, faleceu em 14 de abril de 2013[11] - em pleno século XXI, após 800 anos de história.[2]

Características[editar | editar código-fonte]

O beguinário de Dendermonde

Ao contrário das freiras, beguinas não faziam votos, podiam deixar suas comunidades e casar quando quisessem e não renunciavam suas propriedades. Também não pediam nem aceitavam esmolas; se não possuíssem meios de sobrevivência, dedicavam-se ao trabalho manual (especialmente na indústria têxtil) ou à educação infantil. Enquanto noviças, viviam com a "grande senhora" em seu claustro, mas posteriormente tinham suas próprias habitações, e até serviçais, se pudessem mantê-los. A união com suas companheiras se devia aos objetivos compartilhados e à comunidade em adoração.[2]

A rotina diária das beguinas também incluía muitas atividades religiosas: ir à missa, rezar em honra à Virgem Maria e à Paixão de Cristo, leitura e contemplação meditativas. Praticavam penitências em comunidade e se confessavam uma vez por mês. Também praticavam vigílias e observavam os dias festivos. Ademais, elas praticavam caridade, ajudando pobres e doentes, e frequentemente abrigavam mulheres que não pertenciam à ordem, mas que necessitavam de proteção.[9]

Muitas beguinas escreviam. Suas obras geralmente eram escritas em flamengo ou francês (ao invés de latim) e já foram descritas como "de espírito livre" e "provocadoras".[6] Entre as várias escritoras, podemos destacar Hadewijch da Antuérpia, que escreveu vasta obra e cujas Visões são consideradas uma das grandes obras da literatura neerlandesa.[9] Outras se dedicavam às artes[12] ou à música, como Marcella Pattyn, que tocava banjo e órgão.[6]

Via de regra, os beguinários não compartilhavam nenhuma regra nem superior hierárquico: cada comunidade era independente e tinha seus próprios costumes, embora algumas, mais tardiamente, tenham adotado as regras da Terceira Ordem de São Francisco. A origem das beguinas de cada comunidade também eram as mais variadas: enquanto alguns beguinários eram restritos para mulheres das classes dominantes, outros eram exclusivos para mulheres de origem humilde, e não faltavam aqueles que não adotavam restrição alguma neste sentido. Notadamente, estes eram os mais populosos.[2] Apesar de serem frequentemente acusadas de heréticas, a maioria das beguinas se via como ortodoxas, algo pouco usual para movimentos assim rotulados.[10]

Segundo Walter Simons, as beguinas seguiam uma vocação própria, diferente do convento e do casamento. Elas buscavam seu próprio sustento, assim como a ajudar os necessitados - ao invés de, por exemplo, se isolar como freiras. Embora pudessem deixar suas comunidades e se casar, há registros de que muitas ativamente evitavam isto, inclusive apoiando-se umas às outras. Seu grau de independência, tão pouco usual na Idade Média, levou alguns a anacronicamente apelidarem-nas de feministas medievais.[7]

Beguinas e beguinários notáveis[editar | editar código-fonte]

Beguinário da igreja de São Martim, em Courtrai

Dentre as beguinas, podemos destacar a mística Hadewijch de Antuérpia, que foi grande senhora de sua comunidade e escreveu várias obras muito relevantes na literatura neerlandesa.[5]

Marcella Pattyn é outra beguina muito conhecida, por ser a última de suas irmãs.[6]

Marguerite Porete (1250, Condado de Hainaut, Bélgica - 1 de junho de 1310, Place de l'Hôtel-de-Ville, Paris, França). Mística, escreveu o livro "O Espelho das Almas Simples e Aniquiladas" que retrata o percurso místico até a união com Deus a partir da linguagem da literatura do amor cortês, em forma de diálogo entre a Dama Amor, a Alma Aniquilada e a Razão. Pelos escritos foi considerada herege relapsa por um tribunal de inquisidores. Em 1.° de junho de 1310, Porete foi condenada e queimada numa praça de Paris, em processo similar ao ocorrido mais tarde com Joana D'Arc, em Rouen, na Normandia.

Dado o sucesso do movimento, vários são os beguinários dignos de nota. Entre os primeiros, podemos citar os de Mechelen - que sabe-se que existiu desde 1207 -, o de de Lovaina, desde 1234 e o Bruxelas, conhecido desde 1245. Outros beguinários se destacaram pelo tamanho, como os de Gante e Bruges, alguns dos vários com milhares de habitantes.[2]

Até hoje pode-se encontrar os edifícios dos beguinários em cidades da Bélgica. Os últimos ativos podiam ser encontrados em cidades como Bruges, Lier, Mechelen, Lovaina e Gante. Entre eles, podemos destacar os de Sint-Amandsberg, em Gante, e o de Santa Isabel, em Courtrai - Marcella Pattyn entrou no primeiro em 1941 e viveu no segundo, chegando a ser a última beguina, até sua morte.[7]

Ver também[editar | editar código-fonte]

Referências

  1. Phillips, Walter Alison (1911). «Beguines». Enciclopédia Britânica. 3. pp. 652, 653 
  2. a b c d e f g h i j k Gilliat-Smith, Ernest (1907). «Beguines & Beghards». Enciclopédia Católica (em inglês). Nova Iorque: Robert Appleton Company. Consultado em 21 de maio de 2013 
  3. Por exemplo, Bynum, Caroline Walker (1987). Holy Feast and Holy Fast; the religious significance of foo to medieval women. [S.l.]: University of California Press. p. 17. ISBN 978-0-520-05722-7 
  4. Veja, como exemplo, Algemene Winkler Prins (1956) (em neerlandês), que afirma que nenhuma ligação foi encontrada entre as beguinas e os cátaros. A Enciclopédia Católica, por sua vez, sequer se refere a esta possível ligação, como pode ser visto no artigo relevante.
  5. a b c d e Mommaers, P.; Elisabeth Mary Dutton (2004). Hadewijch: Writer, Beguine, Love Mystic. [S.l.]: Peeters Publishers. p. 158. ISBN 9789042913929 
  6. a b c d e f «Marcella Pattyn». Marcella Pattyn, the world’s last Beguine, died on April 14th, aged 92. The Economist. 27 de abril de 2013 
  7. a b c d e «Marcella Pattyn». The Telegraph. 16 de maio de 2013 
  8. a b c d e f Schaff, Philip. History of the Christian Church. V. [S.l.: s.n.] 
  9. a b c d Kuhlman, Erika (2002). A to Z of Women in World History. Verbete "Hadewych of Antwerp". [S.l.]: Infobase Publishing. p. 212 
  10. a b «The Beguines». Kenyon College  Página sobre as beguinas do projeto Marginality and Community in Medieval Europe.
  11. a b «In Memorium: Marcella Pattyn, d. April 14, 2013, Kortrijk, Belgium». LaceNews. 6 de maio de 2013 
  12. Nagelsmit, Eelco (12 de novembro de 2008). Art and Patronage at the Brussels Beguinage during the Counter Reformation, ca. 1610-1640. Academia.edu. [S.l.]: Institute for Art Historical and Literary Studes of Leiden University 

Ligações externas[editar | editar código-fonte]