Docuficção

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Docuficção[1] (termo que se confunde com docudrama) é um neologismo que designa uma obra cinematográfica híbrida cujo género se situa entre o documentário e a ficção. É um género cinematográfico que procura captar a realidade “tal como ela é” (como cinema directo ou como cinema-verdade) e que ao mesmo tempo introduz na narrativa elementos irreais ou ficcionais com o intuito de reforçar a representação do real com recurso a determinada forma de expressão artística.

Mais precisamente, é um documentário contaminado por elementos ficcionais[2] cuja adição tem lugar no momento preciso em que os acontecimentos decorrem, em tempo real, i.e. ao vivo, e em que alguém, a personagem, desempenha o seu próprio papel na vida real. É um género em expansão, adotado por um número crescente de cineastas.[3]

O termo docuficção surgiu no início do século XXI. É vulgarmente usado em várias línguas e aceite para classificação na maior parte dos festivais internacionais de cinema [4][5][6][7][8][9][10][11] Ver: Híbridos nas Ligações Externas

MOANA, de Robert Flaherty, primeira docuficção na história do cinema (1926)

Docudrama[editar | editar código-fonte]

Docudrama, por outro lado, é por regra uma recriação [12] de acontecimentos reais em forma de documentário, num tempo subsequente aos eventos factuais que retrata. Há quem indevidamente refira docuficção como sinónimo de docudrama, tomando drama por ficção, o que é vulgar na língua inglesa. Confunde-se assim termos diferentes e o conceito torna-se ambíguo: o sentido de emoção dramática confunde-se com o de expressão fictiva. Docudrama será por isso mais adequado neste sentido: telefilmes ou recriações mediáticas que encenam acontecimentos reais e os dramatizam, muitas vezes com actores.

As televisões dos EUA recorrem com frequência também a uma forma de “falso documentário”, o mockumentary (que se traduz em francês por documenteur: documentário mentiroso), para ilustrar situações reais em estilo trocista. Um «filme ou emissão televisiva com elementos ficcionais apresentados no formato de documentário», recriados regra geral depois de eles terem ocorrido. Retratando eventos num tempo ulterior e recorrendo basicamente à narrativa ficcional é género que também não se deve confundir com docuficção.

Conceito[editar | editar código-fonte]

Implica ainda o conceito de docuficção que documentário e ficção são géneros básicos na teoria do cinema [13], dado o estatuto ontológico da imagem filmada como fotografia: o duplo (a imagem filmada do sujeito) é a mesma coisa, como representação e como realidade [14] no documentário. Na ficção é pura representação: um actor representa outra pessoa (está para ela tal como ela está para ele), standing for [15],[16] figurando a pessoa representada.

Pertencendo a ambos os géneros, sendo documentário e ficção, a docuficção é um híbrido intencionalmente equívoco que suscita questões éticas relativas à verdade.[14][17][18][19][20][21][22][23][24]

O termo docuficção é ainda usado, com alguma frequência em inglês (docufiction), para designar uma forma de jornalismo literário : a não-ficção criativa (Creative non-fiction).

Robert Flaherty

Origens da docuficção[editar | editar código-fonte]

Sendo um neologismo, o termo docuficção ilustra uma prática do filme documentário que existe desde Robert Flaherty [25][26] e que tem Jean Rouch como um dos seus mais representativos praticantes no Século XX.

No domínio da antropologia visual e da docuficção, a actividade inovadora de Rouch [27][28] permite considerá-lo como o criador de um subgénero designado etnoficção.[29] Sendo precursor do género, Robert Flaherty pratica a etnoficção de modo intuitivo, sem método científico, desde “Moana”, filme posterior a Nanook, o esquimó em que Flaherty se limita a encenar acções reais para reforçar a narrativa sem ficcionar.

O termo significa: documentário etnográfico com nativos que desempenham papéis ficcionais. Fazer com que se representem a si próprios ajudará a retratar a realidade [30] que será reforçada com o imaginário. Um documentário não etnográfico com com elementos ficcionais pode ser designado com docuficção pelas mesmas razões.

A etnoficção é uma prática recorrente no cinema português. Leitão de Barros realiza a segunda etnoficção mundial (Maria do Mar - 1930) depois de Moana (1926), também de Flaherty.

Primeiras docuficções por país[editar | editar código-fonte]

Jean Rouch no filme Paroles

Outras docuficções históricas[editar | editar código-fonte]

A docuficção em Portugal[editar | editar código-fonte]

A docuficção é pela primeira vez praticada em Portugal em 1930, como etnoficção, por Leitão de Barros : Maria do Mar, seguida de Ala Arriba (1945). A partir da década de sessenta começa a ser explorada por realizadores como Manoel de Oliveira (O Acto da Primavera - 1963), seguido por Fernando Lopes (Belarmino - 1964) e por António Campos (Gente da Praia da Vieira), Ricardo Costa (Mau Tempo, Marés e Mudança), António Reis (Trás-os-Montes), Fernando Lopes (Nós por Cá Todos Bem), quatro docuficções de 1976, e depois por Pedro Costa (Ossos) . Outros surgirão.

Docuficções portuguesas recentes[editar | editar código-fonte]

O híbrido na docuficção[editar | editar código-fonte]

Representações de grupos étnicos tornaram-se prática corrente desde que Flaherty filmou Nanook, o Esquimó em 1922 e desde que, por influência sua, Jean Rouch se tornou o pioneiro da etnoficção (fr ethnofiction) com a longa-metragem Eu, um Negro (fr Moi, un noir) [33] (1958, antecipando a Nova Vaga) e inventando novo género na antropologia visual. O termo etnoficção foi por ele adoptado nas sessões que regularmente tinha no Museu do Homem, em Paris, nos finais da década de 1990 com Germaine Dieterlen [34] e Brice Ahounou [35], assistente de longa data de Rouch [36][37], na época em que o filme Palavras - entrevistas com Jean Rouch, de Ricardo Costa - foi feito (1998). O uso do termo etnoficção foi sugerido numa dessas sessões por Ahounou e aceite por Rouch e Dieterlen.

Depois disso, o conceito de etnoficção (etnografia + ficção) ultrapassaria a prática científica e, por analogia, daria origem a uma designação mais ampla (docuficção: documentário + ficção) na qual seria integrada enquanto subgénero. Tal designação seria então usada pata classificar filmes que cedo emergiram em diversos países, por influência directa de Flaherty ou, indirectamente, por semelhança ocasional, em ambos os casos sem correlação alguma e com diferenças significativas nas formas e conteúdos. Por um lado, a sua natureza híbrida tornou-se um dos critérios que juntaram documentário e ficção num conceito único. Por outro lado, pessoas representando o seu papel na vida real é outro que lhe dá fundamento. Estas duas exigências estão intimamente associadas a outras duas na prática da docuficção: 1. ética e estética, i.e., fidelidade à verdade e ao real, 2. significantes e conotações, i.e., formas de expressão reproduzindo factos de um modo ilustrativo ou alusivo, desvelando facetas da vida humana.

Nose art do Grande Artista.
A bomba atómica expoldindo em Hiroshima

Docuficção extrema[editar | editar código-fonte]

Pela primeira vez na História (e na da própria docuficção também), correram mal as coisas com os Filhos de Hiroshima (1952), os sobreviventes de uma colossal tragédia, uma história de vingança protagonizada pelo Grande Artista e pelo Mal Necessário: os primeiros lançamentos da bomba atómica, uma história de explosões tremendas, que implodiram em efeitos catárticos, em imagens de grande beleza, a preto e branco. Vendo tal coisa, uma pessoa terá de submeter-se a esta exigência extrema: É coisa que não pode acontecer!.

Na arte do cinema, semelhantes histórias seriam contadas, forçosamente em estilo diferente e em diferente escala, gerando menos pathos e um entendimento menos agudo de realidades contemporâneas. Até onde poderão ir? Em que medida certas vaidades de autor ferem os espectadores? Será que esta moda perversa terá futuro? Não há muitos filmes destes. Serão muitos os que se seguem? Será que se adaptam às definições modernas? Ilustração e alusão ("recording" and "interpretation") [38] são polos opostos em diferentes modos de capturar o real, quer no cinema quer em qualquer outra forma de expressão artística. As técnicas de ilustração são objectivas e implicam fidelidade àquilo que é representado: o representante, o significante. A alusão representa matéria subjectiva.

La Vérité (A Verdade) segundo Jules Lefebvre

Robert Flaherty ilustrava as realidades que filmava com estética apelativa que sensibilizava a América, um público ingénuo sedento de paisagens sedutoras. Dava a ver aos desafortunados da sua terra nativos exóticos, belos e nobres selvagens de países longínquos. Filmava imagens fortes, concebidas para agradar a um público vasto e a produtores gananciosos.[39][40] Também seduzido por tais encantos Jean Rouch, cientista bem mais que qualquer outra coisa, é um dos que se atreveram a ir sempre mais longe em tentativas extremas.[41][42]

Usando lentes ‘neutras’ (numa perspetiva ingénua) e um sentido poético bastante pessoal, Rouch foi filmar negros em países misteriosos da África com a nobre intenção de descobrir quem eles são e aquilo que representam. Sujeitou-se ao confronto em duas frentes: reduzindo a estética a imagens sem pretensão e a ética a princípios rigorosos, indispensáveis para desvelar a verdade.[41][42][43] De diversos países, há quem faça o mesmo. Por razões fortes, há quem ouse ultrapassar certos limites que melhor fariam em não transpor, transformando o documentário em ficção irredutível, em fantasia sem retorno: As Mil e Uma Noites e do lado oposto, no seu extremo, Cavalo Dinheiro (origem: Portugal). Outros aventureiros, em circunstâncias idênticas, usando astúcias subtis, pisam a linha vermelha sem se escaldar: Taxi (2015) (origem: Irão), Derivas (origem: Portugal), isto é, (autobiografias, retratos urbanos, filmes sem dinheiro, metafilmes, cinema no extremo). Tendências opostas terão lugar nos dias que nos esperam. Realidades mutantes farão com que eles difiram.[44][44][45][46][47]. Fala-se nos dias de hoje de um «realismo de vanduarda» (Avant-Garde Realism). Diz-se que «Hoje o real tornou-se a nova vanguarda. Se a vanguarda de ontem constituía um homicídio do real, a de hoje ressuscita a anarquia do real e o triunfo do cinema total.» [48][49][50][51][52].

Definições[editar | editar código-fonte]

docudrama[editar | editar código-fonte]

  • Compact Oxford English Dictionary: «um filme dramatizado baseado em eventos reais e incorporando aspectos de documentário».
  • Cambridge Advanced Learner's Dictionary: «um programa de televisão cuja história se baseia num evento ou situação que realmente aconteceu, embora não pretenda ser fiel em todos os detalhes»
  • Wikitionary: «Um tipo de drama (um filme, espectáculo de televisão, uma peça de teatro) que combina elementos de documentário e drama, mostrando até certo ponto eventos reais e até certo ponto usando actores representando recriações e acontecimentos documentados».
  • American Heritage: «Uma dramatização televisiva ou cinematográfica de uma situação baseada em factos».
  • Rhymezone: «um filme ou programa de televisão apresentando factos sobre uma pessoa ou acontecimento»

Ver também[editar | editar código-fonte]

Referências

  1. Infopédia. «docuficção | Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa». infopedia.pt - Porto Editora. Consultado em 20 de dezembro de 2022 
  2. Il difficile rapporto tra fiction e non fiction che si concretizza nella docu-fiction (A difícil relação entre ficção e não ficção que se concretiza na docuficção) – tese em italiano de Laura Marchesi, Faculdade das Ciências da Comunicação (Università degli Studi di Pavia) em Tesionline, 2005/06
  3. What is docufiction? – Ver Section II, pp 37 a 75 (quatro capítulos) Arquivado em 11 de setembro de 2011, no Wayback Machine. da tese do Prof. Theo Mäusli
  4. Indie Matra Bhumi (Terra-Mãe)Festival de Cannes
  5. Abel Ferrara to Venice Film Festival, through a docufilm Ischia to Naples Arquivado em 19 de janeiro de 2012, no Wayback Machine. – Festival de Veneza
  6. The Savage Eye: White Docu-Fiction & Black Reality Arquivado em 13 de setembro de 2011, no Wayback Machine. em Tribeca Film Festival
  7. Brian De Palma's On His Iraq Docu-Fiction Comeback at The Huffington PostFestival de Toronto e Festival de Veneza
  8. Darius Mehrjui’s film Diamond 33 – Festival de Veneza
  9. New Film EventsLondon Short Film Festival
  10. Oscilloscope 'Howl' for Off Beat Docu-Fiction Sundance Selection em Ion Cinema
  11. Docufiction Arquivado em 1 de setembro de 2011, no Wayback Machine. em vários festivais de cinema
  12. Ver Docudrama: the real (his)tory Confusion of genres – Pág. 2 da tese de Çiçek Coşkun (New York University School of Education)
  13. The Gap: Documentary Truth between Reality and Perception – artigo de Randolph Jordan referindo «a crescente indistinção entre documentário e ficção (the increasing lack of distinction between documentary and fiction film)» em Hors Champ
  14. a b Open-ended Realities – artigo de Luciana Lang em Latineos
  15. Semiotics em Book Regs
  16. Semiotics for Beginners de Daniel Chandler em Aberystwyth University
  17. (NON)FICTION AND THE VIEWER: RE-INTERPRETING THE DOCUMENTARY FILM – Paper de Tammy Stone, Avila University
  18. Ver hybrid genre Arquivado em 11 de setembro de 2011, no Wayback Machine. – pág. 50, tese sobre docuficção do Prof. Theo Mäusli
  19. The appeal of hybrid documentary forms in West Africa em Project Muse
  20. Ethics and Documentary Filmmaking Arquivado em 2012-07-07 na Archive.today – Artigo de Marty Lucas em Center for Social Media Arquivado em 2012-07-11 na Archive.today (American University in Washington, D.C)
  21. On Ethics and Documentary: A Real and Actual Truth – Artigo de Garnet C. Butchart em Cultural Studies Program, Trent University, Peterborough, Ontário, Canadá, publicado por University of South Florida
  22. What to Do About Documentary Distortion? Toward a Code of Ethics – Artigo de Bill Nichols em Documentary.org
  23. Documentary Film Prompts-Ethics in Documentary/Fiction vs. Documentary – Paper de Ardavon Naimi em University of Texas at Dallas
  24. Ethics and Filmmaking in Developing Countries em Unite For Sight
  25. Definition of documentary – New Frontiers in American documentary (American Studies at The University of Virginia)
  26. The Impulse of Documentary-Fiction Arquivado em 19 de março de 2012, no Wayback Machine. - Paper em Transart Institute Arquivado em 31 de agosto de 2011, no Wayback Machine.
  27. Reading the Image : Visual Literacy And The Films Of Jean Rouch Arquivado em 30 de novembro de 2012, no Wayback Machine. – artigo de Rayma Watkinson em Inter-disciplanary Net
  28. Jean Rouch 1917-2004, A Valediction – Artigo de Michael Eaton em Rouge
  29. Jean Rouch and the Genesis of Ethnofiction – tese de Brian Quist, Long Island University
  30. "Ethnofiction: drama as a creative research practice in ethnographic film." Journal of Media Practice 9, no. 3(2008), eScholarID:1b5648, artigo de Johannes Sjöberg
  31. Moana Becomes A Man
  32. Why ‘Moana,’ the First Docufiction in History, Deserves a New Life – artigo de Laya Maheshwari] em Indiewire, 3 de julho de 2014
  33. Quem diz “Eu, um Negro?” – tese de Lessandro Sócrates, Universidade de São Paulo, Escola de Comunicações e Artes, 2009
  34. Jean Rouch et Germaine Dieterlen, filme de referência de Philippe Costantini (jornal Público)
  35. Africultures
  36. Brice Ahounou, journaliste, anthropologue et programmateur
  37. Brice Ahounou, passeur d’images nécessaire à la mémoire des mondes, artigo de Stéphane Aubouard, no jornal L'Humanité, 20 de julho 2017
  38. Docufictions: an intervew with Matin Scorsese on documentary film
  39. Robert Flaherty – artido de Deane Williams, Senses of Cinema
  40. Realism, Romanticism and the Documentary Form: Robert Flaherty's Man of Aran – Chapter 4, Brian McFarlane, Ed, 24 Frames: The Cinema of Britain and Ireland, Wallflower, 2005
  41. a b A Tribute to Jean Rouch – artigo de Paul Stoller em Rouge
  42. a b Jean Rouch's Ciné-Ethnography: at the conjunction of research, poetry and politics – artigo de Lorraine Mortimer em Screenig the Past
  43. Maîtres Fous.net
  44. a b Cinematography: The Creative Use of Reality, Maya Deren, "Cinematography: The Creative Use of Reality" in The Avant-Garde Film: A Reader of Theory and Criticism, ed. P. Adams Sitney (New York: Anthology Film Archives, 1978), pp. 60-73
  45. Avant-Garde Realism – article by Nicholas Rombes Arquivado em 8 de dezembro de 2015, no Wayback Machine. 19 de janeiro, 2005
  46. Reality Ink: When Nonfiction Film Meets Experimental Cinema – artigo de Cynthia Close, 15 de abril 2015
  47. Reality Ink: When Nonfiction Film Meets Experimental Cinema – artigo de Cynthia Close, 15 de abril de 2015
  48. Avant-Garde Realism
  49. Cinema in the Digital Age – livro de Nicholas Rombes, Columbia University
  50. Le réalisme d’avant-garde au 20e siècle dans la culture visuelle et la littérature, 1914-1968 (Nagoya, Japon) – Notas para um colóquio, informação publicada a 26 de janeiro de 2018 pela l'Universidade de Lausanne (fonte : Hiromi MATSUI), 7 de abril de 2018
  51. The Realist Tendency – nota sobre a "tendência realista" no cinema segundo Siegfried Kracauer em Film Reference
  52. Documentary Film and the Modernist Avant-Garde – ensaio de Bill Nichols ; fonte : Critical Inquiry, Vol. 27, No. 4 (verão 2001), pp. 580-610, The University of Chicago Press

Fontes e bibliografia[editar | editar código-fonte]

Ligações externas[editar | editar código-fonte]