Fiéis de Deus

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Os Fiéis de Deus[1] são pequenos montes de pedras nas beiras das estradas de Portugal nos locais em que antigamente eram enterrados os condenados à morte [2] ou pessoas que tivessem falecido de morte violenta ou desastrosa.[3][4] Esta designação reporta-se ao culto católico das almas do Purgatório, amiúde eufemizadas durante a Idade Média em Portugal com o nome "fiéis de Deus".[4][5]

Com o passar dos séculos, os fiéis de Deus históricos, assinalados por moledros e amontoados de pedras, deram lugar aos fiéis de Deus modernos, que ainda figuram junto à beira das estradas, tendo passado a ser pontuados por grandes cruzes de madeira, pedra ou metal (os chamados cruzeiros)[6], ou mesmo pequenas capelas, servindo para assinalar o local onde alguém morreu de acidente ou morte violenta.[7][8][3]

História[editar | editar código-fonte]

Idade Clássica[editar | editar código-fonte]

Os celtas enterravam os seus chefes em mamoas, cujo tamanho era na proporção directa da consideração que davam ao defunto.[3] Deste modo, se morresse alguém de baixa condição social, limitavam-se a pôr-lhes sobre a cova uma pequena pirâmide de pedras[3]

Ainda de antes do século VI, os romanos também tinham o costume, de amontoar pedras em montículos junto caminhos, aos quais chamavam montes gaudios.[3] Estes montículos eram dedicados aos Lares compitales, celebrados nos cruzamentos de três caminhos - os chamados triviis- ou quatro caminhos - os chamados quadriviis - e Mercúrio, deus das encruzilhadas .[9][10][5]

Os Lusitanos romanizados, quando se converteram ao cristianismo, continuaram ainda com a pratica dos montinhos das pedras, depondo as pedras sobre o sitio onde estava enterrado algum criminoso que tivesse sido punido de morte e, posteriormente, nos sítios onde alguém tinha morrido de morte violenta ou desastrosa.[3]

Idade Média[editar | editar código-fonte]

Na Idade Média, havia o costume de enterrar os condenados pela justiça nas orlas dos caminhos, em covas rasas.[4][2] Na religiosidade católica da época, em Portugal, o povo entendia que estes condenados seriam remetidos ao Purgatório, para penar pelos seus pecados em vida, antes de poderem transitar para o paraíso.[4][2][5]Com efeito, durante a história de Portugal, até ao séc. XVII, existiram ordens religiosas especificamente dedicadas a orar pelas almas presas no Purgatório, as chamadas Irmandades dos Fiéis de Deus.[4]

Quando os caminhantes passavam por estas campas rasas, situadas ao pé dos caminhos, havia o costume medieval de rezar por essas almas do purgatório - os «fiéis defuntos» - poisando de seguida uma pedra sobre a campa.[11][5] Este costume persistiu ao longo da história de Portugal, tendo sido observado por Leite de Vasconcelos, ainda nos finais séc. XIX.[12]

Em Portugal, quando as campas ficavam cobertas de montes de pedras, o povo considerava que o defunto já tinha expiado os seus pecados e, por isso, ficara "fiel a Deus".[4][13]

Folclore e mitologia portuguesa[editar | editar código-fonte]

Os Fiéis de Deus também encontram expressão no folclore e crendice popular portuguesa, na medida em que representam o costume primitivo de fazer peso sobre o cadáver para este não voltar ao mundo com o intuito de perseguir os vivos.[14] Na Galiza os Fiéis de Deus (ou Fies de Deus) são seres sobrenaturais, espíritos nocturnos cujo destino é vagar pela noite. São espíritos dignos de compaixão e que por vezes reclamam orações. [15]

Toponímia[editar | editar código-fonte]

Há várias localidades, ruas e momentos em Portugal com nomes alusivos aos Fiéis de Deus[16][17], desde Casal de Fiéis de Deus, no distrito de Santarém, à Ermida dos Fiéis de Deus, em Lisboa.[18]

Referências

  1. S.A, Priberam Informática. «Fiéis de Deus». Dicionário Priberam. Consultado em 14 de setembro de 2021 
  2. a b c Braga, Teófilo (1885). O povo portuguez nos seus costumes, crenças e tradições, Volume 2. Porto: .Livraria Ferreira. pp. 188–192 
  3. a b c d e f Soares d'Azevedo Barbosa de Pinho Leal, Augusto (1874). Portugal antigo e moderno - Diccionario. Lisboa: Livraria Editora de Mattos Moreira Companhia. p. 185-186. 455 páginas 
  4. a b c d e f Infopédia. «Fiéis de Deus | Definição ou significado de Fiéis de Deus no Dicionário Infopédia de Toponímia». Infopédia - Dicionários Porto Editora. Consultado em 7 de setembro de 2021 
  5. a b c d Viterbo, Joaquim de Santa Rosa de (1856). Elucidário das palavras, termos e frases que em Portugal antigamente se usaram e que hoje regularmente se ignoram vol. 1. Lisboa: A. J. Fernandes Lopes. p. 64. 552 páginas. Os Christãos abominando sempre os delictos, não aborrecião os criminosos. E assim, morrendo aqueles no gremio da Igreja, ainda que fossem postos na sepultura junto dos caminho publicos, para exemplo, e terror dos outros: a caridade os ensinou a rogar e pedir a Deos o seu descanso, deignando com estes montes de pedras o lugar das suas cinzas, para assim mesmo excitar a compaixão pelas suas almas, na certeza de que também forão Fieis de Deus. E daqui veio este nome a muitos sitios, em que algum dia ao menos existio algum daquelles tumulos. Hoje se praticam semelhantes memoriais, junto de cruzes, que costumão levantar, onde matárão ou casualmente morreo alguma pessoa, pelo mesmo fim, que já se indicou. 
  6. Leite de Vasconcelos, José (1882). Tradições populares de Portugal. Porto: Typographia Occidental. p. 93. 350 páginas. a) No Marão, junto á antiga estrada de Villa Real para Amarante, e na serra de Mantellinha, estrada de Villa-Real para o Douro, ha muitas cruzes que indicam mortes; junto das cruzes cada viandante resa um Padre-Nosso e deita uma pedrinha (Informação do snr. Bernadino Rebello). 
  7. Cunha Saraiva, José (1929). «Os "Fiéis de Deus"». Imprensa Nacional. A Língua Portuguesa – Revista de Filologia. 1: 168-169 
  8. Sarmento, Martín (1973). Catálogo de voces y frases de la lengua gallega. Salamanca: Ediciones Universidad Salamanca. p. 87. ISBN 84-600-5838-7. pero en Portugal fiéis de Deus son «montículos de pedras... formados a pouco e pouco por viandantes junto de cruzes assinaladoras de mortes naturais ou violentas» 
  9. Antanho), J. E. Fraga Aurélio (lisboa De (14 de julho de 2019). «Lisboa de Antigamente: Os Fiéis de Deus». Lisboa de Antigamente. Consultado em 19 de julho de 2023 
  10. Mendes, Joyce (1 de janeiro de 2019). «CONSIDERAÇÕES SOBRE RESIDUALIDADES PAGÃS NO DE CORRECTIONE RUSTICORUM DE MARTINHO DE BRAGA». CONSIDERAÇÕES SOBRE RESIDUALIDADES PAGÃS NO DE CORRECTIONE RUSTICORUM DE MARTINHO DE BRAGA: 313. Consultado em 21 de setembro de 2023 
  11. Leite de Vasconcelos, José (1882). Tradições populares de Portugal. Porto: Typographia Occidental. p. 93. 350 páginas. a) No Marão, junto á antiga estrada de Villa Real para Amarante, e na serra de Mantellinha, estrada de Villa-Real para o Douro, ha muitas cruzes que indicam mortes; junto das cruzes cada viandante resa um Padre-Nosso e deita uma pedrinha (Informação do snr. Bernadino Rebello). b) Ao pé de Rio Tinto, junto á Serra da Mulher Morta , conserva-se também o costume de deitar uma pedrà e resar um Padre-Nosso, ao pé de uma cruz de ferro que ahi ha e assignála morte. Ninguém deve tocar nos monticulos de pedra (Informação do snr. Leite de Faria. Vid. o meu art. Tradições das Pedras , na Era- Nova pag. 78, § 3.°). c) 0 meu amigo Teixeira Bastos, no op. Conservação e Evolução , p. 12, (extracto do Positivismo ), dá conta de um costume idêntico em Cabeceiras de Basto. Tenho ouvido fallar do mesmo costume noutras muitas partes. d) Estes montes de pedra eram chamados Fieis de Deus} e d’elles fazia menção Viterbo no Elucidário. 
  12. Leite de Vasconcelos, José (Novembro 1881). «Fiéis Defuntos». Typographia Nacional. Pantheon (1): 98. «e o costume persiste no Marão (junto à antiga estada de Vila Real para Amarante), na serra da Mantelinha (estrada de Vila Real para o Douro) e em Rio Tinto e Cabeceiras de Basto: os viandantes param junto dos cruzeiros, rezam um Padre-Nosso e deitam uma pedrinha» 
  13. Leite de Vasconcelos, José (1882). Tradições populares de Portugal. Porto: Typographia Occidental. p. 93. 350 páginas. Estes montes de pedra eram chamados Fieis de Deus e d’elles fazia menção Viterbo no Elucidário. 
  14. Sarmento, Martín (1973). Catálogo de voces y frases de la lengua gallega. Salamanca: Ediciones Universidad Salamanca. p. 87. ISBN 84-600-5838-7. pero en Portugal fiéis de Deus son «montículos de pedras... formados a pouco e pouco por viandantes junto de cruzes assinaladoras de mortes naturais ou violentas» y representan «costumes primitivos de se fazer pêso sobre o cadáver, para este não voltar com o intento de perseguir os vivos». 
  15. Sarmento, Martín (1973). Catálogo de voces y frases de la lengua gallega. Salamanca: Ediciones Universidad Salamanca. p. 87. ISBN 84-600-5838-7. en los fies de Deus, fieles como los vivos cristianos, pero no tanto, ya que su destino les tiene vagando por las tristes noches. Los fies de Deus, como las animas benditas del purgatorio, ya son espiritus dignos de compasion y que reclamam nuestras oraciones. (...) Gran es la diferencia entre embas designaciones, en Galicia aún andavan vivos por la noche, en Portugal ya quedan sepultados bajo el peso de las piedras. 
  16. Leite de Vasconcelos, José (1882). Tradições populares de Portugal. Porto: Typographia Occidental. p. 93. 350 páginas. Estes montes de pedra eram chamados Fieis de Deus} e d’elles fazia menção Viterbo no Elucidário. Em Lisboa ha uma travessa com essa denominação; e em Mondim da Beira um caminho. 
  17. Viterbo, Joaquim de Santa Rosa de (1856). Elucidário das palavras, termos e frases que em Portugal antigamente se usaram e que hoje regularmente se ignoram vol. 1. Lisboa: A. J. Fernandes Lopes. p. 64. 552 páginas. E daqui veio este nome a muitos sitios, em que algum dia ao menos existio algum daquelles tumulos. Hoje se praticam semelhantes memoriais, junto de cruzes, que costumão levantar, onde matárão ou casualmente morreo alguma pessoa, pelo mesmo fim, que já se indicou.Em Lisboa (no Bairro Alto) ha uma rua dos Fieis de Deus; talvez por aqui houvesse os taes fieis de Deus 
  18. Machado, João (27 de Julho de 2011). «Ermida dos Fiéis de Deus / Igreja dos Fiéis de Deus». Monumentos.gov. Consultado em 27 de fevereiro de 2024 

Bibliografia[editar | editar código-fonte]

Ver também[editar | editar código-fonte]

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