Marcos 3

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Jesus pregando no Mar da Galileia, um dos episódios de Marcos 3.
Século XVII. Atribuído a Gerbrand van den Eeckhout.

Marcos 3 é o terceiro capítulo do Evangelho de Marcos no Novo Testamento da Bíblia. Ele continua o relato iniciado no capítulo anterior sobre a observância do descanso no sabá. Depois de terminar de convocar os doze apóstolos, Jesus novamente discute com os escribas e até mesmo com sua própria família.

Curas[editar | editar código-fonte]

Mais informações: Milagres de Jesus

Continuando o tema de Marcos 2, o capítulo três começa com Jesus curando um homem com a mão atrofiada num sabá dentro de uma sinagoga. Marcos utiliza o advérbio "palin" ("de novo", "novamente"), indicando que esta é a mesma de Marcos 1, em Cafarnaum[1]. De acordo com ele, "algumas" pessoas estavam ali especificamente esperando para ver se Jesus curaria alguém no sabá para que pudessem acusá-lo de violar o descanso deliberadamente. Rabis da época permitiam curas durante o sabá apenas se a pessoas estivesse em perigo de morte, o que uma mão atrofiada claramente não configurava[1][2].

Jesus então pergunta: «É lícito nos sábados fazer o bem ou o mal, salvar a vida ou tirá-la?» (Marcos 3:4) Ninguém responde na multidão e, "indignado", pede ao homem que estenda a mão para que seja curado. Geralmente, histórias de cura envolvem algum tipo de artifício ou ritual para realizá-la, mas Jesus o faz instantaneamente e, pelo relato, sem esforço algum[3]. É possível que Marcos estivesse tentando demonstrar o quão poderoso ele acreditava que eram os poderes de Jesus[3]. O mais importante neste episódio é que Jesus iguala "não fazer o bem" com "fazer o mal" e diz que é mais importante não deixar o mal e o sofrimento ocorreram pela omissão[4].

De acordo com Marcos, este milagre é o que definitivamente coloca os fariseus e os herodianos contra Jesus, incitando-os a tramar sua morte. Assim, a reação da maior parte dos judeus passou do assombro para uma oposição ativa. Nesta passagem, assim como na outra sobre o noivo no capítulo 2, Marcos começa a dar pistas da vindoura morte de Jesus[5]. Alguns estudiosos defendem que seria improvável que estes dois grupos estivessem trabalhando juntos, pois os fariseus se opunham ao Império Romano e Herodes Antipas era sustentado por Roma. É possível, porém, que Marcos estivesse apenas ressaltando a dupla natureza e a seriedade da oposição que se formou contra Jesus[6].

Este evento ocorre também em Mateus 12 (Mateus 12:9–14), mas ali a pergunta de Jesus comparava a vida de um homem com a de uma ovelha salva no sabá. Em Lucas 6 (Lucas 6:6–11), o relato é quase idêntico ao de Marcos, embora Lucas não afirme que os inimigos de Jesus estivessem planejando matá-lo, somente que estavam "furiosos" e que discutiam o que fazer com ele.

Jesus então "retirou-se" (em grego: anechōrēsen) para um "mar" — presumivelmente o Mar da Galileia — e a multidão o seguiu. Alguns interpretam a situação como uma fuga, pois este versículo segue imediatamente ao relato do complô contra Jesus, mas é possível que Marcos estivesse apenas relatando a saída de Cafarnaum para o mar[1]. Marcos conta que a multidão vinha «....da Judeia, de Jerusalém, da Idumeia, dalém do Jordão e das circunvizinhanças de Tiro e de Sidom» (Marcos 3:7–8), uma tentativa de demonstrar que não eram apenas os galileus que seguiam Jesus. Porém, ele não deixa claro se estas pessoas eram judeus ou gentios[1]. Dali, Jesus pediu aos seus discípulos que preparassem um barco para ele para que «por causa da multidão, a fim de que não o apertasse, porque curou a muitos, de modo que todos os que padeciam qualquer doença, se arrojavam a ele para o tocar.» (Marcos 3:9–10). Neste trecho, Marcos novamente conta que que Jesus pedia aos curados que não contassem aos outros o que ele tinha feito, continuando o desenvolvimento do chamado "Segredo Messiânico".

Escolhendo os Doze[editar | editar código-fonte]

Jesus convidando os doze apóstolos, um dos episódios de Marcos 3.
1481. Afresco de Ghirlandaio na Capela Sistina, no Vaticano.

Marcos continua seu relato afirmando que Jesus subiu num monte e chamou consigo doze escolhidos. Depois de chamá-los de "apóstolos"[a], Jesus concede-lhes o poder de pregar e a «autoridade de expelirem os demônios» (Marcos 3:15).

Além deste trecho (vide nota), Marcos 6:30 pode ser a única outra vez que o próprio Jesus utiliza a palavra, que é frequentemente utilizada por Lucas e por Paulo de Tarso[7]. É provavelmente simbólico que o evento ocorre no alto de um monte, um local frequentemente utilizado pelas pessoas para se encontrarem com Deus na tradição judaica[8], como aconteceu com Moisés no alto do Monte Sinai. Marcos representa Jesus atraindo grandes multidões para ouvi-lo e sempre mudando de lugar, de montanhas para lagos ou para casas, criando um cenário que alguns acreditam ser pouco plausível[9], embora plausíveis de acordo com as características geográficas da região.

Os apóstolos nomeados em Marcos 3:16–19 são Pedro, Tiago, João, André, Filipe, Bartolomeu, Mateus, Tomé, um segundo Tiago, Tadeu, Simão, o Zelote e finalmente Judas Iscariotes.

Uma casa dividida[editar | editar código-fonte]

Jesus segue então para uma casa e a multidão o segue, o que, de acordo com Marcos, não permitiu que Jesus e seus discípulos conseguissem comer. «Quando seus parentes souberam disto, saíram para o segurar; porque diziam: Ele está fora de si» (Marcos 3:21), o que pode ser interpretado como sendo a família de Jesus acusando-o de ser "louco" ou repetindo o que outros estavam dizendo sobre ele[10]. Seja qual for o motivo, eles tentam controlá-lo, talvez para tentar impedir que ele envergonhasse a família<[10]. Porém, há um desacordo entre a opinião que eles tinham de Jesus e a multidão que o seguia[11], mas não é claro pelo texto em Marcos se era a pregação de Jesus ou o fato de ele não conseguir comer que irritou sua família. Uns poucos manuscritos antigos substituem "seus parentes" por "os escribas e outros", mas estes casos são amplamente considerados como sendo alterações posteriores, provavelmente para diminuir o impacto da impressão que Jesus deixou entre seus próprios familiares[10].

Escribas de Jerusalém — que Mateus, mas não Marcos, afirma que eram fariseus — vieram para acusá-lo de algo muito pior do que loucura: estar possuído por Belzebu[b] e de expulsar demônios com a ajuda do "chefe dos demônios"[12]. Eles parecem não duvidar mais que Jesus é de fato capaz de expulsar demônios e parecem acreditar que o poder dele está além das capacidades humanas e só pode ser sobrenatural[10]. A acusação de Jesus estar utilizando poderes malignos foi utilizada contra ele por algum tempo ainda depois de sua morte, principalmente para afastar seus seguidores[12]. O Jesus Seminar acredita que a versão em Lucas 11 (11 15:17) é "vermelha", ou seja, "autêntica", e a chama de "A controvérsia de Belzebu". Já a passagem em Marcos (Marcos 20:21 foi considerada "rosa", "uma boa aproximação do que Jesus fez") e é chamada de "Os parentes de Jesus vieram pegá-lo". O mesmo aconteceu com Marcos 3:31–35, Mateus 12:46–50 e Evangelho de Tomé 99:1-3[13], que ele chama de "Verdadeiros parentes de Jesus".

Jesus e sua família.
Por William Brassey Hole.

A resposta de Jesus é um dos seus ditos mais famosos[c]:

«Como pode Satanás expelir a Satanás? Se um reino se levantar contra si mesmo, esse reino não pode subsistir; se uma casa se levantar contra si mesma, essa casa não poderá permanecer. Se Satanás se tem levantado contra si mesmo e está dividido, ele não pode subsistir, antes tem fim. Pois ninguém pode entrar na casa do valente e roubar-lhe os bens, sem primeiro amarrá-lo; e então lhe saqueará a casa. Em verdade vos digo: Que aos homens serão perdoados todos os pecados, e as blasfêmias que proferirem; mas quem blasfemar contra o Espírito Santo, nunca mais terá perdão, pelo contrário é réu de um pecado eterno (Marcos 23:28)

No final de sua resposta, Jesus afirma que "todos os pecados" podem ser perdoados, exceto um pecado eterno, como uma blasfêmia contra o Espírito Santo. O próprio Marcos apresenta sua explicação sobre o motivo de Jesus ter dito isto, afirmando que ele o fez por que estavam acusando-o de estar possuído, o que, nas palavras do evangelista, implicava em dizer que o poder de Deus era maligno e em se recusar a ver a obra de Deus em Jesus[10]. Este episódio aparece também em Mateus 12 (Mateus 12:31–32), em Lucas 12 (Lucas 12:10 e no versículo 44 do Evangelho de Tomé[13], onde é chamado de "pecado imperdoável".

A mãe e os irmãos de Jesus chegam em seguida para levá-lo. Jesus responde, falando para a multidão, «Eis minha mãe e meus irmãos! Aquele que fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe.» (Marcos 3:34–35). A resposta de Jesus, de que será sua família aquele que o seguir, é, de acordo com Kilgallen, a forma que Jesus encontrou para sublinhar "...o fato de que sua vida foi alterada de tal forma que seus laços familiares não estão mais acima dos outros a quem ele ensina sobre o reino de Deus]"[15], ou seja, a lealdade a Deus estaria acima da lealdade a família, uma ruptura com o costume da época[16] e que ainda hoje deixa alguns perturbados, principalmente pelo conflito na relação familiar de Jesus[17]. A família de Jesus é mencionada novamente em Marcos 6 (Marcos 6:3) e no versículo 99 de Tomé[13].

Estes incidentes aparecem nos três evangelhos sinóticos. Em Mateus 12 (Mateus 12:22–50) e em Lucas 8 (Lucas 8:19–21) e 11 (Lucas 11:14–28). Porém, nenhum dos dois afirma que a família de Jesus achou que ele estava "fora de si". João, apesar de não mencionar nada disto, relata em João 7 como "...mesmo seus irmãos não acreditaram nele", pois Jesus não quis ir à Festa dos Tabernáculos com eles para realizar milagres, apesar de depois ter ido em segredo. João 6:66 diz "Nisto muitos de seus discípulos se retiraram, e não andavam mais com ele."

Sobre os "irmãos de Jesus", há muita controvérsia sobre a palavra utilizada e o real significado dela, com alguns defendendo que seriam meio-irmãos (filhos de José) ou primos. A visão oficial da Igreja Católica e da Igreja Ortodoxa é que Maria permaneceu sempre virgem e, portanto, não poderia ter tido outros filhos além de Jesus. Apenas Tertuliano parece ter questionado este fato nos primeiros anos do cristianismo. O islã também defende que Maria foi sempre virgem e também muitos dos primeiros protestantes, embora a maioria hoje em dia não mais defenda esta doutrina e aceite que Marcos cita irmãos de fato de Jesus. Uns poucos manuscritos antigos trazem também "e suas irmãs" em Marcos 3:32[16].

Esta seção é um claro exemplo da técnica narrativa de Marcos na qual uma história está inserida dentro de outra. Marcos conseguiu destacar duas reações a Jesus e suas doutrinas e atos: uma de fé, como a de seus seguidores, e a outra de descrença e hostilidade[11]. No capítulo seguinte, Jesus explica o efeito de seus ensinamentos nos outros na Parábola do Semeador.

Ver também[editar | editar código-fonte]


Precedido por:
Marcos 2
Capítulos do Novo Testamento
Evangelho de Marcos
Sucedido por:
Marcos 4

Notas[editar | editar código-fonte]

  1. Alguns manuscritos de Marcos não relatam Jesus chamando-os de "apóstolos" em Marcos 3:4, como é o caso da Tradução Brasileira da Bíblia (que é baseada na tradução de João Ferreira de Almeida), utilizada aqui. A Nova Versão Internacional, por exemplo, cita o trecho (veja Marcos 3:14 (NVI).
  2. Acredita-se que o nome "Belzebu" signifique "senhor das moscas", "senhor do esterco", "senhor das alturas" ou ainda "senhor do habitáculo", mas não existe uma versão que seja consenso sobre seu significado exato[10].
  3. Marcos geralmente retrata Jesus utilizando analogias, metáforas ou charadas, que ele chama indistintamente de parábolas[14]

Referências

  1. a b c d Brown et al. 603
  2. Este artigo incorpora texto da Enciclopédia Judaica (Jewish Encyclopedia) (em inglês) de 1901–1906 (artigo "Jesus"), uma publicação agora em domínio público.
  3. a b Kilgallen 63
  4. Kilgallen 66-67
  5. Kilgallen 67
  6. Kilgallen 68-69
  7. «Strong's G652». Consultado em 2 de janeiro de 2015. Arquivado do original em 21 de dezembro de 2012 
  8. Kilgallen 71
  9. Miller 19
  10. a b c d e f Brown et al. 604
  11. a b Kilgallen 72
  12. a b Kilgallen 73
  13. a b c Evangelho de Tomé em português.
  14. Miller 20
  15. Kilgallen 75
  16. a b Brown et al. 605
  17. Brown 131

Bibliografia[editar | editar código-fonte]

Ligações externas[editar | editar código-fonte]