Movimento eugênico brasileiro

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.

O movimento eugênico brasileiro foi um movimento racista e pseudocientífico do início do século XX, a que setores da intelectualidade e das elites políticas brasileiras aderiram com entusiasmo, o que possibilitou a institucionalização do movimento eugênico no Brasil e a publicação de um grande número de livros, teses acadêmicas e artigos em revistas e jornais de grande circulação, inclusive com a publicação de um periódico próprio, o Boletim de Eugenia. Apesar de apresentar características próprias, adaptadas à realidade social e ao conhecimento científico brasileiro, esse movimento ocorreu seguindo o interesse pela eugenia em países como Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra e França.

Para as elites brasileiras, a eugenia era um símbolo de modernidade, uma ferramenta científica capaz de colocar o Brasil no trilho do progresso e do tão sonhado "concerto das nações".[1] Entre os temas mais tratados pelos eugenistas brasileiros estavam a educação higiênica e sanitária, a seleção de imigrantes, a educação sexual, o controle matrimonial e da reprodução humana e debates em torno da miscigenação, branqueamento e a regeneração racial.

Em linhas gerais, o movimento eugênico brasileiro manteve forte relação com as campanhas sanitárias e educacionais, tendo entre os principais entusiastas figuras prestigiadas da intelectualidade do período, mobilizando médicos, políticos e educadores, como Belisário Penna, Levy Carneiro, Renato Ferraz Kehl, [nota 1] Miguel Couto, Ernani Lopes, J. Porto-Carrero, Murilo de Campos, Heitor Carrilho, Fernando de Azevedo,[2] entre outros. Constituindo-se como um movimento polissêmico, difundiu-se principalmente em perspectivas de caráter “preventivo” e “positivo”, relacionadas às questões sanitárias e educacionais. Contudo, ideias mais radicais, como propostas de esterilização e segregação, também fizeram parte do debate eugênico brasileiro, mobilizando intelectuais engajados no debate da ciência eugênica no cenário nacional da época.[3] Vale destacar a atuação do médico e eugenista Renato Ferraz Kehl, figura central na divulgação da eugenia no país, responsável pela criação da pioneira Sociedade Eugênica de São Paulo, em 1918, tornando-se um dos principais divulgadores da eugenia no Brasil e publicando inúmeros livros sobre a temática. No final dos anos vinte, Kehl intensificou a difusão de propostas mais atreladas a orientações “negativas”, ao estilo das preconizadas no norte da Europa e nos Estados Unidos; dentre suas iniciativas, destaca-se a criação do "Boletim de Eugenia", publicação dedicada à propaganda eugênica, periódico que se manteve em circulação entre os anos de 1929 e 1933, tornando-se um porta-voz de ideias e proposições mais severas e menos inclinadas em admitir a importância e centralidade das medidas educacionais e sanitárias nos propósitos mais amplos da ciência eugênica. Embora o modelo de eugenia desenvolvido no Brasil tenha sido menos radical do que aquele divulgado nos Estados Unidos e em países do norte da Europa, setores do movimento eugênico brasileiro defenderam medidas mais extremas, como é possível perceber nas polêmicas em torno da esterilização eugênica, da seleção de imigrantes e das posições divergentes sobre a valorização do "mestiço brasileiro".[4]

Dentre as principais fontes para o estudo da eugenia no Brasil, destacam-se os conjuntos documentais formados pelos "Annaes de Eugenia" (1919), publicação reunindo as atividades e conferências da Sociedade Eugênica de São Paulo; as "Actas e Trabalhos" do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia (1929), sob os auspícios do influente presidente da Academia Nacional de Medicina (ANM), Dr. Miguel Couto; o "Boletim de Eugenia" (1929-1933), criado por Kehl para dar novo fôlego à "cruzada eugênica" no Brasil; e os "Archivos Brasileiros de Hygiene Mental", periódico criado em 1925, uma publicação da Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM).[5] Os "Archivos Brasileiros de Hygiene Mental" eram o órgão oficial de difusão e propaganda dos princípios da Liga Brasileira de Higiene Mental e seu instrumento de intercâmbio científico em escala nacional e internacional.[6]

Histórico[editar | editar código-fonte]

Centro Hartheim de eutanásia na Áustria - Eugenia da era nazista.

As primeiras publicações sobre eugenia apareceram no Brasil em meados dos anos 1910,[7] a partir de artigos publicados na imprensa do centro do país e em teses acadêmicas, especialmente em Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia. Ainda em 1918 foi fundada a Sociedade Eugênica de São Paulo, a primeira do gênero da América Latina. Sob a liderança de Renato Ferraz Kehl, o principal entusiasta da eugenia no Brasil, a Sociedade reuniu mais de uma centena de associados, a maioria formada por médicos de São Paulo e do Rio de Janeiro.[1][4]

Até a data de sua morte (1974), ele defendeu a pertinência da eugenia como o remédio para os vários males da sociedade brasileira.[8]

Durante os anos 1920, o Movimento Eugênico Brasileiro se organizaria em torno de outras instituições, como foi o caso da Liga Brasileira de Higiene Mental, instituição que incorporou o ideário eugênico com bastante interesse.[9] Em 1929, o movimento se fortaleceria ainda mais com a criação do Boletim de Eugenia, periódico fundado e dirigido por Renato Ferraz Kehl, o incansável divulgador da eugenia no Brasil e na América Latina. Neste mesmo ano seria realizado o Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, organizado em comemoração ao centenário da Academia Brasileira de Medicina.

Presidido pelo médico legista e antropólogo Edgard Roquette-Pinto e secretariado por Renato Ferraz Kehl, o evento ficou marcado como um dos principais congressos de eugenia da América Latina, tendo reunido importantes figuras da comunidade intelectual brasileira e latino-americana. No início dos anos 1930, no auge das discussões sobre controle eugênico da imigração, dos matrimônios e da natalidade, eugenistas brasileiros fundariam a Comissão Central Brasileira de Eugenia, com o objetivo de assessorar o governo e as autoridades públicas em assuntos relacionados ao aperfeiçoamento eugênico da população.[4]

Pesquisadores brasileiros[10][editar | editar código-fonte]

Monteiro Lobato

A historiadora Nancy Stepan foi uma das primeiras pesquisadores a fazer uma análise geral sobre a eugenia da América Latina. Seus estudos apontam para o fato de que "a forte mestiçagem inviabilizaria o Brasil como nação", segundo os padrões de eugenia americanos e europeus, que advogavam a existência de uma raça ariana superior, sem mistura de raças.[11][12]

Entre os eugenistas brasileiros que mais se empenharam na organização e divulgação do movimento no Brasil se encontram Renato Kehl, Monteiro Lobato (1882-1948), Belisário Penna (1868-1939), Octávio Domingues e Edgard Roquette-Pinto (1884-1954).[13] Importante assinalar a participação, que se destacava do ideário do movimento eugenista, de intelectuais/educadores como Belisário Penna, Roquette-Pinto e Juliano Moreira.[14] Tanto a ideia de "branqueamento" ou de "crítica à miscigenação", para não mencionarmos outros pressupostos abertamente racistas do movimento, estavam ausentes do corpo central do pensamento e da ação pública desses .

Ver também[editar | editar código-fonte]

Notas e referências

Notas

  1. Renato Ferraz Kehl fundou em janeiro de 1929 o jornaleto Boletim de Eugenia, que funcionava na Rua Smith Vasconcellos, 63, Águas Férreas, Rio de Janeiro e do qual era editor, diretor e Presidente.

Referências

  1. a b STEPAN, Nancy. “A Eugenia no Brasil – 1917 a 1940”. 2004. In: HOCHMAN, Gilberto. & ARMUS, Diego (orgs). Cuidar, Controlar, Curar: ensaios históricos sobre saúde e doença na América Latina e Caribe. Rio de Janeiro: Ed.Fiocruz. pp. 331-391.
  2. Boletim de Eugenia, Volume I, N.º I, de janeiro de 1929.
  3. Wegner, Robert & Souza, Vanderlei Sebastião de (2013). «dx.doi.org/10.1590/S0104-59702013005000001.». Hist. cienc. saude-Manguinhos. doi:10.1590/s0104-59702013005000001. Verifique |doi= (ajuda) 
  4. a b c SOUZA, Vanderlei Sebastião de. A política biológica como projeto: a “eugenia negativa” e a construção da nacionalidade na trajetória de Renato Kehl (1917-1932). Dissertação de Mestrado (História das Ciências), Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, 2006.
  5. BONFIM, P. R. (2013). A Educação no Movimento Eugênico Brasileiro (PDF). Itatiba, SP: Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade São Francisco (USF). Consultado em 17 de fevereiro de 2017 
  6. Carvalho, Alexandre Magno Teixeira de (junho de 1999). «Trabalho e higiene mental: processo de produção discursiva do campo no Brasil». História, Ciências, Saúde-Manguinhos. 6 (1): 133–156. ISSN 0104-5970. doi:10.1590/S0104-59701999000200007 
  7. «Revista Cordis 7 - Artigo - Dones Janz.pdf» (PDF). www4.pucsp.br 
  8. CARVALHO, Leonardo Dallacqua de. «A eugenia no humor da Revista Ilustrada Careta: raça e cor no Governo Provisório (1930-1934).» (PDF) 
  9. REIS, José Roberto Franco. Higiene Mental e Eugenia. O projeto de regeneração nacional da Liga Brasileira de Higiene Mental (1920-30). Dissertação (Mestrado em História) - Unicamp, Campinas, 1994
  10. Castro Santos, Luiz A. de. «O pensamento sanitarista na Primeira República: uma ideologia de construção da nacionalidade» (PDF). DADOS - REVISTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS Rio de Janeiro, v.28, n.2, p.193-210, 1985. Consultado em 8 de abril de 2015 
  11. «A Hora da Eugenia: raça, gênero e nação na América Latina - Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz): Ciência e tecnologia em saúde para a população brasileira». portal.fiocruz.br 
  12. «Microsoft Word - 9rresenha2.doc - 43». www.teoriaepesquisa.ufscar.br 
  13. intelectuais-eugenia-RicardoSantos.pdf Pagina 9 - Os Intelectuais e a Eugenia por Ricardo Augusto dos Santos
  14. «Juliano Moreira: quem foi o psiquiatra brasileiro negro homenageado pelo Google». CNN Brasil. Consultado em 3 de setembro de 2021 

Bibliografia citada, em ordem alfabética[editar | editar código-fonte]

  • BONFIM, Paulo Ricardo. Educar, Higienizar e Regenerar: Uma História da Eugenia no Brasil. Jundiaí, SP: Paco Editorial, 2017.
  • BONFIM, Paulo Ricardo. A Educação no Movimento Eugênico Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade São Francisco (USF), Itatiba, 2013.
  • CARVALHO,Leonardo Dallacqua de. A eugenia no humor da Revista Ilustrada Careta: raça e cor no Governo Provisório (1930-1934). 2014. 315 f. Dissertação (Mestrado em História). – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2014.
  • CASTRO SANTOS, Luiz A. de. O pensamento sanitarista na Primeira República: uma ideologia de construção da nacionalidade. Rio de Janeiro, DADOS - Revista de Ciências Sociais, v.28, n.2, p. 193-210, 1985.
  • REIS, José Roberto Franco. Higiene Mental e Eugenia. O projeto de regeneração nacional da Liga Brasileira de Higiene Mental (1920-30). Dissertação (Mestrado em História) - Unicamp, Campinas, 1994.
  • SANTOS, Ricardo Augusto dos. Pau que nasce torto, nunca se endireita! E quem é bom já nasce feito? Esterilização, Saneamento e Educação: uma leitura do eugenismo em Renato Kehl (1917-37). Tese de doutorado (História Social), Universidade Federal Fluminense/UFF, 2008.
  • SOUZA, Vanderlei Sebastião de. A política biológica como projeto: a “eugenia negativa” e a construção da nacionalidade na trajetória de Renato Kehl (1917-1932). Dissertação de Mestrado (História das Ciências), Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, 2006.
  • STEPAN, Nancy. “A Eugenia no Brasil – 1917 a 1940”. 2004. In: HOCHMAN, Gilberto. & ARMUS, Diego (orgs). Cuidar, Controlar, Curar: ensaios históricos sobre saúde e doença na América Latina e Caribe. Rio de Janeiro: Ed.Fiocruz. pp. 331–391.
  • STEPAN, Nancy. “A hora da eugenia”: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005.
  • WEGNER, Robert  and  SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Eugenia 'negativa', psiquiatria e catolicismoembates em torno da esterilização eugênica no Brasil. Hist. cienc. saude-Manguinhos [online]. 2013, vol.20, n.1, pp. 263–288.  Epub Feb 20, 2013. ISSN 0104-5970.  http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59702013005000001.