Química da dor

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Introdução[editar | editar código-fonte]

A sensação de dor é muito importante para a sobrevivência. Segundo Grangeiro et al. (2008), a International Association for the Study of Pain define dor como sendo uma “experiência sensorial e emocional desagradável que é associada ou descrita em termos de lesões teciduais”. Estímulos que provoquem lesão tecidual conduzem à dor, como calor, frio, pressão e movimentos bruscos. A injúria tecidual, com a decorrente resposta inflamatória, normalmente relaciona-se com a sensação de dor devido à redução do limiar doloroso a estímulos térmicos, mecânicos ou químicos em virtude da sensibilização dos nociceptores. Esta condição é chamada de hiperalgesia, ou seja, uma resposta aumentada a um estímulo que é normalmente doloroso. A hiperalgesia está associada, em parte, à ação de mediadores inflamatórios proteicos, como as citocinas, e lipídicos, como prostaglandinas que, em conjunto com outras substâncias liberadas, são responsáveis pela manutenção e amplificação da resposta imunológica. Substâncias como prostaglandinas possuem a capacidade de sensibilizarem os nociceptores, reduzindo o limiar de excitabilidade destes receptores e ajudando na ação de substâncias álgicas, ou seja, aquelas que estimulam diretamente os nociceptores. Portanto, prostaglandinas são classificadas como substâncias hiperalgésicas. Abaixo, encontram-se os mecanismos de síntese de substâncias hiperalgésicas e como são capazes de provocarem dor. [1] [2]

Cicloxigenases e Síntese de Prostaglandinas[editar | editar código-fonte]

Os compostos da família das prostaglandinas, dos leucotrienos e tromboxanos são classificados como eicosanoides. Eicosanoides são derivados de ácidos graxos e variam grandemente quanto aos efeitos que provocam em diferentes tecidos de vertebrados. Todos os eicosanoides derivam do ácido poliinsaturado de 20 carbonos, ácido araquidônico, 20:4 (∆5,8,11,14), do qual provém seu nome genérico (do grego eikosi, “vinte”).[3] A síntese de eicosanoides inicia-se por diversos estímulos, como químicos ou mecânicos, que ativam receptores de membrana acoplados a uma proteína regulatória (proteína G), resultando na ativação da fosfolipase A2 ou no aumento dos níveis intracelulares de íons Ca2+. A fosfolipase A2 cliva fosfolipídios de membrana, especialmente fosfatidilcolina e fosfatidiletanolamina, para liberar o ácido araquidônico. O ácido araquidônico sintetizado e liberado será substrato para duas vias enzimáticas distintas: a via das cicloxigenases, responsável pela síntese de prostaglandinas e de tromboxanos, e a via das lipoxigenases, responsável pela síntese de leucotrienos, lipoxinas e outras substâncias (Figura 1). [4]

A cicloxigenase (COX) é a enzima fundamental responsável por um dos passos sequenciais na síntese de prostaglandinas, sendo também denominada de Prostaglandina Endoperóxido Sintetase. A enzima foi isolada em 1976. Identificou-se, em 1991, um gene que codificava uma segunda isoforma da enzima, sendo esta chamada de cicloxigenase-2. Hoje, já se sabe que existem dois genes que expressam duas isoformas da enzima: a cicloxigenase-1 (COX-1) e a cicloxigenase-2 (COX-2). A estrutura proteica primária de ambas as isoformas é semelhante e as enzimas realizam basicamente a mesma reação. [4]


A COX-1, a primeira isoforma a ser identificada, é constitutiva, isto é, está presente nas células em condições fisiológicas, sendo encontrada em vasos sanguíneos, plaquetas, estômago e rins, principalmente. A COX-1 induz a síntese de prostaglandinas que apresentam papel importante na regulação de funções fisiológicas como citoproteção da mucosa gástrica, homeostasia renal e função plaquetária. A COX-2 é a isoforma indutível, ou seja, é expressa em resposta a estímulos inflamatórios, como na presença de citocinas (interleucina-1, interleucina-2, fator alfa de necrose tumoral) e de outros fatores e encontra-se em células envolvidas no processo inflamatório como macrófagos e monócitos. A COX-1 e COX-2 são proteínas integrais, ou seja, proteínas ligadas permanentemente à membrana, e se encontram na camada interna da bicamada lipídica de fosfolipídios da membrana celular. As isoformas apresentam homologia genética de aproximadamente 60% em suas regiões codificantes, e seus genes localizam-se nos cromossomos 9 (COX-1) e 1 (COX-2). Todos os resíduos de aminoácidos caracterizados como fundamentais para a atividade catalítica das enzimas são preservados entre as isoformas (Figura 2). [2] [4]


As COXs possuem duas atividades diferentes. Inicialmente, a enzima, por sua atividade cicloxigenase, oxida e cicliza o ácido araquidônico em um intermediário endoperóxido cíclico instável designado prostaglandina G2 (PGG2). Logo após, a mesma enzima, por sua atividade peroxidase, reduz a PGG2 em prostsglandina H2 (PGH2) (Figura 3). É importante saber que o local ativo da COX com a atividade cicloxigenase encontra-se em um longo canal hidrofóbico formado no centro de alfa-hélices associadas à membrana. Desta maneira, o ácido araquidônico tem acesso direto ao local ativo sem sair da membrana. A PGG2 e PGH2, que são instáveis e apresentam pouca atividade, serão substratos para a formação de diversas prostaglandinas (PGE2, PGD2, PGF2), prostaciclina (PGI2) e tromboxano A2 (TXA2), chamados eicosanoides. [2] [4]

As prostaglandinas possuem um anel de cinco membros que provém da cadeia do ácido araquidônico (Figura 4). De maneira geral, as prostaglandinas atuam em receptores acoplados a proteína G, resultando na estimulação de sistemas efetores responsáveis pela liberação de segundos mensageiros em diversos tecidos. Estes receptores podem ser denominados como EP, DP, FP, IP e TP, segundo seus respectivos ligantes eicosanoides: PGE2, PGD2, PGF2, PGI2, TXA2, respectivamente. Em termos moleculares, geralmente a ativação de receptores EP2, EP3, EP4, DP e IP, levam à ativação da adenilato ciclase, provocando um aumento da concentração intracelular de adenosina-3’, 5’-monofosfato cíclico (AMPc). A ativação dos receptores EP1, FP e TP leva à ativação da fosfolipase C, ocorredo a formação de diacilglicerol e 1,4,5-trifosfato de inositol, que resulta na ativação de reações em cascata de proteínas quinases e aumento intracelular de íons Ca2+. [2] [3] [4]

Função das prostaglandinas em geral[editar | editar código-fonte]

Segundo Nelson e Cox (2002) e Carvalho et al (2004), por regularem a síntese de AMPc e a concentração de íons Ca2+, as prostaglandinas afetam um amplo espectro de funções celulares e tissulares, incluindo, vasodilatação e vasoconstrição; contração ou relaxamento da musculatura brônquica e uterina durante menstruação e parto; hipotensão; ovulação; metabolismo ósseo; afetam o fluxo sanguíneo a órgãos específicos, o ciclo sono-vigília e as sensibilidades de certos tecidos a hormônios, como epinefrina e glucagon; proteção da mucosa gástrica; inibição da secreção ácida gástrica; resposta imunológica; hiperalgesia, entre outros. [3] [4]

Função das prostaglandinas na inflamação e hiperalgesia[editar | editar código-fonte]

As prostaglandinas quando liberadas executam importante papel na formação dos sinais e sintomas da inflamação. Segundo Grangeiro et al (2008), dentre as diversas prostaglandinas produzidas, PGE2 e PGI2 representam os principais mediadores inflamatórios. Foi demonstrado em estudos de Ferreira (1979) que essas prostaglandinas são hiperalgésicas, isto é, substâncias que não provocam dor de modo direto, porém potencializam a resposta nociceptiva produzida por bradicinina e histamina. Constatou-se nesses estudos que PGE2 e PGI2 são capazes de hipersensibilizar os nociceptores das fibras C a alguns estímulos, como mecânicos e químicos. [2] [4]

Apesar de os eventos moleculares envolvidos na hiperalgesia ainda necessitarem de elucidações, evidências propõem que níveis intracelulares elevados de AMPc e íons Ca2+ estão associados com a regulação positiva dos nociceptores. Desta forma, a colaboração das prostaglandinas para o desenvolvimento da dor é tanto periférica quanto central. Perifericamente, esses mediadores elevam a sensibilidade de terminações nervosas sensoriais, os nociceptores. Através da ativação de receptores EP, inicia-se uma sequência de fosforilações de canais de sódio por proteína quinase A, nos terminais do nociceptor, aumentando a excitabilidade, diminuindo o limiar da dor e intensificando a ação de estímulos dolorosos como o calor ou bradicinina. Segundo Grangeiro et al(2008), constatou-se na década de 1990 que as prostaglandinas cumprem seus efeitos pró-nociceptivos, em parte, atuando no sistema nervoso central (SNC), principalmente ao nível de medula espinhal. Segundo Carvalho et al (2004), tem sido demonstrado que as prostaglandinas são sintetizadas em neurônios e vasos do SNC atuando em várias funções centrais, como o controle do sono e da vigília, a termogênese febril e a transmissão nociceptiva. Segundo Ferreira e Lorenzeti (1996), a injeção intratecal de PGE2 determinou profunda sensibilização dolorosa em modelos experimentais de comportamento. Portanto, pode-se observar que prostaglandinas estão grandemente envolvidas com as vias da dor. [2] [4]

Inibidores das Cicloxigenases[editar | editar código-fonte]

Figura 5: Estrutura da molécula de salicina. Adaptado de: Os botões de Napoleão: as 17 moléculas que mudaram a história.
Figura 6: Oxidação do ácido salicilado em ácido salicílico. Adaptado de: Os botões de Napoleão: as 17 moléculas que mudaram a história.
Figura 7: Ácido salicílico e ácido acetilsalicílico - principais diferenças. Adaptado de: Os botões de Napoleão: as 17 moléculas que mudaram a história.

Em 1893, Felix Hofmann, um químico que trabalhava para a companhia Bayer, decidiu investigar as propriedades de compostos relacionados com o ácido salicílico, uma molécula obtida da salicina, que possuía propriedades analgésicas, sendo isolada originalmente da casca de árvores do gênero do salgueiro (Salix), em 1827 (Figura 5). A salicina é capaz de se decompor em: glicose e ácido salicilado, que pode ser oxidado em ácido salicílico (Figura 6). O ácido salicílico é capaz de baixar a febre e amenizar a dor, além de ser antiinflamatório e muito mais potente do que a salicina, encontrada naturalmente no gênero Salix. Porém por ser muito irritante para a mucosa gástrica, a salicina teve seu valor medicinal reduzido. O interesse de Hofmann em moléculas como o ácido salicílico nasceu em virtude de sua preocupação com o pai, que possuía artrite reumatoide, sendo pouco aliviada com a administração de salicina. A perspectiva de que as propriedades antiinflamatórias do ácido salicílico permanecem, porém as corrosivas diminuíssem, motivou Hofmann a dar ao pai um derivado do ácido salicílico – o ácido acetilsalicílico (AAS). No AAS, o grupo acetila (CH3CO) substitui o H do grupo fenólico OH do ácido salicílico (Figura 7). A molécula de fenol, por ser ácida, era capaz de irritar a mucosa gástrica; possivelmente Hofmann avaliou que a conversão do grupo OH presente no anel aromático num grupo acetila poderia reduzir suas características irritantes. O experimento de Hofmann foi bem-sucedido, pois a forma acetilada do ácido salicílico provou ser eficaz e bem tolerada, convencendo a companhia Bayer, em 1899, a comercializar pequenas quantidades de “aspirina”, nome comercial do ácido acetilsalicílico, em pó. [5]

Desde essa época, os agentes antiinflamatórios não esteroidais (AINES) ocupam a classe de medicamentos mais amplamente prescrita e utilizada em todo o mundo. No entanto, o mecanismo de ação desses agentes só foi elucidado em 1971, quando o médico e farmacologista britânico John Vane, laureado com o Prêmio Nobel da Medicina em 1982, propôs que os AINES, como a aspirina, inibiam a COX, impedindo a síntese de prostaglandinas e prevenindo a sensibilização de nociceptores. [2] [4]

Os efeitos terapêuticos (analgésicos, antitérmicos e antiinflamatórios) e os efeitos indesejáveis (toxicidade gastrintestinal e renal) apresentados pelos inibidores da COX se devem à inibição da produção de prostaglandinas. A descoberta da COX-2, isoforma induzida e expressa preferencialmente durante o processo inflamatório, inspirou a pesquisa para o desenvolvimento de medicamentos mais seletivos e menos tóxicos e estimulou o surgimento de uma nova classe de antiinflamatórios, denominados COXIBs – inibidores seletivos da COX-2. Esses compostos diferem-se dos AINES convencionais, que possuem potência similar sobre as duas isoformas ou inibem preferencialmente a COX-1. Os COXIBs dispõem de eficácia analgésica e antiinflamatória similar aos AINES, no entanto oferecem maior tolerabilidade gastrintestinal. [2] [4]

Os primeiros representantes dos COXIBs a entrarem no mercado foram o celecoxib e rofecoxib, em 1999. A segunda geração de COXIBs compreende valdecoxib, etoricoxib, parecoxib (um pró-fármaco injetável do valdecoxib) e lumiracoxib. Estes compostos possuem algumas diferenças em sua estrutura química. Diferentemente dos AINEs convencionais que apresentam um grupo carboxila na sua estrutura, celecoxib, valdecoxib e parecoxib são sulfonamidas; rofecoxib e etoricoxib são metilsulfonas, enquanto lumiracoxib é um derivado do ácido fenilacético. Os anéis contendo os grupamentos sulfídrilicos dos COXIBs ligam-se fortemente ao canal catalítico da COX-2 e interagem fracamente com o sítio ativo da COX-1, segundo Kurumbail et al. (1996). [2] Alguns estudos multicêntricos foram realizados a fim de avaliar determinados COXIBs, como celecoxib e rofecoxib. Estes estudos demonstraram menor incidência de eventos e complicações gastrintestinais em pacientes comparando-se à determinados AINES, como ibuprofeno e naproxeno. Entretanto, os graves efeitos cardiovasculares de alguns inibidores seletivos da COX-2 evidenciados a partir de ensaios clínicos multicêntricos obrigaram a retirada de rofecoxib, em setembro de 2004, e de valdecoxib, em abril de 2005, do mercado pelas companhias farmacêuticas. [2] As pesquisas vêm recebendo incentivos a fim de que sejam formuladas novas estratégias que reduzam os riscos e elevem a tolerabilidade e segurança destes fármacos.






Referências

  1. SILVA, J.A.; RIBEIRO-FILHO, N.P. A dor como um problema psicofísico. Revista Dor, 12(2): 138-151, 2011.
  2. a b c d e f g h i j GRANGEIRO, N.M.G.C. et al. Enzimas Ciclooxigenases 1 e 2: Inflamação e Gastro- Cardio proteção. Revista Eletrônica Pesquisa Médica, 2(3): 13-20, 2008
  3. a b c NELSON, D.L.; COX, M.M. Lehninger Princípios de Bioquímica. São Paulo: 3 edição, 2002. p. 291-292.
  4. a b c d e f g h i j CARVALHO, W.A.; CARVALHO, R.D.S; RIOS-SANTOS, F. Analgésicos Inibidores Específicos da Ciclooxigenase-2: Avanços Terapêuticos. Revista Brasileira de Anestesiologia, 54(3): 448-464, 2004.
  5. LE COUTEUR, P.; BURRESON, J. Os botões de Napoleão: as 17 moléculas que mudaram a história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. p. 170-171.