Aborto na Argentina

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Aborto na Argentina
Legal
Mapa da Argentina
Situação atual
Legalidade Legal em todos os casos, durante as primeiras 14 semanas de gestação
Ano da lei 2020
Aborto ilegal
Abortos ilegais
(por ano)
460 mil a 615 mil
Fonte: Pesquisa encomendada pelo Ministério da Saúde do país
Mortalidade 100 aproximadamente por ano

O aborto na Argentina será legalizado durante as primeiras 14 semanas de gestação, 10 dias a partir do dia 30 de Dezembro de 2020, data em que o senado argentino aprovou a legalização da prática no país. Desde 2006, o Código Penal argentino estabelece punições severas às mulheres que praticam o mesmo e punições específicas aos médicos e outros agentes da saúde que o realizam.[1] O aborto não é considerado crime segundo a legislação apenas em dois casos: se a saúde da mulher está em risco por causa da gravidez ou se a gravidez foi resultado de um estupro.

Em 2012 o aborto foi legalizado pela Suprema Corte da argentina para gravidezes resultantes de estupro. Até então, apenas as mulheres com insanidade mental podiam passar pelo procedimento.[2][3]

As complicações por aborto são a primeira causa de morte materna na Argentina (30% do total ou cerca de 100 mortes anuais). Até 2007, não foram confirmados os números de abortos realizados; autoridades sanitárias estimam 500.000 abortos por ano (40% de todas as gestações), na maioria dos casos, presumivelmente ilegais e muitas vezes fora de padrões sanitários. Cerca de 80.000 mulheres são hospitalizadas a cada ano devido a complicações pós-aborto e elas provavelmente enfrentam punições legais por isso.[4][5][6][7]

Um estudo científico completo sobre o aborto (o primeiro do tipo na Argentina), encomendado pelo Ministério da Saúde e realizado por várias organizações independentes, foi lançado em junho de 2007. Utilizando métodos indiretos sobre dados da Pesquisa Nacional de Saúde e Nutrição e combinando-as com dados de instalações de saúde, o estudo concluiu com um valor mínimo de 460.000 e um máximo de 615.000 interrupções voluntárias de gravidez por ano (cerca de 60 abortos por 1000 mulheres). Os pesquisadores acreditam que para cada mulher que procura ajuda médica devido a complicações de aborto, sete outras mulheres em mesma situação não procuram.[8]

Legislação[editar | editar código-fonte]

Ver artigo principal: Legislação sobre o aborto

A Constituição da Argentina não estabelece disposições específicas para o aborto, mas a Reforma da Constituição Argentina de 1994 adicionou um estatuto para uma série de pactos internacionais, tais como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que declara que o direito à vida existe "em geral, a partir do momento da concepção". A interpretação da expressão "em geral" ainda é objeto de debates. A legislação em vigor a partir de 1984, quando o presidente Raúl Alfonsín (1983-1989) restabeleceu o Código Penal de 1921 após o fim da ditadura militar,[9] determinava que uma gravidez só poderia ser interrompida em caso de risco à vida da gestante ou de estupro cometido contra uma "mulher demente". Onze anos depois, em 1995, a Justiça autorizou a realização do aborto em casos de anencefalia fetal.[10]

Em 1998, durante uma visita ao Vaticano, o presidente Carlos Menem (1989-1999) se alinhou com a Santa Sé em sua total rejeição ao aborto e aos métodos contraceptivos. Em 1999, em comemoração ao Dia do Nascituro, o presidente afirmou que "a defesa da vida" era "uma prioridade [da Argentina] em política externa".[11] Por esse motivo, Zulema Yoma, ex-esposa do presidente, decidiu dar uma entrevista contando que realizou um aborto com o apoio de seu então marido Carlos Menem.[12] O sucessor de Menem, Fernando de la Rúa (1999-2001), não era explícito sobre suas crenças religiosas, mas não questionou o status quo.

O presidente Néstor Kirchner (2003-2007) também professava a fé católica, mas era considerada mais progressista do que seus antecessores. Em 2005, a ministra da Saúde Ginés González García declarou publicamente seu apoio à legalização do aborto. Kirchner nem apoiou nem criticou González García. Mais tarde, em uma entrevista, ele garantiu que a legislação sobre aborto não seria alterada durante o seu mandato. A Igreja Católica logo se engajou numa espécie de "guerra de declarações" com o governo nacional.[13][14][15]

Em maio de 2006, o governo tornou público um projeto de reforma do Código Penal, que incluía o descriminalização do aborto. A comissão estudou o assunto e formulou um projeto, destinado a ser apresentado ao Congresso. O projeto foi assinado pelo Secretário de Política Criminal e Assuntos Penitenciários, Alejandro Slokar. Em 28 de maio de 2007, um grupo de 250 ONGs que faziam parte da Campanha Nacional pelo Aborto Livre, Seguro e Legal apresentou ao Congresso um projeto de lei de iniciativa popular que iria proporcionar o acesso ilimitado ao aborto até a 12ª semana de gestação, além de permitir que as mulheres abortassem após esse tempo em casos de estupro, malformações fetais graves e riscos para a saúde física ou mental da gestante.[16][17] Ainda durante o governo de Néstor Kirchner, a nomeação de Carmen Argibay, uma ateia feminista, para a Suprema Corte, gerou controvérsia após ela manifestar seu apoio à descriminalização do aborto.[18][19]

Durante o governo de Cristina Fernández de Kirchner (2007-2015), a presidenta se declarou contra o aborto, devido a seu catolicismo e às suas "convicções profundas",[20] embora tenha esclarecido não crer que "aqueles que lutam pela descriminalização do aborto sejam a favor do aborto".[21] Uma figura extremamente polarizante na política argentina, a presidenta foi pressionada diversas vezes por veículos conservadores, tais como o jornal La Nación, a se posicionar de maneira explícita contra o aborto. Cristina respondeu às pressões relembrando o apoio do jornal ao golpe de estado em 1976.[22] Cristina atraiu ainda mais a oposição da Igreja Católica do que seu finado marido e antecessor ao fazer campanha pelo projeto de lei que acabou por legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo na Argentina.

Ainda no governo de Fernández de Kirchner, em março de 2012, ao julgar o caso de uma menina de 15 anos que estava sofrendo punição da justiça por abortar o filho do próprio padrasto, a Suprema Corte argentina reconheceu o direito ao aborto em casos de estupro para todas as mulheres argentinas, não apenas as mentalmente incapazes. Segundo decisão da corte, a partir daquela data o aborto passou a ser permitido em qualquer caso de estupro ou de risco à vida da gestante. Os juízes decidiram ainda que uma denúncia policial de estupro era o suficiente para permitir a realização de um aborto. Também determinou que os governos provinciais devem preencher protocolos especificando o número de pedidos de aborto por estupro ou risco à vida da gestante.[23][24]

Manifestantes a favor (à direita) e contra (à esquerda) a legalização do aborto se reúnem na Praça do Congresso em 13 de junho de 2018, enquanto os deputados votavam o Projeto de Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez

O presidente Mauricio Macri (2015-2019) representou a volta dos conservadores à presidência argentina, após doze anos de kirchnerismo. Ele se declarou contra o aborto, mas afirmou que não usaria seus poderes de veto para impor suas crenças pessoais. Durante seu governo, em 2018, o Congresso discutiu a legalização do aborto até a 14ª semana de gestação. O projeto de lei, aprovado pela Câmara dos Deputados, acabou sendo rejeitado pelo Senado argentino.[25] A votação mobilizou fortemente a sociedade argentina. Cerca de um milhão de pessoas foram às ruas defender a legislação atual[carece de fontes?] e, após o veto do projeto, grupos feministas e demais defensores do aborto legal reagiram através de protestos contra o governo[26] e a Igreja Católica.[27] Segundo o jornal La Nación, a maior parte da população permanecia contrária à legalização do aborto (49% contra 40%).[28]

O presidente Alberto Fernández (2019-presente) foi eleito com o apoio de movimentos sociais progressistas e prometeu lutar pela descriminalização do aborto. Assim que tomou posse, em dezembro de 2019, seu governo baixou um decreto limitando o poder de decisão dos hospitais em relação ao aborto. Poucos meses antes, Adolfo Rubinstein, ministro da Saúde do governo Macri, pediu demissão após ter um decreto similar revogado pelo então presidente Macri, o que acabou gerando um racha na coalização conservadora Cambiemos.[29]

Ver também[editar | editar código-fonte]

Referências

  1. Abortion Laws of the World. ArgentinaCópia arquivada no Wayback Machine.
  2. Agência O Globo (13 de março de 2012). «Argentina legaliza aborto para mulheres que sofreram estupro». Yahoo! Notícias. Consultado em 13 de março de 2012. Arquivado do original em 10 de março de 2016 
  3. PEREGIL, Francisco (13 de março de 2012). «Argentina despenaliza el aborto para mujeres violadas» (em espanhol). El País. Consultado em 13 de março de 2012 
  4. «Women's Access to Contraceptives and Abortion in Argentina». Human Rights Watch. Consultado em 28 de agosto de 2006 
  5. «Argentina: Limits on Birth Control Threaten Human Rights». Human Rights Watch. Consultado em 28 de agosto de 2006 
  6. «The International Encyclopedia of Sexuality: Argentina». Humboldt-Universität zu Berlin. Consultado em 28 de agosto de 2006. Arquivado do original em 31 de agosto de 2006 
  7. Nadia Berenstein. «Abortion in Argentina». Planned Parenthood. Consultado em 28 de agosto de 2006. Arquivado do original em 12 de outubro de 2006 
  8. «Las cifras para abrir el debate». Página/12. 2 de junho de 2007. Consultado em 2 de junho de 2007 
  9. Ramos, Silvina; Bergallo, Paola; Romero, Mariana; Feijoó, Jimena Arias. «El acceso al aborto permitido por la ley: un tema pendiente de la política de derechos humanos en la Argentina» (PDF). Centro de Estudios Legales y Sociales. Derechos Humanos en Argentina. Informe 2009: 451-491. ISBN 978-987-629-072-2. Consultado em 13 de agosto de 2018 
  10. Cepeda, Agustina (2017). «Los abortos no punibles. Argumentos médico-jurídicos y bioéticos en la Argentina de fines del siglo XX» (PDF). Universidad Nacional de La Plata - Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación. Descentrada. 1 (2). ISSN 2545-7284. Consultado em 13 de agosto de 2018 
  11. «Speech by President Menem during the commemoration of the Day of the Unborn Child» (em espanhol). Consultado em 23 de julho de 2008. Arquivado do original em 22 de setembro de 2008 
  12. «Página/12». www.pagina12.com.ar. Consultado em 11 de junho de 2018 
  13. «'Me ofrecieron millones para frenar los genéricos'» (em espanhol). Página/12. 14 de fevereiro de 2005. Consultado em 29 de agosto de 2006 
  14. «Argentinean Health Minister declares legalization of abortion part of his agenda». Catholic News Agency. 15 de fevereiro de 2005. Consultado em 29 de agosto de 2006 
  15. «Argentina: Row Over Church & State». About.com. 19 de fevereiro de 2005. Consultado em 29 de agosto de 2006 
  16. «"Para que la maternidad sea una elección"» (em espanhol). Página/12. 28 de maio de 2007. Consultado em 2 de junho de 2007 
  17. Marcela Valente. «ARGENTINA: Abortion - No Longer a Taboo Subject». IPS. Inter Press Service. Consultado em 23 de julho de 2018 [ligação inativa]
  18. «Atheist Heads to High Court Seat». Institute for Humanist Studies. 28 de janeiro de 2004. Consultado em 29 de agosto de 2006. Arquivado do original em 28 de outubro de 2007 
  19. «Impugnaciones a la doctora Argibay» (em espanhol). Argentine Catholic News Agency. Consultado em 29 de agosto de 2006. Cópia arquivada em 23 de agosto de 2006 
  20. Loewy, M. (2009). «De eso no se habla». 10 de junho de 2009. El Argentino.
  21. «Beatriz Salomón, Policía de la Ciudad , Nicolás Dujovne». Perfil.com (em espanhol). Consultado em 4 de janeiro de 2017
  22. Cocchi, Hernán (23 de agosto de 2010). «Clarín y La Nación confesaron en 1977 su complicidad con la dictadura». Tiempo Argentino. Consultado em 4 de janeiro de 2017. Cópia arquivada em 7 de abril de 2014
  23. http://www.pagina12.com.ar/diario/elpais/1-189566-2012-03-14.html
  24. http://www.cij.gov.ar/scp/index.php?p=interior-nota&nid=8754
  25. «Senado da Argentina rejeita legalização do aborto no país». G1. Consultado em 21 de agosto de 2018 
  26. «Veto ao aborto provoca protestos e celebrações na Argentina». Terra. Consultado em 21 de agosto de 2018 
  27. «Centenas de argentinos fazem renúncia coletiva ao catolicismo». G1. Consultado em 21 de agosto de 2018 
  28. «Según una encuesta, el 49% de la población rechaza el aborto legal y el 40% lo acepta». La Nación (em espanhol). Consultado em 21 de agosto de 2018 
  29. https://www.nytimes.com/2019/12/12/world/americas/argentina-abortion-rape-hospitals.html

Ligações externas[editar | editar código-fonte]