Argumentum ex silentio

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Os diários de viagem de Marco Pólo não citam a Grande Muralha da China[1].

Argumentum ex silentio é um termo em latim, traduzido geralmente como argumento pelo silêncio, utilizado para denominar uma conclusão que se baseia na ausência de uma afirmativa em documentos históricos (ao contrário da conclusão mais comum, baseada na presença de uma)[2][3][4]. No campo dos estudos clássicos, ele é geralmente se refere à indução a partir da falta de referências a um assunto nas obras disponíveis de um autor de que ele, portanto, ignoraria o tal assunto[3].

Assim, na análise histórica com um argumento pelo silêncio, a falta de referência a um evento ou a um documento é utilizada para lançar dúvida sobre a existência de tal evento ou documento[4]. A análise, portanto, pressupõe que o autor "deveria ter mencionado" esse tal evento ou documento pela importância que ele certamente tem[5][4].

Um argumento pelo silêncio se aplica a um documento apenas se houver alguma expectativa de que o referido autor tinha acesso a ele, tinha a intenção de relatar a situação de forma abrangente e que o tal documento era importante ou interessante o suficiente para ter sido mencionado[6][7].

Este tipo de argumentação é bastante diferente da argumentação pela ignorância, que se baseia numa total "ausência de evidência" e é amplamente considerado como pouco confiável; porém, os próprios argumentos pelo silêncio são considerados fracos ou até mesmo falaciosos em muitas situações[1][8].

Análise histórica[editar | editar código-fonte]

Estrutura do argumento[editar | editar código-fonte]

John Lange demonstra a estrutura básica para a análise de um argumento pelo silêncio baseando-se em três componentes[3][9]:

  • Um documento ainda existente D no qual não se encontram referências a um evento E;
  • Sabe-se que a intenção do autor do documento D era prover uma lista exaustiva de todos os eventos de mesma categoria que o evento E;
  • Assume-se que o evento E é de um tipo que o autor de D não teria deixado passar despercebido se ele de fato tivesse ocorrido.

A aplicabilidade destas três condições é decidida caso-a-caso e não há regras dialéticas gerais para abordar o tema, com exceção da expertise do historiador que está avaliando a situação[3][9]. Na análise de Lange, um argumento pelo silêncio é apenas sugestivo e nunca logicamente conclusivo[3][9].

A importância da Magna Carta não foi ressaltada por nenhum autor contemporâneo e o documento era considerado apenas um entre muitos documentos burocráticos.

Os professores de história Martha Howell e Walter Prevenier afirmam que um argumento pelo silêncio pode atuar como uma evidência presuntiva apenas se a pessoa que deixou de mencionar a informação estava em condições de tê-la e estava tentando dar um relato completo do assunto[10]. Eles também afirmam que este tipo de argumento pressupõe que o historiador assume que o autor teria relatado o evento em questão e, se ele na realidade o achou pouco importante ou desinteressante, pode ter simplesmente ignorado-o[6].

O professor Michal Duncan vai mais longe e afirma que há poucas análises acadêmicas sobre os argumentos pelo silêncio e as que existem tipicamente o vêem como falacioso[8]. Ele acrescenta ainda que não aparecem nas "Refutações Sofísticas" de Aristóteles e nem nas "Falácias" de Hamblin, embora ambas discutam o caso algo similar dos apelos à ignorância[8] Errietta Bissa, professor de Clássicos na Universidade de Gales afirma diretamente que argumentos pelo silêncio não são válidos[11] David Henige, por outro lado, afirma que, apesar de arriscados, eles podem às vezes lançar alguma luz sobre eventos históricos[5].

Interesse do autor[editar | editar código-fonte]

A importância de um evento para o autor contemporâneo a ele tem um papel preponderante em sua decisão de mencioná-lo e o historiador Krishnaji Chitnis afirma que para um argumento pelo silêncio se aplicar, o tal evento deve ter sido importante ou interessante para o autor relatando-o, caso contrário ele será ignorado. Um exemplo clássico é o da Magna Carta, considerado por historiadores posteriores como um documento histórico inestimável, os seus contemporâneos não disseram uma palavra sequer sobre sua grandeza. Para eles, a Carta não passava de um documento feudal de pouca importância entre muitos outros similares[7].

O classicista Timothy Barnes nota que o baixo nível de interesse sobre os cristãos no Império Romano na virada do século I resultou na completa ausência de menções a eles nas obras de autores romanos como Marcial e Juvenal, embora os cristãos estivessem presentes em Roma desde o reinado de Cláudio (r. 41 a 54 d.C.) e os autores tenham demonstrado interesse nas religiões do império ao mencionar, por exemplo, o judaísmo[12][13]. O teólogo Peter Lampe afirma que, durante os primeiros dois séculos, o silêncio das fontes romanas sobre os cristãos pode ser uma decorrência, pelo menos em parte, do segredo que eles mantinham sobre sua fé[14].

Exemplos[editar | editar código-fonte]

Aplicações convincentes[editar | editar código-fonte]

Um exemplo de uma aplicação convincente é a de que enquanto os editores do Talmud de Jerusalém e do Talmud da Babilônia mencionem um a comunidade do outro, os acadêmicos acreditam que ambos os documentos foram escritos de forma completamente independente. Louis Jacobs acrescenta que "se os editores de um tivesse tido acesso ao texto do outro, é inconcebível que isso não tenha sido mencionado. Neste caso, o argumento pelo silêncio é bastante convincente."[15].

Algumas vezes o silêncio de múltiplas fontes pode ter um valor probatório que lança luz sobre uma circunstância histórica. Jacob Neusner, por exemplo, afirma que um argumento pelo silêncio sobre a ausência de um exilarca ajuda a compreender a relação entre os judeus e os partas na Babilônia[16].

Outro exemplo de uma aplicação convincente é o silêncio de Cícero a respeito de obras sobre oratória escritas por Catão, pois este era uma figura de tamanha importância na obra "Bruto" de Cícero que ele teria com certeza citado-as se possível[17]. Porém, a mesma força já não se aplica ao silêncio do mesmo Cícero sobre o questorado de Célio (em seu famoso discurso Pro Caelio), com Michael Alexander afirmando que diversos fatores poderiam ter impedido-o de mencionar o fato[18].

Aplicações fracassadas[editar | editar código-fonte]

Plínio, o Jovem, não cita a destruição de Pompeia e Herculano pelo Vesúvio em suas cartas.

Yifa ressaltou os perigos de argumentos pelo silêncio que levam à conclusão de que a falta de referências a uma compilação de códigos monásticos por contemporâneos ou mesmo por discípulos é sinal de que ela não existiu[19]. O caso é bem ilustrado pelo caso das "Regras de Pureza" de Changlu Zongze, escritas para o mosteiro de Chan em 1103. Um de seus contemporâneos escreveu um prefácio para uma coleção de suas obras e não o citou[19]. Porém, uma cópia do código no qual o autor se identifica existe[19].

O historiador Pierre Briant lembra que a descoberta recente de um memorandum alfandegário do Egito, datado da época de Xerxes, relatando o registro e a cobrança de impostos de navios destruiu todo o racional prévio sobre a natureza da prosperidade comercial de Sídon baseado no relativo silêncio nos textos da época sobre estradas e é um lembrete dos perigos dos argumentos pelo silêncio[20].

Frances Wood baseou seu controverso livro "Marco Pólo foi à China?" num argumento pelo silêncio[5]. A autora argumenta que Marco Pólo jamais foi até à China e que ele teria inventado o seu relato baseando-se na falta de elementos que deixa de citar, como o chá, a Grande Muralha da China e a prática de amarrar os pés das moças (pés de lótus). Ela argumenta que nenhum estrangeiro que tivesse passado quinze anos na China teria deixado de perceber e de relatar estes elementos. A maior parte dos historiadores discorda, porém[5].

Os professores de filosofia Sven Bernecker e Duncan Pritchard lembram ainda que Plínio, o Jovem, não mencionou a destruição de Pompeia e Herculano em sua detalhada discussão sobre a erupção do Vesúvio em 79 d.C. nas cartas que escreveu[1][21].

Uso cauteloso[editar | editar código-fonte]

Alguns historiadores notam os perigos gerais de se argumentar pelo silêncio, mas fazem uso da abordagem em casos específicos como, por exemplo, indicadores de atividades profissionais em comunidades medievais. John E. Law, lembrando o perigo, utiliza-o como para inferir um baixo nível de utilização de mercenários locais em Camerino pelos Da Varano na Idade Média[22]. De forma similar, a historiadora Patrícia Skinner afirma que, mesmo descontando os perigos, o silêncio pode ser um indicativo da raridade de mulheres na profissão médica no sul da Itália medieval[23]. O historiador James Amelang nota que, embora as autobiografias dos primeiros artesãos medievais são surpreendentemente silenciosas sobre o que faziam e como; e que argumentar pelo silêncio neste caso traz o empecilho de forçar o historiador a assumir um peso à importância passada de algo com base em pontos de vista modernos[24].

Barrie J. Cook, o curador de moedas europeias do Museu Britânico, também citando o perigo, afirma que o silêncio pode ajudar a entender a propensão medieval de se utilizar do denier francês ao invés do angevino[25].

Ver também[editar | editar código-fonte]

Referências

  1. a b c The Routledge Companion to Epistemology by Sven Bernecker and Duncan Pritchard (Dec 2, 2010) ISBN 0415962196 Routledge pages 64-65 "argumentos pelo silêncio são, invariavelmente, bem fracos; há muitos exemplos onde este tipo de argumentação nos levaria a lugar algum"
  2. "argumentum e silentio noun phrase" The Oxford Essential Dictionary of Foreign Terms in English. Ed. Jennifer Speake. Berkley Books, 1999.
  3. a b c d e John Lange, The Argument from Silence, History and Theory, Vol. 5, No. 3 (1966), pp. 288-301 [1]
  4. a b c Seven Pillories of Wisdom by David R. Hall 1991 ISBN 0-86554-369-0 pages 55-56.
  5. a b c d Historical evidence and argument by David P. Henige 2005 ISBN 978-0-299-21410-4 page 176.
  6. a b From Reliable Sources: An Introduction to Historical Methods by Martha C. Howell and Walter Prevenier (Apr 26, 2001) ISBN 0801485606 Cornell University Press page 73-74
  7. a b Research Methodology in History by Krishnaji Chitnis (Nov 27, 2006) ISBN 8171561217 page 56
  8. a b c M. G. Duncan "The Curious Silence of the Dog and Paul of Tarsus; Revisiting The Argument from Silence" Informal Logic, Vol 32, No 1 (2012) pages 83-84
  9. a b c M. G. Duncan "The Curious Silence of the Dog and Paul of Tarsus; Revisiting The Argument from Silence" Informal Logic, Vol 32, No 1 (2012) page 85
  10. From Reliable Sources: An Introduction to Historical Methods by Martha C. Howell and Walter Prevenier (Apr 26, 2001) ISBN 0801485606 Cornell University Press page 74
  11. Governmental intervention in foreign trade in archaïc and classical Greece by Errietta M. A. Bissa ISBN 90-04-17504-0 page 21
  12. Timothy Barnes "Pagan Perceptions of Christianity" in Early Christianity: Origins and Evolution to AD 600 edited by Ian Hazlett et al (May 1991) ISBN 0687114446 page 232:
  13. Aspects of Roman History by Mark Everson Davies 2010 ISBN 0415496942 page 79
  14. Christians at Rome in the First Two Centuries by Peter Lampe (Jun 1, 2006) ISBN 0826481027 pages 141-142
  15. "Talmud". A Concise Companion to the Jewish Religion. Louis Jacobs. Oxford University Press, 1999 page 261
  16. A History of the Jews in Babylonia: Vol. 1, The Parthian Period by Jacob Neusner 1984 ISBN 0891307389 pages 53-54
  17. The School of Rome: Latin Studies and the Origins of Liberal Education by W. Martin Bloomer (Apr 27, 2011) ISBN 0520255763 page 153
  18. The Case for the Prosecution in the Ciceronian Era by Michael Charles Alexander ISBN 0472112619 Univ of Michigan Press page 323
  19. a b c The origins of Buddhist monastic codes in China by Yifa, Zongze 2002 ISBN 0-8248-2494-6 page 32.
  20. From Cyrus to Alexander: A History of the Persian Empire by Pierre Briant (Jul 29, 2006) ISBN 1575061201 Eisenbrauns page 804: See page 385 regarding the customs document.
  21. For Pliny's letters see Reading the Letters of Pliny the Younger by Roy K. Gibson and Ruth Morello (Apr 23, 2012) ISBN 0521842921 Cambridge Univ Press page 110
  22. Mercenaries and Paid Men: The Mercenary Identity in the Middle Ages (Smithsonian History of Warfare) edited by John France (Jan 15, 2008) ISBN 9004164472 page 95
  23. Health and Medicine in Early Medieval Southern Italy by Patricia Skinner (Aug 1997) ISBN 9004103945 page 91
  24. The Flight of Icarus: Artisan Autobiography in Early Modern Europe by James S. Amelang (Nov 1998) ISBN 0804733406 Stanford University Press page 119
  25. Coinage and History in the North Sea World, C. 500-1250 by Barrie Cook and Gareth Williams (23 Dec 2005) ISBN 9004147772 pages 653-654