Canção do figueiral
Canção do figueiral é uma canção de gesta (ou romance) publicada em 1609 por Frei Bernardo de Brito na sua obra Monarquia Lusitana. Embora durante o Romantismo tenha sido atribuída a uma personagem do século VIII, Guesto Ansur, e celebrada como a mais antiga cantiga em língua portuguesa, foi eventualmente exposta como um texto apócrifo provavelmente escrito pelo próprio Brito.
Texto
[editar | editar código-fonte]O texto publicado na página 196-v do capítulo IX do sétimo livro da segunda parte da Monarquia Lusitana (1.ª edição de 1609) é o seguinte:
No figueiral figueiredo |
Vna repricara |
Eu lhe repricara |
Mouro que las goarda |
Tema
[editar | editar código-fonte]A canção é formada sobre a lenda do tributo das cem donzelas. Conta-se que no século VIII, Mauregato recorreu ao auxílio do emir mouro de Córdova, Abderramão I, que lhe forneceu guerreiros para a conquista do Reino das Astúrias, em troca de promessa de vassalagem e de um tributo anual de cem donzelas (50 nobres e 50 plebeias). A população cumpria, ainda que contrariada, com esta pesada cobrança. O romance em questão narra um episódio em que Guesto Ansur, um cavaleiro cristão, encontra seis donzelas tributadas num figueiral, guardadas por mouros. Este, ao vê-las em maltrato, arriscou a vida para as salvar dos guardas, utilizando até como arma um ramo de figueira quando se partiu a sua espada. Após triunfar face aos sarracenos, casou com uma das donzelas, dando origem à família dos Figueiredos. O local onde ocorreu o resgate recebeu o nome de Figueiredo das Donas em memória do episódio.[1]
História
[editar | editar código-fonte]O poema foi publicado pela primeira vez em 1609 na segunda parte da Monarquia Lusitana de Frei Bernardo de Brito.[1] Uma versão anterior, com algumas correções, encontra-se num manuscrito autógrafo de 1607 na Biblioteca Nacional de Portugal.[2] Este frade cronista identifica a presumível fonte do poema “um cancioneiro de mão, que foi de dom Francisco Coutinho, Conde de Marialva” mas quando o tinha consultado estava em “mão de quem o estimava bem pouco”. Também identifica uma fonte oral uns velhos lavradores da Beira que a cantariam de forma deturpada.[1] Anos depois, em 1629, a mesma versão, ainda que com ligeiras diferenças, é incluída na Miscelânea do sítio de Nossa Senhora da Luz do Pedrógão Grande de Miguel Leitão de Andrada. Este autor, então com 76 anos, refere que a retirou da “Monarquia Lusitana” e que se lembrava de ouvi-la cantar “a uma velha de muita idade, natural do Algarve” na sua meninice.[3]
Em 1810, o historiador português João Pedro Ribeiro classificou os versos como apócrifos na sua obra Dissertações cronológicas e críticas sobre a história e jurisprudência eclesiástica e civil de Portugal. Referindo-se às “trovas dos Figueiredos” e a outros relacionados refere não poder “reconhecer a genuidade (sic) destes documentos […] 1.º Por falta de provas da sua antiguidade […] são referidos por Brito, cuja fé é nenhuma. 2.º Porque as palavras, que neles se empregam, todas de diversas idades da nossa língua, formando um todo afetado, parece ser mais obra de um artifício estudado”.[4] Contudo, as certezas de Pedro Ribeiro não impediram que o texto se tornasse um símbolo para os escritores românticos que ora o atribuíam ao próprio Guesto Ansur,[5] ora o davam como uma cantiga de origem popular. O historiador literário José Maria da Costa e Silva dizia tratar-se de "um dos mais antigos monumentos da nossa Poesia" que provaria o "quão cedo o talento poético se manifestou entre nós".[6] Por sua vez, o folclorista Gualdino de Campos garantia ser "a canção portuguesa mais antiga de que se conservou notação musical escrita".[7]
No entanto, foi Teófilo Braga quem mais exaltou a "canção do figueiral". Segundo ele “do caráter popular e genuíno da Canção do Figueiral não se pode duvidar sem ser pirrónico”. O autor descartava totalmente a atribuição a Guesto Ansur e propunha uma origem tradicional; seria nas suas palavras uma canção "genuinamente popular" "criada ou vulgarizada pelo menos nos princípios do século XIII" e "que já andava na tradição oral no fim do século XIV". Discordava claramente de João Pedro Ribeiro, a quem respondeu diretamente em 1867 no seu Cancioneiro Popular, apresentando argumentos para a autenticidade: “1.º Como composições particulares e sem importância, nenhuma crónica alude a elas; o facto de serem apresentadas por […] Brito não as torna apócrifas […]. 2.º As palavras das diversas idades da língua serão introduzidas pelos copistas enquanto andaram manuscritas”.[8] Em 1871, nas Epopeias da raça moçárabe veio novamente em defesa das trovas. Segundo Teófilo Braga, “as circunstâncias imaginosas de que Frei Bernardo de Brito revestiu este monumento poético é que fizeram que João Pedro Ribeiro duvidasse da sua autenticidade”.[9]
Esta polémica foi encerrada por Carolina Michaëlis, escritora portuguesa de origem prussiana, que foi porventura a maior autoridade na sua época relativamente à poesia galaico-portuguesa. No segundo volume da sua edição crítica do Cancioneiro da Ajuda, num texto em tom de sarcasmo, critica a famosa apesar de suspeita “canção popular do Figueiral” que Brito usa ”para favorecer certas patranhas e doutrinas históricas, genealógicas e literárias, então em moda”.[10] De facto já Teófilo Braga tinha concluído que Frei Bernardo de Brito não tendo documentos históricos escritos em que basear a sua versão da lenda do Figueiredos, aproveitou-se da cantiga, associou-lhe o topónimo Figueiredo das Donas e inventou a personagem Guesto Ansur para lhe conferir verosimilhança.[9] Sobre a documento fonte citado, o hipotético “Cancioneiro Marialva”, Michaëlis descarta ter sido real, mas que a existir seria uma “miscelânea” do século XVII, semelhante à de Miguel Leitão de Andrada.[10]
Música
[editar | editar código-fonte]A melodia que atualmente é associada aos versos foi publicada pela primeira vez em 1855 pelo compositor e musicólogo espanhol Mariano Soriano Fuertes em Historia de la música española desde la venida de los fenicios hasta el año de 1850. O espanhol diz ter recolhido a partitura do Cancioneiro Marialva da qual Frei Bernardo de Brito garante ter retirado a letra. Contudo, Carolina Michaëlis dizia desconfiar deste facto, principalmente porque seria improvável que este tivesse acesso a este “documento fantasma”. Sobre a música em si, evita pronunciar-se, deixando a crítica aos musicólogos.[10]
Em Portugal surge publicada em 1893 no primeiro fascículo do “Cancioneiro de Músicas Populares” de César das Neves e Gualdino de Campos. Embora fosse descrita neste cancioneiro como “a canção portuguesa mais antiga de que se conservou notação musical escrita”[7], tal designação já não se aplica, não só porque em 1990 foi descoberto um documento com sete cantigas de amor de Dom Dinis, mas principalmente porque o consenso atual é de que as trovas são uma fabricação do início do século XVII e que a música tem origem muito pouco clara.
Influência
[editar | editar código-fonte]Os versos tiveram grande influência em vários escritores lusófonos. Antero de Quental traduziu o poema para o português moderno;[5] João de Castro copiou o estilo no seu Rimance de D. Sueiro de 1892 (que principia “Uma donzela formosa / Uma donzela encontrei”);[11] Mário de Andrade adaptou os primeiros versos para uma canção em 1940 (“Na solidão solitude, / Na solidão entrei”).
Dos compositores que trabalharam em versões da obra destacam-se Bernard Pierrot,[12] Cláudio Carneyro[13], Fernando Lopes-Graça[14] e José Vianna da Motta[15].
Discografia
[editar | editar código-fonte]- 1974 — O guerrilheiro. Luís Cília. Orfeu. Faixa B2: "Canção do figueiral".[12]
- 1999 — Romances. Dulce Cabrita & Piñero Nagy. ASA Art and Technology. Faixa 2: "Romance do Figueiral, Figueiredo."[14]
- 2001 — Vianna da Motta: Piano Music. Sequeira Costa. Marco-Polo. Faixa 8: "Cenas Portuguesas, Op. 18. I: Canção do Figueiral / Ao Viático".
Referências
- ↑ a b c d Brito, Bernardo de (1609). Segvnda Parte, da Monarchia Lvsytana. Em que se continuão as historias de Portugal desde o nacimento de nosso Saluador IESV Christo, ate ser dado em dote ao Conde dom Henrique. Lisboa: Pedro Crasbeeck
- ↑ Bernardo de Brito (1607). «Segunda parte da Monarchia Lusitana». Biblioteca Nacional de Portugal
- ↑ Andrada, Miguel Leitão de (1629). «VII». Miscellanea do Sitio de N. Srª da Luz do Pedrogão Grande 1 ed. Lisboa: Mateus Pinheiro. p. 228
- ↑ Ribeiro, João Pedro (1810). «Dissertação V». Dissertações chronologicas e criticas sobre a historia e jurisprudencia ecclesiastica e civil de Portugal 1 ed. Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa. p. 181
- ↑ a b Quental, Antero de (1892). «Romance de Goesto Ansures». Raios de Extincta Luz 1 ed. Lisboa: M. Gomes. p. 181
- ↑ Costa e Silva, José Marida da (1850). «Capitulo IV.: Guesto Ansures». Ensaio Biographico-Critico sobre os melhores Poetas Portuguezes (Tomo I) 1 ed. Lisboa: Imprensa Silviana. p. 40
- ↑ a b Neves, César das; Gualdino de Campos (1893). Cancioneiro de Músicas Populares 1 ed. Porto: Tipografia Ocidental
- ↑ Braga, Teófilo (1867). Cancioneiro Popular. Colligido da Tradição. Coimbra: Imprensa da Universidade
- ↑ a b Braga, Teófilo (1871). Epopêas da Raça Mosarabe. Porto: Imprensa Portugueza
- ↑ a b c Michaëlis, Carolina (1904). «Os compiladores - Lista dos Cancioneiros gallaïco-portugueses». Cancioneiro da Ajuda. II 1 ed. Tubinga: Halle A. S. Max Niemeyer. p. 267. 1001 páginas
- ↑ Castro, João de (1892). «Rimance de D. Sueyro». O Morgadinho 1 ed. Porto: S. A. Ribeiro Amoelo. p. 41
- ↑ a b «O guerrilheiro». luis cilia
- ↑ Paula de Castro; Miguel Azguime, et al. «Canção do Figueiral». Centro de Investigação & Informação da Música Portuguesa. Consultado em 16 de março de 2016
- ↑ a b «Romances». Fonoteca de Lisboa. Consultado em 16 de março de 2016
- ↑ «Scenas portuguesas, Op.18 (Vianna da Motta, José)». IMSLP. Consultado em 16 de março de 2016
Ver também
[editar | editar código-fonte]Ligações externas
[editar | editar código-fonte]- «Versão manuscrita de 1607». na Biblioteca Nacional de Portugal.
- «Versão publicada na Monarquia Lusitana». na Biblioteca Nacional de Portugal.
- «Versão publicada na Miscelânea». na Biblioteca Nacional de Portugal.