Estudos de histórias em quadrinhos

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.

Estudos de histórias em quadrinhos é uma área de pesquisa acadêmica que foca nos quadrinhos (ou banda desenhada) e arte sequencial.[1][2]

Os estudos de histórias em quadrinhos não devem ser confundidos com os aspectos técnicos da criação de quadrinhos. No caso, os estudos se relacionam com a teoria da criação dos quadrinhos (abordando os quadrinhos criticamente como arte) a escrita da historiografia dos quadrinhos (o estudo da história dos quadrinhos).[3] A teoria dos quadrinhos também se relaciona com a filosofia dos quadrinhos, ou seja, o estudo da ontologia,[4][5] epistemologia[6] e estética[7] dos quadrinhos, assim como a relação entre quadrinhos e outras formas de arte, e a relação entre texto e imagem em quadrinhos.[4]

Os estudos em quadrinhos também estão relacionados com a crítica de quadrinhos, a análise e avaliação dos quadrinhos e o meio dos quadrinhos.[8]

Teoria dos quadrinhos[editar | editar código-fonte]

Na primeira metade do século XX, ocorreram eventuais investigações sobre os quadrinhos como uma forma de arte válida, especificamente em The 7 Lively Arts (1924), de Gilbert Seldes, Comics and Their Creators (1942), de Martin Sheridan, e The Early Comic Strip: Narrative Strips and Picture and Picture Stories in the European Broadsheet from c. 1450 to 1825, de David Kunzle. Na Europa, as primeiras tentativas de um sistema geral de semiótica dos quadrinhos foram os trabalhos de Roland Barthes (particularmente seu ensaio de 1964, "Rhetoric of the Image") e Umberto Eco (principalmente seu livro de 1964, Apocalípticos e Integrados). Já os estudos anglófonos nos Estados Unidos cresceram na cena acadêmica com os livros Quadrinhos e Arte Sequencial (1985), de Will Eisner, e Desvendando os Quadrinhos (1993), de Scott McCloud.[9][10][11]

Mais recentemente, a análise de quadrinhos começou a ser realizada por cientistas cognitivos, sendo o mais proeminente Neil Cohn, que usou ferramentas da linguística para detalhar a estrutura teórica da "linguagem visual" subjacente dos quadrinhos e também usou experimentação psicológica de neurociência para testar essas teorias na compreensão real. Este trabalho sugeriu semelhanças entre a forma como o cérebro processa a linguagem e a forma como processa imagens sequenciais. As teorias de Cohn, contudo, não são universalmente aceitas, com outros estudiosos como Thierry Groensteen, Hannah Miodrag e Barbara Postema oferecendo entendimentos alternativos.[12]

No Brasil[editar | editar código-fonte]

A primeira iniciativa relacionada ao estudo dos quadrinhos no Brasil ocorreu em 1951, com a Primeira Exposição Internacional de Histórias em Quadrinhos, realizada em São Paulo e organizada por estudiosos como Álvaro de Moya, Reynaldo de Oliveira, Syllas Roberg, Miguel Penteado e Jayme Cortez. Além da exposição de desenhos originais de autores de diversos países, houve destaque para a tentativa de uma abordagem científica, buscando auxílio principalmente em teorias ligadas ao cinema.[13][14]

Dentre os organizadores, apenas Moya seguiu a carreira acadêmica, sendo professor colaborador na ECA-USP de 1970 a 1991 e autor do livro Shazam! (1970), primeira antologia de textos críticos sobre quadrinhos no Brasil e que contou com o primeiro relato histórico sobre os quadrinhos nacionais, com menção aos principais autores e editores.[14]

Contudo, o estudo acadêmico considerado pioneiro no Brasil ocorreu por volta de 1967 no Centro de Pesquisas da Comunicação Social da Faculdade Cásper Líbero, fundado por José Marques de Melo. Em um dos grupos deste centro, foi feito um levantamento do conteúdo dos gibis brasileiros, tendo o resultado sido publicado no livro Comunicação Social: teoria e pesquisa (1970). Além disso, na mesma época Melo também incluiu uma disciplina sobre histórias em quadrinhos na grade curricular dos cursos de Jornalismo e Editoração da ECA-USP, onde também instituiu, em 1990, o Núcleo de Pesquisa em História em Quadrinhos (atual Observatório de Histórias em Quadrinhos).[13][15] [14]

Instituições acadêmicas[editar | editar código-fonte]

Os estudos em quadrinhos estão se tornando cada vez mais comuns em instituições acadêmicas em todo o mundo. Alguns exemplos notáveis ​​incluem: Universidade Estadual de Ohio,[16] Universidade da Flórida,[17] Universidade de Toronto Mississauga,[18] e University of California at Santa Cruz,[19] entre outros. Na Grã-Bretanha, o crescente interesse em quadrinhos levou ao estabelecimento de um centro de estudos de quadrinhos, o Centro Escocês de Estudos de Quadrinhos (SCCS, na sigla em inglês) na Universidade de Dundee, na Escócia.[20] Além de programas formais e graduações, é comum ver cursos individuais dedicados a quadrinhos e romances gráficos em diversas instituições de ensino.[21]

A tese Culture and the Comic Strips, de Sol M. Davidson (Universidade de Nova Iorque) foi o primeiro Doutorado de quadrinhos em 1959.[22][23] Na França, Jean-Christophe Menu recebeu um Doutorado em Arte e Ciências da Arte em 2011 pela Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne após defender sua tese La bande dessinée et son double : langage et marges de la bande dessinée : perspectives pratiques, théoriques et éditoriales.[24][25]

Sociedades científicas[editar | editar código-fonte]

Além de sua presença em instituições acadêmicas, os quadrinhos também têm sido estudados em sociedades científicas interdisciplinares. A primeira associação norte-americana dedicada a apoiar o estudo da narrativa gráfica e da arte sequencial foi a Comics Studies Society (CSS), criada em 2014 durante a ICAF. Seus principais focos são "promover o estudo crítico dos quadrinhos, melhorar o ensino dos quadrinhos e engajar-se em conversas abertas e contínuas sobre o mundo dos quadrinhos".[26][27][28][29][30]

A CSS também publica a revista INKS (desde 2017), organiza a Conferência Anual da Comics Studies Society (desde 2018) e premia estudos, livros e artigos de quadrinhos com cinco prêmios anuais: o CSS Article Prize, o Hillary Chute Award for Best Graduate Student Paper, o Gilbert Seldes Prize for Public Scholarship, o Charles Hatfield Book Prize e o CSS Prize for Edited Book Collections.[31][32][29]

Outras sociedades anglófonas que podem ser mencionadas são British Consortium of Comics Scholars (BCCS, criada em 2012 por Paul Davies), Scottish Centre for Comics Studies (SCCS) e Canadian Society for the Study of Comics (CSSC, criada em outubro de 2010 por Sylvain Rheault).[33][34][35][28]

A CSSC, também conhecida pelo nome em francês Société Canadienne pour l'Étude de la Bande Dessinée (SCEBC), é uma comunidade bilíngue de acadêmicos focada principalmente em estudos sobre os quadrinhos canadenses, mas que é aberta para associados internacionais. Entre outras atividades, o CSSC/SCEBD organiza uma conferência acadêmica durante o Toronto Comic Arts Festival.[35][36]

Conferências[editar | editar código-fonte]

Embora seja comum ocorrer apresentações dedicadas aos quadrinhos em conferências acadêmicas das mais variadas áreas, conferências inteiras dedicadas a esse assunto estão se tornando mais comuns. Algumas de maior destaque internacional são a International Comic Arts Forum (organizada pela Escola do Art Institute of Chicago), The International Bande Dessinée Society Conference (Universidade Metropolitana de Manchester), Sequential Art Studies Conference (Universidade de Tecnologia de Sydney), Festival of Cartoon Art (Universidade de Georgetown e Universidade Estadual de Ohio),[37] Comics in Popular Culture conference (Universidade de Bowling Green State).[38] e Conference on Comics and Graphic Novels (Universidade da Flórida).[39]

O International Comic Arts Forum (ICAF), cuja primeira edição ocorreu em 1995 na Universidade de Georgetown, é considerado uma das primeiras iniciativas acadêmicas para o estudo dos quadrinhos.[40] A alemã Gesellschaft für Comicforschung ("Sociedade para pesquisa em quadrinhos", em tradução livre) organiza conferências acadêmicas anuais desde 2006.[41] A Comics Arts Conference também ocorre regularmente, desde 1992, em paralelo com a San Diego Comic-Con e a WonderCon.[42]

Referências

  1. International Journal of Comic Art, volume 7, 2005, p. 574.
  2. Pramod K. Nayar, The Indian Graphic Novel: Nation, History and Critique, Routledge, 2016, p. 13.
  3. Benoît Crucifix, "Redrawing Comics into the Graphic Novel: Comics Historiography, Canonization, and Authors' Histories of the Medium", "Whither comics studies?" panel, International conference of the French Association for American Studies, Toulouse (France), May 24–27, 2016.
  4. a b Meskin, Aaron (2011). «The Philosophy of Comics». Philosophy Compass. 6 (12): 854–864. doi:10.1111/j.1747-9991.2011.00450.x 
  5. Iain Thomson, in his "Deconstructing the Hero" (in Jeff McLaughlin, ed., Comics as Philosophy (Jackson: University Press of Mississippi, 2005), pp. 100–129), develops the concept of comics as philosophy.
  6. Meskin, Aaron and Roy T. Cook (eds.), The Art of Comics: A Philosophical Approach, Wiley-Blackwell, 2012, p. xxxi.
  7. David Carrier, The Aesthetics of Comics, Penn State University Press, 2000, Part 1: "The Nature of Comics."
  8. Bramlett, Frank, Roy Cook and Aaron Meskin (eds.), The Routledge Companion to Comics, Routledge, 2016, p. 330.
  9. Umberto Eco, Apocalittici e integrati: comunicazioni di massa e teorie della cultura di massa, Bompiani, 1964. Cf. also: Umberto Eco (1972). "Epilogue", in: Walter Herdeg and David Pascal (eds.): The Art of the Comic Strip, Zurich: The Graphis Press.
  10. Roland Barthes, "Rhétorique de l'image", Communications 4(1), 1964, pp. 40–51, translated as "Rhetoric of the Image", in: Roland Barthes, Image–Music–Text, essays selected and translated by Stephen Heath, New York 1977, pp. 32–51.
  11. Jochen Ecke, Gideon Haberkorn (eds.), Comics as a Nexus of Cultures: Essays on the Interplay of Media, McFarland, 2010, p. 238.
  12. Neil Cohn, The Visual Language of Comics: Introduction to the Structure and Cognition of Sequential Images, London: Bloomsbury, 2013, p. 1ff.
  13. a b «Trajetória da pesquisa em HQs no Brasil é tema de lançamentos da ECA». USP. 4 de outubro de 2013 
  14. a b c «Análise da pesquisa em HQs no Brasil: a contribuição da ECA-USP». Intexto (UFRGS). 26 de agosto de 2021 
  15. «Histórias em quadrinhos: panorama histórico, características e verbo-visualidade». Darandina (UFJF). 13 de setembro de 2019 
  16. «Comics Studies @ OSU | Popular Culture Studies» 
  17. «UF | Comics Studies | Studying Comics at UF». English.ufl.edu. 4 de abril de 2007. Consultado em 23 de novembro de 2009 
  18. Visual Culture Studies - University of Toronto Mississauga.
  19. Spiegelman, Art. "Comix 101." Lecture. Porter College, University of California, Santa Cruz, April 1992.
  20. «Scottish Centre for Comics Studies». scottishcomicstudies.com. Consultado em 28 de novembro de 2016 
  21. «UF | Comics Studies | Teaching Comics». English.ufl.edu. 9 de abril de 2007. Consultado em 23 de novembro de 2009 
  22. Sol M. Davidson. Culture and the Comic Strips. Ph.D. diss., New York University, 1959.
  23. Sol & Penny Davison Collection - George A. Smathers Libraries.
  24. Article about Jean-Christophe Menu presenting his thesis at the Sorbonne.
  25. Theses.fr: La bande dessinée et son double : langage et marges de la bande dessinée : perspectives pratiques, théoriques et éditoriales.
  26. «About the Comics Studies Society». Comics Studies Society official website 
  27. «Comics Studies Society goes public on Feb. 14, 2016, launches its founding membership drive». SciFi Pulse. 15 de fevereiro de 2016 
  28. a b The Secret Origins of Comics Studies. [S.l.: s.n.] 2017 
  29. a b «Washington People: Rebecca Wanzo». Washington University in St.Louis. 3 de fevereiro de 2017 
  30. Keywords for Comics Studies. [S.l.: s.n.] 2021. 2 páginas 
  31. «About the Comics Studies Society Prizes». Comics Studies Society official website 
  32. «Annoucement of open membership for new Comics Studies Society». Sacred and Sequential. 19 de fevereiro de 2016 
  33. «About». Official website of British Consortium of Comics Scholars 
  34. «Comic Studies in the UK and Beyond – Learning the Comic Art». downthetubes 
  35. a b Canadian Graphic: Picturing Life Narratives. [S.l.: s.n.] 2016 
  36. «Comics, Education, and Libraries». American Libraries Magazine. 24 de maio de 2017 
  37. "Regularly Held Conferences".
  38. Robert G. Weiner (ed.), Graphic Novels and Comics in Libraries and Archives: Essays on Readers, Research, History and Cataloging, McFarland, 2010, p. 264.
  39. «Comics Conference». www.english.ufl.edu. Consultado em 21 de novembro de 2009. Arquivado do original em 29 de novembro de 2009 
  40. Matthew Smith; Randy Duncan (19 de setembro de 2017). The Secret Origins of Comics Studies. [S.l.]: Taylor & Francis. 316 páginas. ISBN 978-1-317-50578-5 
  41. «Gesellschaft für Comicforschung». Consultado em 22 de outubro de 2010. Arquivado do original em 18 de julho de 2011 
  42. The Comics Arts Conference and Public Humanities.