Heroe, egregio, douto, peregrino
Heroe, egregio, douto, peregrino, também conhecida como Cantata Acadêmica ou Recitativo e Ária para José Mascarenhas, é a mais antiga peça de música vocal profana com texto em português já encontrada no Brasil.[1]
Composição
[editar | editar código-fonte]Foi composta em 1759 por um compositor desconhecido, às vezes sendo atribuída ao padre Caetano de Melo de Jesus, mestre de capela da Catedral de Salvador. Apesar do nome como é conhecida, da estrutura da cantata tradicional guarda apenas um fragmento, sendo composta somente de um recitativo e uma ária da capo. Seu libreto saúda em retórica tipicamente barroca o magistrado português José Mascarenhas Pacheco Pereira Coelho de Melo, um dos fundadores da Academia dos Renascidos e membro do Conselho Ultramarino, e deplora as dificuldades por que ele passara na colônia brasileira. Mascarenhas, então em Salvador, capital da Bahia, havia caído doente e a música, apresentada na Academia em 2 de julho daquele ano, comemorava sua recuperação.[1][2]
Fonte
[editar | editar código-fonte]A única fonte manuscrita dessa obra foi adquirida por Alberto Frederico de Morais Lamego (1870-1951) em circunstância e local desconhecidos e divulgada pela primeira vez em seu livro A Academia Brazilica dos Renascidos, de 1923, por meio de fac-símiles da página de rosto e toda parte da "Voz", além de informações históricas a respeito da obra.[3] Essa fonte, juntamente com toda a Coleção Lamego, foi adquirida em 1935 pelo Governo do Estado de São Paulo (após exame por Mário de Andrade) e recolhida à Universidade de São Paulo, tendo sido transferida para o Instituto de Estudos Brasileiros em 1968, onde hoje se encontra.[4] Em 1954, Joaquim Brás Ribeiro reproduziu os fac-símiles da página de rosto e da parte da "Voz" impressos por Lamego em 1923, no capítulo "História e Musicologia" do seu livro Capítulos inéditos de história do Brasil.[5][6]
Edições e gravações
[editar | editar código-fonte]A primeira edição da obra foi realizada por Régis Duprat em 1965,[7][1] e sua primeira gravação foi realizada pelo Collegium Musicum da Rádio Ministério da Educação e Cultura, sob a direção de George Kiszely e com a soprano Olga Maria Schroeter,[8] seguida da gravação da Orquestra de Câmara de São Paulo, sob a direção de Olivier Toni e com a soprano Marília Siegl.[9] Uma reimpressão da partitura elaborada por Duprat foi lançada em 2000, desta vez acompanhada de fac-símiles completos.[10] Uma nova edição da obra, pelo musicólogo Paulo Castagna (não impressa), na qual a composição foi designada cantata acadêmica, em função da proximidade de seu estilo com casos análogos ibero-americanos, deu origem à gravação (em áudio e vídeo) dirigida por Ricardo Kanji, com a soprano Camilla de Falleiro e o grupo Vox Brasiliensis, na série História da Música Brasileira,[11][12] e à gravação dirigida por Edmundo Hora, com a soprano Elisabeth Ratzendorf e o grupo Armonico Tributo.[13]
Estilo
[editar | editar código-fonte]Seu estilo deriva da escola operística napolitana, então em grande voga no Brasil,[14] e faz hábil uso da técnica da "pintura das palavras" do Barroco, a ilustração musical do texto, dentro da perspectiva da teoria dos afetos.[15]
Texto
[editar | editar código-fonte]O texto do libreto segue abaixo, mantida a grafia da época:
- Recitativo
- Heroe, egregio, douto, peregrino,
- que por impulso de feliz destino
- nesta cabeça do Orbe Americano
- peregrino aportaste
- e o soberano Divino Auctor das cousas vos tem nela
- porque possais mais tempo esclarecella
- com vossa presença esclarecida
- e de vossas acçõens honra subida;
- E bem que quiz a mísera fortuna
- que vos fosse molesta e que importuna
- a hospedagem Senhor desta Bahia
- sabem os Céos e testemunhas
- sejão que dela
- os naturaes só vos desejão
- faustos annos de vida e Saúde e próspera alegria
- pela affável Virtude
- de vossa generoza Urbanidade
- com que a todos honraes desta cidade;
- Oh! Se também tivera as cem bocas da Fama
- com que a esfera
- podesse toda encher do vosso nome,
- porque a seu cargo a Eternidade o tome!
- Oh! Se também tivera o canto grave
- Da Filomela doce, e Cisne suave!
- Vosso louvor sem pauza cantaria
- Com clausula melhor, mais harmonia:
- Mas já que nada tenho
- para tão relevante desempenho
- calarey como calão os prudentes
- por não errar com frazes indecentes,
- ou, do modo que posso,
- celebrarey por grande o nome vosso.
- Ária
- Se o canto enfraquecido
- não pode ser que cante
- a gloria relevante
- de nome tam subido
- mayor vigor o affecto
- gigante mostrará.
- Pois tendo por objecto
- heroe de tal grandeza
- a mesma natureza
- de grande adquirirá. (Da capo)[16]
Ver também
[editar | editar código-fonte]Referências
- ↑ a b c Mariz, Vasco. História da Música no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. p. 36
- ↑ A música colonial do Nordeste em Concertos UFRJ. Escola de Música da UFRJ, 08 de Maio de 2012
- ↑ LAMEGO, Alberto (1923). A Academia Brazilica dos Renascidos: sua fundação e trabalhos inéditos. Paris, Bruxelles: L’Édition D’Art Gaudio. pp. 6 fac–símiles de 27,1 x 22,2 cm ao final do livro
- ↑ «Alberto Frederico de Moraes Lamego - Câmara Municipal de Campos dos Goytacazes». www.camaracampos.rj.gov.br. Consultado em 25 de novembro de 2017
- ↑ RIBEIRO, Joaquim (1954). Capítulos inéditos de história do Brasil. Rio de Janeiro: Edição da “Organizações Simões”. pp. 106–113
- ↑ CASTAGNA, Paulo. A Seção de Música do Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo. Brasiliana, Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Música, n.1, p.16-27, jan.1999.
- ↑ DUPRAT, Régis (janeiro–março de 1965). «A música na Bahia colonial». Revista de História, São Paulo, Depto. de História da USP. v.30, n. 61, p.93-116
- ↑ Concerto barroco: Collegium Musicum da Rádio Ministério da Educação e Cultura; direção: George Kiszely; solista convidada: Soprano Olga Maria Schroeter; regente convidado: Maestro Vicente Fittipaldi. São Paulo: CBS, LP 60120, [c.1964].
- ↑ Orquestra de Câmara de São Paulo apresenta: Música Sul Americana do Século XVIII; Marília Siegl, soprano, Olivier Toni, regente; autor anônimo da Bahia, 1759, Recitativo e Ária; Orejón y Aparício, Peru 169... 1765, Mariposa; Lobo de Mesquita, Ofertório de Nª Sª. São Paulo: Chantecler, LP CMG-1030, [c.1965] (reimpresso sob o n.034.405.218-A, 1986).
- ↑ TONI, Flávia Camargo; VOLPE, Maria Alice; DUPRAT, Régis (2000). Recitativo e ária para José Mascarenhas. São Paulo: EDUSP (Uspiana Brasil 500 anos). 178 páginas
- ↑ História da música brasileira: Período Colonial; Orquestra e Coro Vox Brasiliensis; regência de Ricardo Kanji; pesquisa musicológica: Paulo Castagna. São Paulo: Eldorado, [1998]. CD 946137. v.2, faixas 11-12.
- ↑ Borém, Fausto. "250 Anos de Música Brasileira no Contrabaixo Solista: aspectos idiomáticos da transcrição musical". In: Anais do XII Encontro Anual da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música. Salvador: Fundação Luis Eduardo Magalhães, 24 a 26 de Outubro 1999, s/p.
- ↑ América Portuguesa; Armonico Tributo Coro e Orquestra Barroca; direção Edmundo Hora. São Paulo: EGTA, 1999. Faixas 5-6.
- ↑ Buelow, George J. A History of Baroque Music. Indiana University Press, 2004, pp. 411-412
- ↑ Hora, Edmundo. "Eloquência e Afetos em Herói, Egrégio, Douto, Peregrino. Salvador Bahia, 1759". In: Atas do Congresso Internacional "A Língua Portuguesa em Música". Lisboa: Caravelas – Núcleo de Estudos da História da Música Luso-Brasileira / Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical / Universidade Nova de Lisboa, 2012, pp. 53-71
- ↑ Coro e Orquestra Armonico Tributo. Livreto do CD América Portuguesa, 1999
Ligações externas
[editar | editar código-fonte]- Reproduções das partituras originais no International Music Score Library Project (IMSLP)
- «Gravação com o Armonico Tributo Coro e Orquestra; regência de Edmundo Hora»
- «Gravação com o Vox Brasiliensis (áudio), regência de Ricardo Kanji, no v.2 do CD História da Música Brasileira»
- «Gravação com o Vox Brasiliensis (vídeo), regência de Ricardo Kanji, no Episódio 2 de História da Música Brasileira»