Crime da bala de ouro

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Crime da "Bala de Ouro"

Local do crime nos dias atuais.
Local do crime Salvador
Data 20 de abril de 1847
c. 16h00[1]
Tipo de crime feminicído, tentativa de feminicídio e homicídio
Arma(s) 3 pistolas e 1 canivete de mola (ou punhal)
Vítimas Júlia Clara Fetal
Réu(s) João Estanislau da Silva Lisboa
Advogado de defesa Dr. Luiz Maria Alves Falcão Moniz Barreto e
Dr. João Lustosa da Cunha Paranaguá[2][1]
Promotor Dr. Francisco Antônio Pereira da Rocha[2]
Juiz Dr. Francisco Marques de Araújo Góes[1]
Local do julgamento Salvador
Situação réu condenado em 29 de setembro de 1847 a 12 anos de prisão- com trabalhos forçados- segundo o artigo nº 193 do código Criminal do Império do Brasil no Forte de Nossa Senhora do Monte do Carmo[3]

Crime da Bala de Ouro é como passou à história o feminicídio praticado em Salvador pelo professor Silva Lisboa contra Júlia Fetal, escandalizando a sociedade baiana na primeira metade do século XIX.[1]

Retratado na literatura por Adélia Fonseca, Jorge Amado e Pedro Calmon e na teledramaturgia por Elizabeth Jhin,[4] o crime também mostrou um caso de reabilitação social do assassino.

A vítima[editar | editar código-fonte]

Júlia Fetal era filha do comerciante luso João Batista Fetal com a francesa Julliete Fetal, havendo nascido em 3 de fevereiro de 1827.[5][1]

A filha dos Fetal era considerada uma das moças mais "prendadas" da cidade: estudara piano, letras, religião, francês e inglês, bordado e pintura.[5] Quando era uma bela jovem de dezenove anos, branca e de cabelos pretos, ficara noiva do professor João Estanislau da Silva Lisboa (que lhe dava aulas de inglês[5]); de coração inconstante, no dizer de Jorge Amado, teria flertado com um rapaz seu vizinho, o estudante do quinto ano de direito Luiz Antônio Pereira Franco (entre outros, ainda conforme Amado).[6]

Jorge Amado assim descreve a vítima: "A todos Júlia Fetal namorava. Um professor, doido de amor, noivou com ela, pediu-lhe a mão em casamento. Júlia Fetal não nascera para noiva nem para esposa. Nascera para amante, para beijos furtados, para encontros clandestinos."[6]

O assassino[editar | editar código-fonte]

Teria João Estanislau nascido em Calcutá em 1824; na Bahia formou-se em letras, sendo o primeiro aluno laureado pelo Liceu da Bahia, conforme registrou um biógrafo do Barão de Jeremoabo, que teria sido aluno de João Estanislau quando este cumpria pena no Forte do Barbalho, e ministrou ao aluno aulas de reforço em geografia, história e inglês, além de nele incutir o gosto pela leitura.[7][1]

O crime[editar | editar código-fonte]

Enciumado, seu noivo derretera a aliança do futuro casamento e com seu ouro confeccionara a bala com a qual assassinou a prometida, no dia 20 de abril de 1847, quando esta tinha apenas dezessete[8] ou vinte anos de idade.[6]

Ele teria sido por ela rejeitado, o que o descontrolou a ponto de perder a razão e invadir a casa da moça, atirando-lhe no peito e atingindo o coração.[9]

Segundo Maria A. Schumaher o episódio da bala de ouro seria fantasioso: "Uma das histórias que se contam diz que João Estanislau derreteu as alianças de ouro do casal e fez uma bala de pistola, com a qual tirou a vida de Júlia."[5] A versão da bala de ouro teria derivado de um boato, após ser retirada pelo médico legista.[9]

Munido de três pistolas e um canivete de mola (ou punhal), Silva Lisboa invadiu o sobrado dos Fetal em 20 de abril. Encontrou a família reunida à mesa e avançou sobre Júlia, que tentou se abrigar nos braços de sua mãe, Julliete Fetal, sendo atingida por um disparo de pistola desferido por ele. O projétil atravessou-lhe a jugular, indo alojar-se em um dos pulmões. Silva Lisboa tentou atirar em Julliete Fetal quando foi desarmado por um cidadão inglês e pelo desembargador Vieira Tostes. Silva Lisboa atacou Vieira Tostes com um punhal. Este colocou sua mão diante da arma branca empunhada por Silva Lisboa para salvar-se do golpe fatal. A lâmina lhe perfurou a mão, quebrando-se ao meio.[8][1] O féretro de Júlia foi conduzido pelas ruas de Salvador, sendo liderado por vinte padres e por uma multidão silenciosa, sendo sepultada na Igreja da Graça, próximo ao jazigo de Catarina Paraguaçu.[6] Neste túmulo está um soneto de Adélia Josefina Fonseca em sua homenagem, que foi lido durante seu sepultamento pelo conselheiro Pedreira (enviado do imperador D. Pedro II):[5][1]

Soneto

Estavas bela Julia descansada,
Na flor da juventude e formosura,
Desfrutando as carícias e ternura.
Da mãe que por ti era idolatrada.
A dita de por todos ser amada
Gozava sem prever tua alma pura
Que por mesquinho fado à sepultura
Brevemente serias transportada...
Eis que de fero algoz a destra forte
Dispara sobre ti Julia querida,
O fatal tiro que te deu a morte!.
Dos olhos foi te a luz amortecida
E do rosto apagou-te iníqua sorte
A branca, viva côr, com a doce vida

Prisão e julgamento[editar | editar código-fonte]

Silva Lisboa foi desarmado e detido após o crime, sendo conduzido pelo Major Kelly ao chefe de polícia. Diante do mesmo confessou o feminicídio com frieza. Transferido para a prisão, elaborou uma lista de livros como objetos para ter consigo na cela. Segundo o Diário de Pernambuco:

No decorrer dos dias, amigos influentes tentaram interceder por sua libertação (alegando que crime foi um ato de insanidade)..[10] O próprio Silva Lisboa alegou problemas de saúde, de forma que foi atendido na Santa Casa em diversas ocasiões (levantando a suspeita, por parte do tribunal, de que tentava protelar o julgamento)[11] Após uma fuga de sete prisioneiros da prisão do Forte de Nossa Senhora do Monte do Carmo, Silva Lisboa alegou estar doente e foi conduzido (sem autorização) para a Santa Casa, permanecendo internado até 15 de julho (embora não possuísse enfermidade aparente).[12] Com isso, faltou em sessões do tribunal previstas para 14 e 15 de julho. No próprio dia 15, um anúncio anônimo deixado na entrada do jornal Correio Mercantil de Salvador informava sobre um plano de fuga de Silva Lisboa.[13]

Em 28 de setembro de 1847 João Estanislau da Silva Lisboa foi, enfim, levado às barras do tribunal. O juri formado por doze membros iniciou a análise do caso, decidindo pela condenação do réu no dia seguinte a uma pena de 12 anos de prisão (com trabalhos forçados) no Forte de Nossa Senhora do Monte do Carmo, de acordo com o artigo nº 193 do código Criminal do Império do Brasil.[3] Silva Lisboa cumpriu pena no Forte do Barbalho,[14]

A cena do crime[editar | editar código-fonte]

O sobrado em que morava Júlia pertenceu depois aos pais do poeta Castro Alves; na época ainda criança, este teria ouvido história dos fantasmas que rondavam o velho casarão.[15]

Embora o imóvel descrito como a primeira morada de Castro Alves na capital baiana permaneça inteiro, Nelson Cadena informa que o mesmo foi alvo de incêndio antes da mudança da família de Castro Alves, que o teria reformado e alterado as feições originais; diz ainda que este ficaria num local da atual Praça da Piedade, na avenida 7; finalmente informa que no século XX, possivelmente após outro incêndio, foi demolido e nova construção foi erguida no lugar.[9]

Reabilitação do homicida[editar | editar código-fonte]

Condenado a catorze anos de prisão, Silva Lisboa teve a Santa Casa de Misericórdia a interceder junto a D. Pedro II pela diminuição desse tempo pois, numa epidemia em 1855, teria prestado assistência aos doentes, ele próprio um dos afetados.[9] Ele, entretanto, enviara uma carta ao Imperador, solicitando que não fosse atendido o pedido de indulto, por não se julgar merecedor de perdão.[9]

Durante seu período de prisão, Silva Lisboa passou a ministrar dentro do cárcere aulas preparatórias para exames aos filhos de algumas das famílias mais abastadas de Salvador. Com isso, a direção do presídio improvisou uma escola no mesmo.[1]

Após sua soltura em 1859, voltou a lecionar; deu aulas de geografia e inglês no liceu da capital, onde fora seu aluno Ernesto Carneiro Ribeiro, e depois em outros colégios. Entre 1863[16] e 1877 foi diretor do Liceu São João, chegando em 1876 a publicar livro didático de geografia, intitulado "Atlas Elementar" e, no ano seguinte, convidado a integrar a Comissão da Reforma da Instrução Pública; pouco depois, doente, viajou para Lisboa, morrendo às 2h da madrugada de 9 de fevereiro de 1878.[9][17][18][19][1]

Impacto cultural[editar | editar código-fonte]

Após a publicação do livro de Pedro Calmon, a bala fora exposta no Museu Feminino da Bahia, onde os que a viram diziam ser mesmo de chumbo, e não de ouro.[9]

Júlia Fetal é nome de rua, na capital baiana.[6]

Referências

  1. a b c d e f g h i j MENEZES, Raimundo de (1962). Crimes e Criminosos Celebres. [S.l.]: Martins Fontes. p. 35-41 
  2. a b «O juri do Dr. Lisboa». Gazeta Mercantil (BA), Ano XIV edição 225, página 3 - 1ª Coluna/republicado pela Biblioteca Nacional-Hemeroteca Digital Brasileira. 28 de setembro de 1847. Consultado em 5 de agosto de 2019 
  3. a b «Redação». Gazeta Mercantil (BA), Ano XIV edição 226, página 3 - 4ª Coluna/republicado pela Biblioteca Nacional-Hemeroteca Digital Brasileira. 29 de setembro de 1847. Consultado em 5 de agosto de 2019 
  4. GALDEA, João Gabriel (5 de fevereiro de 2019). «Júlia Fetal: o feminicídio na Avenida Sete que inspirou a novela Espelho da Vida». Jornal Correio. Consultado em 28 de fevereiro de 2022 
  5. a b c d e Maria Aparecida Schumaher (2000). Dicionário mulheres do Brasil: De 1500 até a atualidade. [S.l.]: Zahar. 522 páginas. ISBN 9788537802151. Consultado em 17 de dezembro de 2018 
  6. a b c d e Luiz Eduardo Dórea (2006). História de Salvador nos Nomes das suas Ruas. [S.l.]: Scielo/Edufba. 450 páginas. ISBN 9788523208738. Consultado em 17 de dezembro de 2018. verbete: Júlia Fetal 
  7. Álvaro Pinto Dantas de Carvalho Júnior (2006). O Barão de Jeremoabo e a Política de Seu Tempo. [S.l.]: Empresa Gráfica da Bahia. p. 81-82. 540 páginas. ISBN 8575051474 
  8. a b c «S.Pedro do Sul-ilegível-Horrorosos assassinatos». Diário de Pernambuco, Ano XXIII, edição 97, página 2-Segunda Coluna/republicado pela Biblioteca Nacional-Hemeroteca Digital Brasileira. 30 de abril de 1847. Consultado em 5 de agosto de 2019 
  9. a b c d e f g Nelson Cadena (27 de julho de 2018). «Amor extremo: a bala de ouro que matou Julia Fetal virou tema de romance». Correio 24 Horas. Consultado em 17 de março de 2019. Cópia arquivada em 17 de março de 2019 
  10. «Diário de Pernambuco_recife 4 de maio de 1847». Diário de Pernambuco/republicado pela Biblioteca Nacional-Hemeroteca Digital Brasileira. 5 de maio de 1847. Consultado em 9 de agosto de 2019 
  11. «Juízo da 1ª Vara Crime». Correio Mercantil (BA), Ano XIV, edição 164, página 2 (1ª coluna)/republicado pela Biblioteca Nacional-Hemeroteca Digital Brasileira. 17 de julho de 1847. Consultado em 9 de agosto de 2019 
  12. «Expediente:Presidência da Província». Correio Mercantil (BA), Ano XIV, edição 167, página 1 (1ª coluna)/republicado pela Biblioteca Nacional-Hemeroteca Digital Brasileira. 21 de julho de 1847. Consultado em 9 de agosto de 2019 
  13. «2ª Coluna». Diário de Pernambuco, Ano XXIV, edição 164, página 2-Segunda Coluna/republicado pela Biblioteca Nacional-Hemeroteca Digital Brasileira. 26 de julho de 1847. Consultado em 9 de agosto de 2019 
  14. Luiz Eduardo Dórea (2006). História de Salvador nos Nomes das suas Ruas. [S.l.]: Scielo/Edufba. 450 páginas. ISBN 9788523208738. Consultado em 17 de dezembro de 2018. verbete Forte do Barbalho 
  15. João de Carvalho (1989). O Cantor dos Escravos: Castro Alves. [S.l.]: T. A. Queiroz Editor. pp. 150 pág. ISBN 9788571821026. Consultado em 17 de dezembro de 2018 
  16. «Colégios particulares da Capital». Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Bahia, página 274/republicado pela Biblioteca Nacional-Hemeroteca Digital Brasileira. 1863. Consultado em 9 de agosto de 2019 
  17. «Ineditoriais:Raymundo Elias de Souza Barroso ao público V». O Monitor, Ano II, edição 275, página 2/republicado pela Biblioteca Nacional-Hemeroteca Digital Brasileira. 3 de maio de 1878. Consultado em 9 de agosto de 2019 
  18. João Estanislau da Silva Lisboa (11 de março de 1877). «Atlas Elementar». O Monitor, Ano I, edição 227, página 3/republicado pela Biblioteca Nacional-Hemeroteca Digital Brasileira. Consultado em 9 de agosto de 2019 
  19. «Imperial Colégio Pedro II». Correio Paulistano, Ano XXIV, edição 6248 , página 2/republicado pela Biblioteca Nacional-Hemeroteca Digital Brasileira. 1 de setembro de 1877. Consultado em 9 de agosto de 2019 

Bibliografia[editar | editar código-fonte]

Ligações externas[editar | editar código-fonte]