Anauê

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Anauê é uma saudação brasileira de origem indígena, com uso documentado em 1911 entre os nhambiquaras no Mato Grosso. Foi extensivamente usada a partir de 1923 e até 1936 pelo movimento escotista do Brasil como saudação escotista, devido ao cariz indigenista desse movimento. No início da década de 1930 começou a ser usada em exibições públicas pelos integralistas brasileiros, de modo semelhante às saudações dos fascistas europeus e à saudação nazista, por sua vez evoluídas da saudação romana.[1][2][3][4] A apropriação da saudação pelos integralistas brasileiros veio a causar o seu abandono em 1936 pelo movimento escotista, de carácter apartidário, por forma a não ser confundido com o integralismo.

História[editar | editar código-fonte]

O termo foi documentado em dezembro de 1911 pelo Marechal Rondon na foz do Juina, no Mato Grosso, como saudação específica dos nhambiquaras, usada para se anunciarem a quem chega.[5]

Em 1928, artigo publicado na Revista Marítima Brasileira refere o grito de vitória "aroeira" como parte da linguagem do mar, o qual alegadamente teria derivado do guarani "anauê".[6]

Escotismo[editar | editar código-fonte]

Em outubro de 1923, o líder escotista Jaboty-êtê (Velho Lobo), descrito como "grande cultor do indigenismo nacional", em artigo publicado no jornal infantil O Tico-Tico, relata o uso da saudação escotista de quem chega "Aná-u-ê! Aná-u-ê!" durante uma atividade escoteira, respondida pela saudação de quem está: "Anê-rê! Anê-rê!", ambas alegadamente extraidas da língua tupi.[7] O mesmo dirigente publica uma missiva semelhante em novembro seguinte na Gazeta de Notícias, na qual dirige às crianças a saudação escotista "Ana-uê, colomys!", que segundo ele significaria "Salvê meninos!" em tupi, sendo respondido pelas crianças com "Anê-rê! Anê-rê!", significando "Boa vinda!, Boa vinda".[8]

Em setembro de 1924, no suplemento "Escotismo" do Tico-Tico, Velho Lobo saúda os escoteiros americanos com "Anauê!"[9] Em julho de 1925, o dirigente escotista Guilherme Azambuja Neves abriu o fogo de conselho dos Escoteiros do Fluminense F.C. com um tríplice "Anauê! Anauê! Anauê!", dirigido aos escuteiros do Fluminense, aos do Brasil, e aos de todo o mundo.[10]

Em dezembro de 1926, os escoteiros do Brasil tinham por grito de saudação "Pró Brasil! Anauê! Pró Brasil! Anauê! Pró Brasil! Anauê!", repetido em coro com intervalos de três tempos, sendo a saudação da União dos Escoteiros do Brasil, "U.E.B.! U.E.B.! U.E.B.! rha! rha! rha! Pró Brasil! Anauê! Anauê! Anauê!".[11][12]

Em setembro de 1927, documenta-se como saudação escotista patriótica, usada pelos escoteiros de Campinas numa transmissão por pombo-correio,[13] e em novembro seguinte como saudação escotista, pela Tropa de Escoteiros do Grupo Escolar "Gomes Cardim", de Vitória, no Espírito Santo.[14]

Em julho de 1928, a Associação de Escoteiros Mineiros deu início à publicação de uma revista intitulada "Anauê".[15]

Em 9 de março de 1929, é usada em telegrama enviado pelos escoteiros do 63.º distrito, de Bauru, aos seus congéneres da Associação de Escoteiros Baden Powell de São Paulo, por ocasião do seu sétimo aniversário, associado ao lema escoteiro: "Anauê, anauê, anauê - Sempre Alerta!"[16]

O mesmo uso documenta-se em agosto de 1930 pela Confederação dos Escoteiros do Estado de São Paulo, celebrando o primeiro aniversário da criação da Associação de Escuteiros Fábio Barreto.[17]

Em março de 1931, documenta-se o seu uso como entusiástica saudação escotista num acampamento de instrução escotista na Barra do Jucu, no Espírito Santo.[18] Em maio de 1932, a tropa de escoteiros de São Mateus, no mesmo estado, homenageou o seu chefe, o professor Agenor Leé, com um tríplice "Anauê!",[19] que segundo a informação divulgada pelo movimento escotista significaria "Salvé!" na língua dos índios brasileiros.[20] No mesmo ano, a saudação "Pró Brasil! Anauê! Anauê! Anauê!" era usada em materiais de divulgação do movimento escotista.[21]

Em abril de 1933, na tomada de posse da nova diretoria da Federação Espirito Santense de Escoteiros, foi "elevado um anauê pela prosperidade da pátria".[22]

Em outubro de 1936, a Federação Mineira de Escoteiros, de Minas Gerais, anunciou o abandono da saudação "anauê", trocando-a pelo grito "marangutú", uma vez que esta havia sido apropriada por um partido político, o Movimento Integralista, sendo o movimento escotista completamente alheio à política.[23][24][25][26] No mesmo ano, a Federação Mineira propôs, com a mesma justificação, o abandono dessa saudação pelos escoteiros do Brasil, sendo a proposta recebida com aclamação.[26]

Em março de 1937, o Tico-Tico ainda divulgava como curiosidade a mesma informação de "anauê!"" significar "salvé!" em língua indígena brasileira, embora não mais associada ao movimento escotista.[27]

Manifestantes da Ação Integralista Brasileira realizando o gesto

Integralismo brasileiro[editar | editar código-fonte]

Foi incorporada como saudação oficial entre os integrantes do Movimento Integralista. Mais precisamente na "Era Vargas", no governo que ficou conhecido como "governo provisório" (1930 a 1934), seguindo o modelo integralista lusitano, foi criada a Ação Integralista Brasileira (AIB), cujos membros vestiam uniformes com camisas verdes e desfilavam pelas ruas como tropa militar, gritando a saudação alegadamente de origem indígena "Anauê!". Durante esse período aconteceu a Batalha da Praça da Sé, onde um número de manifestantes antifascistas iniciaram com provocações como "morra o integralismo" e "fora, galinhas verdes".[28]

Segundo os integralistas, a saudação "Anauê!" de braço levantado manifestava a intenção de se identificar com seus iguais, supostamente repetindo um ritual indígena que traduziria "anauê" por "sou teu amigo", reforçando a solidariedade entre as pessoas.[29]

Seu uso demonstra uma contradição do Movimento Integralista, uma vez que, embora promovessem uma moral cristã, negando a religião politeísta, anauê é uma expressão de origem indígena.[28]

Etimologia[editar | editar código-fonte]

O uso da expressão "Anauê!" como saudação a quem chega foi documentada em 1911 pelo Marechal Rondon como específica dos nambiquaras do Mato Grosso,[5] falantes da língua nambiquara, geralmente enquadrada fora dos troncos linguísticos tradicionais.

Não obstante, têm surgido tentativas de enquadrar a expressão noutras famílias linguísticas. Segundo Gustavo Barroso, um dos líderes da Ação Integralista Brasileira, a saudação seria uma junção de diferentes cumprimentos existentes na língua tupi.[1] Para Luís da Câmara Cascudo, a palavra ter-se-ia originado da língua dos parecis, indígenas nuaruaques. Sendo um grito, significaria "unido-aos-outros-iguais, de solidariedade, de reunião, de agrupamento, de toque-de-reunir. O emprego como aclamação seria uma aclimatação da voz militar nos cerimoniais civis".[30]

Na cultura popular[editar | editar código-fonte]

Em 2019, Ernesto Araújo, o então recém-empossado ministro das Relações Exteriores do Brasil, terminou seu discurso com a expressão "Anauê Jaci", suposta tradução tupi de "Ave Maria". O acontecimento levantou hipóteses de associação entre o bolsonarismo e o integralismo.[31] Desconhecem-se, entretanto, registros históricos de tal tradução, cujo conteúdo, além de gramaticalmente impreciso, difere da versão da ave-maria existente no Catecismo na língua brasílica.[32]

Notas e referências

Notas

Referências

  1. a b Silva, Rogério Souza (2005). «A política como espetáculo: a reinvenção da história brasileira e a consolidação dos discursos e das imagens integralistas na revista Anauê!». Revista Brasileira de História. 25 (50): 61–95. ISSN 0102-0188. doi:10.1590/S0102-01882005000200004. De fato, a Ação Integralista Brasileira possuía todos os elementos de caracterização externa do fascismo, como a camisa-uniforme, nascida da camiccia nera de Mussolini, que nele era verde (como nos congêneres romeno e húngaro), tendo sido parda no nazismo, preta nos fascistas tchecos e ingleses, azul nos irlandeses e nos portugueses de Rolão Preto; e até dourada num agrupamento mexicano aparentado. Ou, ainda, o signo de conotação meio mística: fascio littorio, svástica, cruz de fechas, tocha e, no Brasil, o sigma somatório. Ou, também, a saudação romana, comum a todas as modalidades e que entre nós passou por um processo revelador de assimilação, identificando-se à saudação indígena de paz com o brado 'Anauê'. Resultou uma saudação nacional, peculiar, reveladora do indianismo que sempre reponta em nossos diferentes nacionalismos como busca do timbre diferenciador; mas que nem por isso deixa de ser manifestação do sistema simbólico do fascismo, geral. 
  2. Payne, Stanley (1995). «Fascism outside Europe?». A history of fascism, 1914–1945 2 ed. [S.l.]: Routledge. p. 345. ISBN 978-1-85728-595-6. The Integralists sought to achieve an authoritarian and corporatist state (an "integral state") that would foster a new multiracial—if anti-Semitic—Brasilidade, a new Brazilian "race" defined in cultural and historical rather than ethnobiological terms. Members of the movement wore green shirts and combined the fascist salute with the Brazilian Indian greeting of "Anauê." 
  3. Barbosa, Jefferson Rodrigues (2015). «Chauvinismo e extrema direita: crítica aos herdeiros do sigma». São Paulo: Editora da UNESP – via Scielo Livros. O figurino, com poucas modificações, permanece, saído diretamente dos anos 30. As botas, os quepes e o Sigma (que está para o integralismo como a suástica para o nazismo) atado ao braço deixaram de existir, mas a camisa verde está lá. O Sigma, agora mais discreto, aparece em prendedores de gravatas, pretas, como as calças e os sapatos. Só falta a saudação anauê, que costumavam fazer com o braço direito esticado. Engana-se, porém, quem pensa que a antiga doutrina atrai só saudosistas e remanescentes do auge do integralismo, época em que os "camisas verdes" chegaram a ser 1 milhão. Ao lado das cabeças brancas, jovens simpatizantes afirmam os valores da doutrina. Adequados, ao seu modo, aos novos tempos, os integralistas veem na Internet o grande instrumento para a divulgação de suas ideias. 
  4. Fedrigo, Adamatti, Silva, Demari, Ávila, Camila, Bianka, Débora, Melissa, (16 de setembro de 2013). «ANAUÊ! O BRADO TUPI-FASCISTA DO DESDÉM AOS DIREITOS HUMANOS» (PDF). Universidade FEEVALE. XI Seminário de Estudos Históricos: A democracia ainda é a questão: Reflexões sobre a ditadura civil-militar e a comissão nacional da verdade: 5. Consultado em 14 de julho de 2022. O movimento Integralista destacou-se no Brasil com um cada vez maior número de seguidores, que ficaram conhecidos como "camisas verdes" fazendo menção aos seus uniformes. Exibições públicas, típicas dos movimentos fascistas eram comuns no Movimento Integralista.5 Tratavam-se com um cumprimento de origem tupi-guarani, "Anauê!" com clara alusão ao "Heil!" nazista. 
  5. a b «Sessão em 31 de dezembro de 1915». Imprensa Nacional. Annaes da Camara dos Deputados. XX: 543, 565. 1918 
  6. «Revista Maritma Brazileira (RJ) - 1881 a 2012 - DocReader Web». memoria.bn.br. Consultado em 4 de setembro de 2023 
  7. «Excerpto de um relatorio de Observação». O Tico-Tico. Ano XVIII (939): 10. 3 de outubro de 1923 
  8. Jaboty-êtê (6 de novembro de 1923). «Escotismo - Ana-uê, colomys!». Rio de Janeiro. Gazeta de Notícias. ANo XLVIII (250): 2 
  9. «O Tico-Tico : Jornal das crianças (RJ) - 1905 a 1961 - DocReader Web». memoria.bn.br. Consultado em 4 de setembro de 2023 
  10. «O Imparcial (RJ) - 1920 a 1929 - DocReader Web». memoria.bn.br. Consultado em 4 de setembro de 2023 
  11. «A Rua : Semanario Illustrado (RJ) - 1910 a 1927 - DocReader Web». memoria.bn.br. Consultado em 4 de setembro de 2023 
  12. «Saudações». A Voz do Mar. Ano VIII (81): 36. Março 1929 
  13. «Diário da Noite (SP) - 1927 a 1980 - DocReader Web». memoria.bn.br. Consultado em 4 de setembro de 2023 
  14. «Diario da Manhã : Orgão do Partido Constructor (ES) - 1908 a 1937 - DocReader Web». memoria.bn.br. Consultado em 4 de setembro de 2023 
  15. «O Jornal (RJ) - 1920 a 1929 - DocReader Web». memoria.bn.br. Consultado em 4 de setembro de 2023 
  16. «Aniversário da Associação de Escoteiros "Baden Powell"». São Paulo: A Gazeta. Ano XXIII (6932). 12 de março de 1929: 2 
  17. «Escotismo». São Paulo: A Gazeta. Ano XXV (7369). 13 de agosto de 1930: 11 
  18. «Diario da Manhã : Orgão do Partido Constructor (ES) - 1908 a 1937 - DocReader Web». memoria.bn.br. Consultado em 4 de setembro de 2023 
  19. «Diario da Manhã : Orgão do Partido Constructor (ES) - 1908 a 1937 - DocReader Web». memoria.bn.br. Consultado em 4 de setembro de 2023 
  20. «O Tico-Tico : Jornal das crianças (RJ) - 1905 a 1961 - DocReader Web». memoria.bn.br. Consultado em 4 de setembro de 2023 
  21. «Diario da Manhã : Orgão do Partido Constructor (ES) - 1908 a 1937 - DocReader Web». memoria.bn.br. Consultado em 4 de setembro de 2023 
  22. «Diario da Manhã : Orgão do Partido Constructor (ES) - 1908 a 1937 - DocReader Web». memoria.bn.br. Consultado em 4 de setembro de 2023 
  23. «"Marangutú" em vez de "Anauê"». A Federação. Ano LIII (244): 2. 27 de outubro de 1936 
  24. «O Estado de Florianópolis (SC) - 1915 a 1975 - DocReader Web». memoria.bn.br. Consultado em 4 de setembro de 2023 
  25. «Diario da Tarde (PR) - 1899 a 1983 - DocReader Web». memoria.bn.br. Consultado em 4 de setembro de 2023 
  26. a b «Diario da Manhã : Orgão do Partido Constructor (ES) - 1908 a 1937 - DocReader Web». memoria.bn.br. Consultado em 4 de setembro de 2023 
  27. «O Tico-Tico : Jornal das crianças (RJ) - 1905 a 1961 - DocReader Web». memoria.bn.br. Consultado em 4 de setembro de 2023 
  28. a b FEDRIGO, Camila Paese (Setembro de 2013). «Anauê!: o brado tupi-fascista do desdém aos direitos humanos» (PDF). Universidade Feevale. A democracia ainda é a questão: reflexões sobre a ditadura civil-militar e a comissão nacional da verdade. 20 páginas. Consultado em 30 de dezembro de 2022. Cópia arquivada (PDF) em 14 de julho de 2022 
  29. «Revista Maritma Brazileira (RJ) - 1881 a 2012 - DocReader Web». memoria.bn.br. Consultado em 4 de setembro de 2023 
  30. GRECCO, Gabriela de Lima (20 de dezembro de 2022). «Fascismo além das fronteiras europeias? Ação Integralista Brasileira e o fascismo no Brasil». Locus: Revista de História (2): 202–222. ISSN 2594-8296. doi:10.34019/2594-8296.2022.v28.37336. Consultado em 30 de dezembro de 2022 
  31. «Bolsonaro repetiu lema integralista ao encerrar discurso na ONU; entenda». Estadão. Consultado em 30 de dezembro de 2022 
  32. SANTOS, César (17 de setembro de 2020). «Anuê Jaci: política externa e povos indígenas diante da inflexão conservadora e do bolsonarismo». Universidade Estadual Paulista. Cadernos de Campo (28). 18 páginas. Consultado em 22 de agosto de 2022. Cópia arquivada em 27 de maio de 2022