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Família Escrava no Brasil[editar | editar código-fonte]

" PESSOAS QUE ERAM COISAS QUE ERAM PESSOAS...

E CULTIVAVAM, NÃO OBSTANTE,

SUAS RELAÇÕES FAMILIARES. " (SLENES, 2011, p. 302)

Introdução[editar | editar código-fonte]

Rotas Atlânticas do Tráfico Africano de Escravos(Comércio Triangular)

Para compreender a questão da Família Escrava no Brasil, antes de mais nada, é importante termos em vista a quantidade de africanos que desembarcaram nas colônias americanas e ilhas do Atlântico durante os séculos XVI-XIX. Estima-se que mais de 12 milhões de cativos africanos cruzaram o Atlântico[1] e desembarcaram em terras Americanas a partir de 1501 até 1866, tendo seu auge acontecido durante o século XVIII[2]. Apenas no Brasil, esse número pode chegar a quase 5 milhões de africanos, ou seja, a colônia Portuguesa recebeu a maior porcentagem de escravos africanos, número muito superior que os Estados Unidos, as ilhas do Caribe e demais colônias americanas. Dentre estes cativos, a proporção entre homens e mulheres era de aproximadamente 4:1 (quatro homens para cada mulher), fato dado principalmente por dois fatores: o homem como principal mão-de-obra nas plantações e engenhos, e o fato dos traficantes Africanos preferirem ficar com as mulheres na África, pois eram a principal fonte de reprodução de cativos. A partir dessa, quase que impensável, quantidade de africanos trazidos como escravos para as colônias americanas, é importante pensarmos na questão da constituição de famílias e da relação de parentesco entre eles. Diversos fatores sempre foram motivos de estudos na questão da escravidão: relação senhor-escravo, as alforrias, fugas, quilombos, revoltas, plantation, etc., ou seja, o escravismo em geral. Mas somente a partir da década de 1970 é que a questão da família nuclear cativa foi debatida com mais ênfase pelos historiadores. Antes disso, devido relatos de viajantes que observavam outros aspectos da vida dos cativos, a ideia que se tinha era que a mesma era marcada pela promiscuidade, desregramento e violência. A instabilidade das uniões e a promiscuidade, consideradas características da vida escrava, foram associadas à deficiência política dos escravos, ou seja, à sua nulidade como sujeitos históricos. Por essa abordagem, por definição, a escravidão destruiria a possibilidade de família escrava. No Brasil, a partir dos anos 70, graças a estudos e pesquisas mais focadas nessa questão, a família escrava foi tomada como um resultado da vontade própria dos escravos em formar uma comunidade dentro do cativeiro, bem como parte de suas estratégias de sobrevivência, ao mesmo passo que atendia aos interesses senhoriais de controle social dentro do seu plantel.

Casamentos[editar | editar código-fonte]

Dados apresentados pelo Prof. Manolo Florentino

A busca por uma união estável entre os cativos pode nos fornecer dados importantes para entendermos o complexo sistema escravista. Vimos anteriormente que milhões de escravos chegaram as costas brasileiras vindos de diversas partes do Continente Africano, e isso acabou por ser um fator primordial na constituição matrimonial entre os cativos. Diferentemente dos indígenas – que procuravam uniões exogâmicas – os cativos africanos buscavam seus parceiros (as) numa união endogâmica, ou seja, aqueles escravos de origem africana procuravam se casar com outros indivíduos igualmente vindos da África, e mais, além de ser endogâmicos, os cativos buscavam ainda casar-se com indivíduos da mesma etnia africana (nagôs casavam-se com nagôs, jejes com jejes, minas com minas, hauçás com hauçás, etc.). Isso foi um fator fundamental para a constituição de uma certa identidade africana, da valorização de suas raízes, e com isso, seus costumes. Porém, como a família era um pré-requisito para ter direito à terra, o acesso à família tornou-se difícil em dado momento devido a preferência pelo matrimônio endogâmico entre os escravos, e assim sendo, pela diferença homens x mulheres entre os africanos e mais equilibrada entre os mulatos (por exemplo), era normal que africanos homens buscassem por mulheres mulatas. Mas não deixa de ser difícil conseguir o casamento, pelo fato dos mulatos serem, preferencialmente, também endogâmicos.

Um grande estudioso da questão do casamento e constituição de famílias escravas foi Robert Slenes, ele mostra que as identidades criadas através das “recordações africanas” durante o cativeiro, fortalecidas pelos laços de uma união estável[3]. Além disso, com o aumento de estudos nessa área, nos revelam outras especificidades em relação ao casamento entre cativos, por exemplo, o fato de casais de escravos terem uma casa separada dos outros (que dormiam nas senzalas), sendo possível inclusive, que possuíssem um pedaço de terra para plantar diversos produtos alimentícios que seriam de sua propriedade, favorecendo o acumulo de pecúnia, que futuramente poderia ser utilizado para comprar sua liberdade.[4]

Pesquisas recentes vêm revelando que o peso causado pela escravidão não destruiu a instituição familiar africana, e apesar de diversos obstáculos, a constituição da família escrava existiu de fato, sendo tão importante para o cativo em si quanto para seus senhores proprietários. Casamentos longos e estáveis, de 10 anos ou mais, eram bastante comuns entre os africanos, e muitas das vezes eram sacramentados pela Igreja. Existem diversos documentos e registros de casamento e batismos de escravos que ajudam a fundamentar tais dados e são de extrema relevância para se estudar o período.

Tal fato também não exclui a existência de mães solteiras no meio rural. Segundo dados de inventários post-mortem, cerca de 10% a 30% das crianças de 0 - 3 anos que viviam na zona rural não tinham pais. E essa porcentagem aumenta de acordo com a idade de tais crianças, por exemplo, para crianças de 3 – 7 anos a porcentagem varia de 30% a 60%, e para 7 – 11 anos, a variação é de 60% a 80% de crianças sem pais.[5] Bem como também não se exclui o fato de muitos homens solteiros, devido ao que foi dito anteriormente, a desproporcionalidade no número de homens e mulheres, e sendo assim, tais indivíduos eram a maioria na quantidade de fugas. Já no caso das mulheres, pelo fato delas se casarem mais, eram a minoria dentre os fujões.

Ainda sobre casamentos, um fato observado é a preferência dos homens mais velhos por mulheres mais jovens, num quadro simétrico, onde quanto maior a diferença de idade entre os homens (principalmente os crioulos), mais jovem eram suas esposas. Em contrapartida, se o homem era muito jovem, ele só encontraria uma esposa entre as mulheres mais velhas, resultado do fato de que as mulheres jovens (principalmente em idade fértil) já estarem relacionadas com os homens mais velhos. Era como se houvesse um tipo de monopólio por parte dos cativos mais velhos sobre as mulheres jovens, onde não havia escolha para os jovens, se não, buscarem pelas cativas mais velhas.

Família e Parentesco[editar | editar código-fonte]

Cinco gerações em uma plantação na Carolina do Sul, EUA, 1862 (Foto: Timothy H. O'Sullivan)

Devemos ter em mente que família é diferente de parentesco. Entendemos família com união nuclear composta por pai, mãe e filhos, já no caso do parentesco, o apadrinhamento e outras relações não consanguíneas são o fator importante.

Um novo consenso sobre a importância da família no sistema escravista havia se formado em meados da década de 1970, principalmente com trabalhos de dois grandes historiadores da escravidão americana: Herbert G. Gutman (1928 – 1985) e Eugene D. Genovese (1930 – 2012). A partir de uma ampla documentação, ambos os historiadores argumentaram que a família nuclear escrava foi uma instituição muito forte e amplamente valorizada pelos cativos, que não somente os pais, mas também as mães, eram figuras extremamente importantes na vida de seus filhos e que os escravos tinham certas normas familiares próprias e que não eram derivadas dos proprietários, simplesmente. Além disso, os dois autores fortaleceram a ideia de que a cultura era transmitida e reformuladas entre as gerações, e que fornecia ao escravo recursos importantes para enfrentar as condições de seu cativeiro. Gutman e Genovese discordavam apenas em relação à autonomia que era atribuída à cultura escrava. Para Gutman, a relação existente entre senhores e escravos, apesar da proximidade física entre eles, eram antagônicas e desiguais, fazendo que eles não compartilhassem da mesma cultura simbólica. Já para Genovese, tal proximidade física e interação diária, promoviam negociações culturais entre os senhores e seus escravos, quase que num regime “paternalista”.[6][

Habitação de negros, de Rugendas, 1827-1835

Diversos historiadores brasileiros também se dedicaram a estudar a respeito da família escrava. Entre eles destacamos o trabalho de Manolo Florentino e José R. Góes, que no livro A Paz das Senzalas nos mostram uma análise política acerca da escravidão, concluindo que as relações familiares e parentais entre os escravos atendiam principalmente aos interesses dos senhores, uma vez que tais relações amenizavam os enfrentamentos entre os cativos, diminuindo as tensões e permitindo que os laços de solidariedade e auxílio mútuo entre os escravos se ampliassem, ou seja, a constituição de uma família estável funcionava como um elemento de estabilização social, além de evitar fugas e revoltas dentro dos plantéis.[7]

Atualmente, entre os estudiosos não se aceita mais a hipótese da inexistência da família como instituição presente e importante no cativeiro. Ao contrário, todos os autores que tratam deste tema percebem sua importância para o estudo do sistema escravista. O que existe são diferentes interpretações sobre o papel da família escrava: para uns ela foi fundamental para a manutenção do regime escravista, pois na medida que criava vínculos, ela pacificava seus membros. Para outros autores, a família contribuía para formar aliados, tornando-se uma ameaça para o escravismo, ao favorecer a formação de uma comunidade escrava em oposição aos senhores.

Dados apresentados pelo Prof. Manolo Florentino

No Brasil Colonial, nem sempre a família escrava era constituída dentro de um padrão nuclear, pois os escravos também utilizavam de outras relações de parentesco – mais simbólicas e rituais – como a relação de compadrio (No caso dos padrinhos, os livres eram cerca de 10%, já os escravos estavam em torno dos 67% e os libertos eram 24%. As madrinhas seguiam o mesmo padrão, e nas propriedades maiores, os escravos correspondiam a cerca 75% dos padrinhos), irmandades religiosas e grupos étnicos (nações). Como dito anteriormente, muitos casamentos eram sacramentados pela Igreja, porém isso não impediu o estabelecimento de relações afetivas tão significativas e estáveis como as famílias nucleares. Tais relações de parentesco permitiam ao escravo articularem uma rede de solidariedade bem mais extensa que as proporcionadas pela união sanguínea. Porém havia também as famílias onde o casal ou os filhos não viviam na mesma casa ou nem na mesma fazenda, seja pela venda ou aluguel de escravos ou até mesmo pela alforria. Nesse caso, muitos escravos (livres ou libertos) se esforçavam para obter a liberdade de familiares e entes queridos, como forma de evitar a desagregação da família. Vale lembrar que a proibição aos senhores de separarem por venda ou outros motivos, os cativos que constituíam famílias, somente seria legalizada em 1871, com a Lei nº 2.040 de 28 de setembro, “Art. 4º, onde se diz: § 7.º - Em qualquer caso de alienação ou transmissão de escravos, é proibido, sob pena de nulidade, separar os cônjuges e os filhos menores de 12 anos do pai ou mãe”.[8]

  • Nos EUA, as famílias de escravos eram, geralmente, separadas após a morte do senhor, por ocasião da partilha da herança.
  • No Brasil, mesmo após a morte do proprietário dos escravos, havia a tendência dos herdeiros conservarem as famílias escravas juntas.

Cabe ressaltar aqui também, a questão da reprodução entre as escravas. Se compararmos à África (onde as mulheres tinham seu período de reprodução dos 15 aos 30 anos, com intervalo genésico de aproximadamente 5 anos), as escravas iniciavam seu período de reprodução aos 17 e terminavam aos 35 anos, porém com intervalo genésico menor, em média de 3 anos. Disso podemos concluir que havia um certo urgência em procriar, possivelmente para poder ampliar as relações de parentesco, visto que isto pacificava e criava laços de sociabilidade entre os escravos.


Conclusão[editar | editar código-fonte]

Como foi visto, a constituição da família escrava foi de vital importância no cotidiano do cativo. Foi por meio dela que os escravos tiveram uma oportunidade não apenas de manter suas raízes africanas, mas também de contar com uma instituição forte que poderia garantir a eles a possibilidade de auferir ganhos – sejam eles sociais, políticos ou econômicos – além de permitir a construção de espaços de solidariedade mútua e sociabilidade. Vimos também que a constituição de uma família escrava ia além do “núcleo primário” baseado no parentesco consanguíneo, já que essa relação familiar se estendia muito além de qualquer limite consanguíneo ou da unidade domiciliar. Mais do que isso, ela poderia ultrapassar os limites legais que estavam inclusos na condição de escravo, por meio de relações entre cativos, pessoas livres e libertas. Portanto, os escravos africanos que aqui chegaram constituíram sim uma estrutura familiar, e em muitos casos bem estável, ficando claro que qualquer Povo sempre estará em busca de sua identidade, suas raízes, sua convivência social e afetiva, seu espaço, e com o povo africano escravizado não poderia ser diferente.

Sendo assim, podemos resumir a importância da família escrava:

  • Para o Proprietário
  1. Redução do número de fugas (de 30% a 50% das fugas eram para ver parentes);
  2. Diminuição de conflitos entre escravos e revoltas.
  • Para o Escravo
  1. Possibilidade de receber um pedaço de terra para produzir para si próprio ("Brecha Camponesa");
  2. Construção de espaços de solidariedade mútua e sociabilidade;
  3. Fortalecimento da "identidade africana", resgate e transmissão de suas raízes e cultura pelas gerações futuras.

Referências[editar | editar código-fonte]

  1. FLORENTINO, Manolo. Aspectos do tráfico negreiro na África Ocidental (c. 1500 – c. 1800). In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima. O Brasil Colonial: 1443-1580. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2014. Cap. 5, pág. 229. ISBN 9788520009444
  2. Idem, pág. 235.
  3. SLENES, Robert Wayne. Na senzala, uma flor – esperanças e recordações na formação da família escrava: Brasil Sudeste, século XIX. 2ª ed. corrigida. Campinas: Editora da Unicamp, 2011. ISBN 9788526809444
  4. CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. Escravo ou Camponês? - O Protocampesinato Negro nas Américas. São Paulo, Editora Brasiliense, 1987. ISBN 9788511130691
  5. A amostra compõe-se de 234 crianças para 1790-1807, e de 428 crianças para 1810-1835. Fonte: Inventários post-mortem, 1790-1835. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  6. MACHADO, Maria Helena. Em torno da autonomia escrava: Uma nova direção para a História Social da escravidão. Revista Brasileira de História, v. 8, nº 16, pp. 143-160. São Paulo, mar/88 – ago/88.
  7. FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: Famílias escravas e Tráfico Atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790 – c. 1850. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1997. ISBN 9788539306848
  8. Lei Nº 2.040, de 28 de setembro de 1871 - Em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM2040.htm (Acessado em 01 de novembro de 2017)

Bibliografia recomendada[editar | editar código-fonte]

BERLIN, Ira. Gerações de cativeiro: uma história da escravidão nos Estados Unidos. Rio de Janeiro, Record, 2006. ISBN 9788501069092

BLACKBURN, Robin. A construção do Escravismo Colonial no Novo Mundo, 1492-1800. Rio de Janeiro, Record,  2003. ISBN 9788501052183

DAVIS, David B. O Problema da Escravidão na Cultura Ocidental. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001. ISBN 9788520005545

FINLEY, Moses. Escravidão Antiga e Ideologia Moderna. Rio de Janeiro, Graal, 1991. ISBN 9788570380654

FLORENTINO, Manolo. Em costas negras. São Paulo, Companhia das Letras, 2010. ISBN 9788539305575

GRINBERG, Keila; PEABODY, Sue. Escravidão e Liberdade nas Américas. 1ª edição. Rio de Janeiro. Editora FGV, 2013. 146 p. (Coleção FGV de bolso. Série História). ISBN 9788522514571

PÉTRE-GRENOUILLEAU, Olivier. A história da escravidão.  São Paulo, Boitempo, 2009. ISBN 9788575591529

THORNTON, John K.  A África e os Africanos na Formação do Mundo Atlântico, 1400-1680. Rio de Janeiro, Campus, 2004. ISBN 9788535212846

Ver também[editar | editar código-fonte]

Ligações externas[editar | editar código-fonte]

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