Saltar para o conteúdo

A Estrutura das Revoluções Científicas: diferenças entre revisões

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Conteúdo apagado Conteúdo adicionado
bot: revertidas edições de 201.21.219.128 ( modificação suspeita : -21), para a edição 36467651 de Matheus Faria
conteúdo histórico
Etiqueta: Categorias removidas
Linha 1: Linha 1:
{{Sem-fontes|data=novembro de 2012}}
Apresenta-se aqui uma síntese de alguns dos tópicos importantes do livro de Thomas Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, cuja primeira edição apareceu em 1962. Essa síntese não visa, evidentemente, a substituir a leitura do próprio livro, tendo caráter meramente didático e introdutório.
'''A Estrutura das Revoluções Científicas''' ([[Thomas Kuhn]], 1962) é uma análise sobre a [[história da ciência]]. Sua publicação estabelece um marco na sociologia do conhecimento (ver [[epistemologia]]), popularizando os termos [[paradigma]] e [[mudança de paradigma]].

Kuhn começou sua carreira acadêmica como físico teórico, interessando-se depois por história da ciência. Ao longo das importantes investigações que empreendeu acerca das teorias científicas passadas, realizadas segundo uma nova perspectiva historiográfica, que procura compreender uma teoria a partir do contexto de sua época, e não do ponto de vista da ciência de hoje, Kuhn se deu conta de que a concepção de ciência tradicional não se ajustava ao modo pelo qual a ciência real nasce e se desenvolve ao longo do tempo. Essa percepção da inadequação histórica das idéias usuais sobre a natureza da ciência o conduziu, finalmente, à filosofia da ciência. Seus estudos nessa área apareceram publicados de modo mais amplo em seu livro de 1962, A Estrutura das Revoluções Científicas. Esse trabalho viria a exercer uma influência decisiva nos rumos da filosofia da ciência. Embora em uma linguagem aparentemente acessível, Kuhn avança nele teses bastante sofisticadas sobre o conhecimento científico e o conhecimento em geral, que receberam críticas filosóficas diversas ao longo dos anos. Naturalmente, este não é o lugar para adentrarmos essas discussões. Limitar-nos-emos a expor simplificadamente alguns dos pontos destacados por Kuhn e que aglutinaram as atenções dos filósofos da ciência nas décadas subseqüentes à publicação do livro.
Foi publicado primeiramente como monografia na Enciclopédia Internacional da Ciência Unificada (International Encyclopedia of Unified Science), e logo como livro pela editora da Universidade de Chicago no ano de 1962. Em 1969, Kuhn agregou um apêndice de modo a responder às críticas que havia recebido por conta da primeira edição.
A espinha dorsal da concepção kuhniana de ciência consiste na tese de que o desenvolvimento típico de uma disciplina científica se dá ao longo da seguinte estrutura aberta:

Kuhn declara que a gênese das idéias do livro ocorreu em 1947, quando lhe foi encomendado ministrar uma curso de ciência para estudantes de Humanidades, enfocando-se em casos de estudos históricos. Mais tarde, declararia que ate o momento nunca havia lido nenhum documento antigo sobre temas científicos. A física de [[Aristóteles]] era notavelmente diferente da obra de [[Newton]] no que concerne aos conceitos de matéria e movimento -- chegando a conclusão de que os conceitos de Aristóteles não eram "mais limitados" ou "piores" que os de Newton, apenas diferentes.
fase pré-paradigmática ® ciência normal ® crise ® revolução ®

nova ciência normal ® nova crise ® nova revolução ® ...
== Sinopse ==
=== Enfoque ===
Daremos agora uma explicação simplificada das noções envolvidas nessa cadeia evolutiva de uma ciência.
Kuhn adota um enfoque de [[História da Ciência]] e da [[Filosofia da ciência]] centrado em questões conceituais relacionadas aos tipos de idéias que são concebíveis em determinado momento, aos tipos de estratégias e opções intelectuais disponíveis às pessoas durante certo período, assim como a importância de não atribuir [[modelos de pensamento]] modernos a autores históricos. A partir desta posição, argumenta que a evolução da teoria científica não provém da mera acumulação de "feitos", senão que de um grupo de circunstâncias e possibilidades intelectuais sujeitas a mudança.
A fase pré-paradigmática representa, por assim dizer, a pré-história de uma ciência, aquele período no qual reina uma ampla divergência entre os pesquisadores, ou grupos de pesquisadores, sobre quais fenômenos dever ser estudados, e como o devem ser, sobre quais devem ser explicados, e segundo quais princípios teóricos, sobre como os princípios teóricos se inter-relacionam, sobre as regras, métodos e valores que devem direcionar a busca, descrição, classificação e explicação de novos fenômenos, ou o desenvolvimento das teorias, sobre quais técnicas e instrumentos podem ser utilizados, e quais devem ser utilizados, etc. Enquanto predomina um tal estado de coisas, a disciplina ainda não alcançou o estatuto de científica, ou seja, não constitui uma ciência genuína.

Uma disciplina se torna uma ciência quando adquire um paradigma, encerrando-se a fase pré-paradigmática e iniciando-se uma fase de ciência normal. Este é o critério de demarcação proposto por Kuhn para substituir os critérios indutivista e falseacionista. O termo ‘paradigma’ tem uma acepção bastante elástica no texto original de Kuhn, e não podemos aqui adentrar as sutilezas de seu significado. Em seu sentido usual, pré-kuhniano, o termo significa ‘exemplo’, ‘modelo’. Assim, amo, amas, ama, amamos, amais, amam é um paradigma da conjugação do indicativo presente dos verbos regulares da Língua Portuguesa terminados em ‘ar’.
=== Exemplos históricos ===
Kuhn percebeu que a transição para a maturidade, para a fase científica, de uma disciplina envolve o reconhecimento, por parte dos pesquisadores, de uma realização científica exemplar, que defina de maneira mais ou menos clara os principais pontos de divergência da fase pré-paradigmática. A mecânica de Aristóteles, a óptica de Newton, a química de Boyle, a teoria da eletricidade de Franklin estão entre os exemplos dados por Kuhn de paradigmas que fizeram algumas disciplinas adentrar a fase científica.
Kuhn ilustra suas idéias utilizando exemplos extraídos da história da ciência.
É difícil explicitar, especialmente em poucas palavras, os elementos que entram na formação de um paradigma. Kuhn sustenta mesmo que essa explicitação nunca pode ser completa. A razão disso é que o conhecimento de um paradigma é, em parte, tácito, adquirido pela exposição direta ao modo de fazer ciência determinado pelo paradigma. Assim, por exemplo, é somente fazendo óptica à maneira de Newton que se pode conhecer completamente o paradigma óptico newtoniano, ou fazendo eletromagnetismo à maneira de Maxwell que se pode conhecer completamente o paradigma eletromagnético.

No entanto, podemos, a título de balizamento, considerar como partes integrantes de um paradigma: uma ontologia, que indique o tipo de coisa fundamental que constitui a realidade; princípios teóricos fundamentais, que especifiquem as leis gerais que regem o comportamento dessas coisas; princípios teóricos auxiliares, que estabeleçam sua conexão com os fenômenos e as ligações com as teorias de domínios conexos, regras metodológicas, padrões e valores que direcionem a articulação futura do paradigma; exemplos concretos de aplicação da teoria; etc.
Assim, em um momento particular da [[história da Química]], alguns cientistas começam a explorar o conceito de [[átomo]]. Muitas substâncias, ao serem aquecidas, apresentam a tendência de separar-se nos elementos que as compõem. Tempos atrás, uma [[mistura]] de [[água]] e [[álcool]] seria classificada como um [[composto químico]]. Na atualidade considera-se como uma mistura, porém não haveria razão para suspeitar que não fora um composto. A água e o álcool não se separam espontaneamente. porém podem ser separados por meio de aquecimento. A água e o álcool podem se combinar em qualquer proporção.
Um paradigma fornece, pois, os fundamentos sobre os quais a comunidade científica desenvolve suas atividades. Um paradigma representa como que um “mapa” a ser usado pelos cientistas na exploração da Natureza. As pesquisas firmemente assentadas nas teorias, métodos e exemplos de um paradigma são chamadas por Kuhn de ciência normal. Essas pesquisas visam, principalmente, a extensão do conhecimento dos fatos que o paradigma identifica como particularmente significativos, bem como o aperfeiçoamento do ajuste da teoria aos fatos pela articulação ulterior da teoria e pela observação mais precisa dos fenômenos.

Um ponto importante destacado por Kuhn é que enquanto o “mapa” paradigmático estiver se mostrando frutífero, e não surgirem embaraços sérios no ajuste empírico da teoria, o cientista deve persistir tenazmente no seu compromisso com o paradigma. Embora a ciência normal seja uma atividade altamente direcionada, e em um certo sentido seletiva, essa restrição é essencial ao desenvolvimento da ciência. É somente centrando sua atenção em uma gama selecionada de fenômenos e princípios teóricos explicativos que o cientista conseguirá ir fundo no estudo da Natureza. Nenhuma investigação de fenômenos poderá ser levada a cabo com sucesso na ausência de um corpo de princípios teóricos e metodológicos que permitam seleção, avaliação e crítica do que se observa. Aqui se nota um dos principais enganos da concepção clássica de ciência, que imaginava ser possível fazer observações neutras. Nas concepções contemporâneas, reconhece-se que fatos e teorias estão em constante relação de interdependência, como que em “simbiose”, os primeiros sustentando as últimas e estas contribuindo para a sua seleção, classificação, concatenação, predição e explicação. De posse de um corpo de princípios teóricos e regras metodológicas, o cientista não precisa a cada momento reconstruir os fundamentos de seu campo, começando de princípios básicos e justificando o significado e uso de cada conceito introduzido, assim como a relevância de cada fenômeno observado.
Um químico que favorecesse a [[teoria atomista]] consideraria que todos os compostos cujos elementos se combinam em proporções fixas apresentariam um comportamento normal, e toda exceção seria considerada uma anomalia que poderia ser explicada posteriormente (no futuro).
Kuhn entende a ciência normal como uma atividade de resolução de “quebra-cabeças” (puzzles), já que, como eles, ela se desenvolve segundo regras relativamente bem definidas. Só que na ciência os quebra-cabeças nos são apresentados pela Natureza. Ao longo da exploração de um paradigma pode ocorrer que alguns desses quebra-cabeças se mostrem de difícil solução. O dever do cientista é insistir no emprego das regras e princípios paradigmáticos fundamentais o quanto possa. Utilizando a analogia, não vale, por exemplo, cortar um canto de uma peça do quebra-cabeça para que se encaixe em uma determinada posição. Mas no caso da ciência esse apego ao paradigma, que é essencial, como indicamos acima, não pode ser levado ao extremo. Quando quebra-cabeças sem solução a que Kuhn denomina anomalias se multiplicam, resistem por longos períodos aos melhores esforços dos melhores cientistas, e incidem sobre áreas vitais da teoria paradigmática, chegou o tempo de considerar a substituição do próprio paradigma. Nestas situações de crise, membros mais ousados e criativos da comunidade científica propõem alternativas de paradigmas. Perdida a confiança no paradigma vigente, tais alternativas começam a ser levadas a sério por um número crescente de cientistas. Instala-se um período de discussões e divergências sobre os fundamentos da ciência que lembra um pouco o que ocorreu na fase pré-paradigmática. A diferença básica é que mesmo durante a crise o paradigma até então adotado não é abandonado, enquanto não surgir um outro que se revele superior a ele em praticamente todos os aspectos.

Quando um novo paradigma vem a substituir o antigo, ocorre aquilo que Kuhn chama de revolução científica. Grande parte das teses filosóficas sofisticadas desse autor que se tornaram alvo de polêmicas entre os especialistas ligam-se ao que ele assevera acerca das revoluções científicas. Conforme já alertamos, não constitui propósito destas notas adentrar esse debate.
Porém, por outro lado, se um químico acreditasse que as teorias atomistas da [[matéria]] são falsas, todos os compostos cujos elementos se combinassem em proporções fixas seriam considerados anomalias que poderiam ser explicadas em algum momento posterior (no futuro), e todos os compostos cujos elementos poderiam ser combinados em qualquer proporção apresentariam o comportamento normal para um composto.

Hoje em dia o consenso favorece o ponto de vista do atomismo. Porém, se nos ativéssemos a pensar o problema utilizando somente o conhecimento disponível neste momento, ambas seriam defensáveis (ver conceito de [[composto químico]]).

=== A Revolução de Copérnico ===
Acaso o exemplo mais famoso de revolução no pensamento científico é
[[De Revolutionibus Orbium Coelestium]] de [[Copérnico]]. Na escola [[Ptolomeu|Ptolomaica]] se utilizavam os ciclos e epiciclos (junto com alguns conceitos adicionais) para construir um modelo explicativo dos movimentos dos planetas em um universo cujo centro era uma Terra imóvel. Dado o conhecimento da época, era o enfoque mais plausível. A medida que as observações astronômicas se fizeram mais precisas, a complexidade dos mecanismos cíclicos e epicíclicos ptolomaicos tiveram de incrementar-se para fazer coincidir seus resultados (predições) com os das posições observadas para cada planeta. [[Copérnico]] propôs um sistema que tinha o Sol como centro, ao redor do qual orbitavam os planetas, um dos quais era a Terra. Seus contemporâneos rechaçaram sua [[cosmologia]], e com pleno direito, segundo Kuhn, dado que a cosmologia de Copérnico carecia de credibilidade.

Kuhn ilustra como a [[mudança de paradigma]] só foi possível quando [[Galileu Galilei]] introduziu suas novas idéias para o movimento. Intuitivamente sabemos que quando um objeto é posto em movimento, eventualmente se detém. [[Aristóteles]] sustentava que isto se devia a uma propriedade da Natureza: para que o movimento se mantenha, algo deve continuar pondo o objeto em movimento (deveria haver algo que "empurrasse" o objeto enquanto se movesse, de modo a que não se detivesse).
Para o conhecimento disponível na época, era a hipótese mais sensata e razoável.

Galilei propôs uma alternativa radical para explicar o fato de que o movimento se detinha: suponhamos, dizia, que os objetos móveis eventualmente se detivessem porque estavam sujeitos a determinada [[fricção]]. Galilei carecia de equipamento para confirmar objetivamente sua conjectura, porém sugeriu que sem a fricção que freasse o objeto móvel, sua tendência inerente seria a de manter a mesma velocidade sem necessidade de aplicar-lhe nenhuma força adicional.

O enfoque ptolomaico, que utilizava os ciclos e epiciclos começou a apresentam problemas: o constante crescimento na complexidade que se requeria para dar conta dos fenômenos observados parecia não ter fim.

[[Johannes Kepler]] foi o primeiro a abandonar o paradigma ptolomaico e suas ferramentas conceituais. Começou a explorar a possibilidade de que [[Marte (planeta)|Marte]] tivesse uma órbita elíptica ao invés de uma circular. Se assim fosse, a velocidade angular não poderia mais ser constante. Resultou porém ser muito difícil encontrar uma fórmula matemática que descrevesse a forma em que se modificava a velocidade angular. Depois de anos de incessantes e infrutíferos cálculos, Kepler encontrou aquela que hoje conhecemos como a segunda das [[leis de Kepler]].

A conjectura de Galilei era simplesmente isto, uma conjectura. Também assim foi a cosmologia de Kepler. Porém cada uma delas aumentou a credibilidade da outra, e juntas mudaram a percepção da comunidade científica. Mais adiante, [[Isaac Newton|Newton]] demonstrou que as três de leis de Kepler podiam ser derivadas de uma única teoria do movimento e do movimento planetário. Newton unificou e solidificou a mudança de paradigma iniciada por Galileu e Kepler.

=== Coerência ===
Um dos objetivos da ciência é encontrar modelos que deem conta da maior quantidade de observações dentro de um marco coerente. A reformulação da natureza do movimento levada a cabo por Galilei, junto a cosmologia de Kepler, representam um marco coerente capaz de rivalizar com o Aristotélico/Ptolomaico.

Uma vez que ocorre a mudança de paradigma, é necessário reescrever os livros-texto. A história da ciência é habitualmente reescrita e apresentada como a sorte de um processo que inevitavelmente conduz ao marco conceitual estabelecido em um momento. Existe a crença implícita de que todo fenômeno de momento carente de explicação, poderá ser explicado no futuro dentro do marco conceitual estabelecido. Kuhn diz que os cientistas passam a maior parte de sua carreira (senão toda ela) resolvendo "quebra-cabeças". E o fazem com grande tenacidade, dado que os êxitos do marco conceitual estabelecido tendem a gerar uma grande confiança no enfoque adotado, garantindo que existe um solução para o "quebra-cabeça", por mais difícil que seja. Este processo é chamado ''[[ciência normal]]''.

Quando um paradigma é exigido até o seu limite, as ''anomalias'' -- quer dizer, a incapacidade de dar conta dos fenômenos observados -- começam a acumular-se. A gravidade destas anomalias é julgada por aqueles que praticam a disciplina em questão. Algumas podem ser desprezadas como erros de observação, enquanto outras podem requerer alguns pequenos ajustes do paradigma atual que as explicaria nesse momento. Porém apesar do número ou gravidade das anomalias que persistam ou se acumulem, os cientistas não perdem sua fé no paradigma enquanto não exista uma alternativa convincente; perder a fé em que todo o problema tem uma solução equivaleria a deixar de ser científico.

Em qualquer comunidade científica há indivíduos que se arriscam mais que a maioria. São os que, considerando que existe de fato uma ''crise'', adotam o que [[Kuhn]] denomina ''ciência revolucionária'', procurando encontrar alternativas às suposições aparentemente óbvias e inquestionáveis nas quais se embasa o paradigma estabelecido. Isto dará lugar a um marco conceitual que rivaliza com este. O novo paradigma proposto pareceria possuir numerosas anomalias, em parte devido a estar ainda incompleto. A maioria da comunidade científica se oporá a qualquer mudança conceitual, e de acordo com Kuhn, fará bem em fazê-lo.

Para que uma comunidade científica alcance seu potencial ela necessita tanto de indivíduos inovadores como de indivíduos conservadores. Existem numerosos exemplos na história da ciência em que a confiança no marco conceitual estabelecido foi posteriormente corroborado. Aqueles cientistas que são excepcionalmente hábeis para reconhecer o potencia de uma teoria, serão os primeiros a preferir o novo paradigma. Esta etapa é seguida geralmente por um período no qual há quem se junte a um ou a outro paradigma. Mais adiante, se o paradigma proposto lograr êxito, unificar-se e solidificar-se, acaba por substituir o anterior, e dizemos que tem lugar uma ''mudança de paradigma''.

[[Categoria:Epistemologia]]

Revisão das 18h17min de 21 de julho de 2013

Apresenta-se aqui uma síntese de alguns dos tópicos importantes do livro de Thomas Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, cuja primeira edição apareceu em 1962. Essa síntese não visa, evidentemente, a substituir a leitura do próprio livro, tendo caráter meramente didático e introdutório.

Kuhn começou sua carreira acadêmica como físico teórico, interessando-se depois por história da ciência. Ao longo das importantes investigações que empreendeu acerca das teorias científicas passadas, realizadas segundo uma nova perspectiva historiográfica, que procura compreender uma teoria a partir do contexto de sua época, e não do ponto de vista da ciência de hoje, Kuhn se deu conta de que a concepção de ciência tradicional não se ajustava ao modo pelo qual a ciência real nasce e se desenvolve ao longo do tempo. Essa percepção da inadequação histórica das idéias usuais sobre a natureza da ciência o conduziu, finalmente, à filosofia da ciência. Seus estudos nessa área apareceram publicados de modo mais amplo em seu livro de 1962, A Estrutura das Revoluções Científicas. Esse trabalho viria a exercer uma influência decisiva nos rumos da filosofia da ciência. Embora em uma linguagem aparentemente acessível, Kuhn avança nele teses bastante sofisticadas sobre o conhecimento científico e o conhecimento em geral, que receberam críticas filosóficas diversas ao longo dos anos. Naturalmente, este não é o lugar para adentrarmos essas discussões. Limitar-nos-emos a expor simplificadamente alguns dos pontos destacados por Kuhn e que aglutinaram as atenções dos filósofos da ciência nas décadas subseqüentes à publicação do livro. A espinha dorsal da concepção kuhniana de ciência consiste na tese de que o desenvolvimento típico de uma disciplina científica se dá ao longo da seguinte estrutura aberta:

fase pré-paradigmática ® ciência normal ® crise ® revolução ® nova ciência normal ® nova crise ® nova revolução ® ...

Daremos agora uma explicação simplificada das noções envolvidas nessa cadeia evolutiva de uma ciência. A fase pré-paradigmática representa, por assim dizer, a pré-história de uma ciência, aquele período no qual reina uma ampla divergência entre os pesquisadores, ou grupos de pesquisadores, sobre quais fenômenos dever ser estudados, e como o devem ser, sobre quais devem ser explicados, e segundo quais princípios teóricos, sobre como os princípios teóricos se inter-relacionam, sobre as regras, métodos e valores que devem direcionar a busca, descrição, classificação e explicação de novos fenômenos, ou o desenvolvimento das teorias, sobre quais técnicas e instrumentos podem ser utilizados, e quais devem ser utilizados, etc. Enquanto predomina um tal estado de coisas, a disciplina ainda não alcançou o estatuto de científica, ou seja, não constitui uma ciência genuína. Uma disciplina se torna uma ciência quando adquire um paradigma, encerrando-se a fase pré-paradigmática e iniciando-se uma fase de ciência normal. Este é o critério de demarcação proposto por Kuhn para substituir os critérios indutivista e falseacionista. O termo ‘paradigma’ tem uma acepção bastante elástica no texto original de Kuhn, e não podemos aqui adentrar as sutilezas de seu significado. Em seu sentido usual, pré-kuhniano, o termo significa ‘exemplo’, ‘modelo’. Assim, amo, amas, ama, amamos, amais, amam é um paradigma da conjugação do indicativo presente dos verbos regulares da Língua Portuguesa terminados em ‘ar’. Kuhn percebeu que a transição para a maturidade, para a fase científica, de uma disciplina envolve o reconhecimento, por parte dos pesquisadores, de uma realização científica exemplar, que defina de maneira mais ou menos clara os principais pontos de divergência da fase pré-paradigmática. A mecânica de Aristóteles, a óptica de Newton, a química de Boyle, a teoria da eletricidade de Franklin estão entre os exemplos dados por Kuhn de paradigmas que fizeram algumas disciplinas adentrar a fase científica. É difícil explicitar, especialmente em poucas palavras, os elementos que entram na formação de um paradigma. Kuhn sustenta mesmo que essa explicitação nunca pode ser completa. A razão disso é que o conhecimento de um paradigma é, em parte, tácito, adquirido pela exposição direta ao modo de fazer ciência determinado pelo paradigma. Assim, por exemplo, é somente fazendo óptica à maneira de Newton que se pode conhecer completamente o paradigma óptico newtoniano, ou fazendo eletromagnetismo à maneira de Maxwell que se pode conhecer completamente o paradigma eletromagnético. No entanto, podemos, a título de balizamento, considerar como partes integrantes de um paradigma: uma ontologia, que indique o tipo de coisa fundamental que constitui a realidade; princípios teóricos fundamentais, que especifiquem as leis gerais que regem o comportamento dessas coisas; princípios teóricos auxiliares, que estabeleçam sua conexão com os fenômenos e as ligações com as teorias de domínios conexos, regras metodológicas, padrões e valores que direcionem a articulação futura do paradigma; exemplos concretos de aplicação da teoria; etc. Um paradigma fornece, pois, os fundamentos sobre os quais a comunidade científica desenvolve suas atividades. Um paradigma representa como que um “mapa” a ser usado pelos cientistas na exploração da Natureza. As pesquisas firmemente assentadas nas teorias, métodos e exemplos de um paradigma são chamadas por Kuhn de ciência normal. Essas pesquisas visam, principalmente, a extensão do conhecimento dos fatos que o paradigma identifica como particularmente significativos, bem como o aperfeiçoamento do ajuste da teoria aos fatos pela articulação ulterior da teoria e pela observação mais precisa dos fenômenos. Um ponto importante destacado por Kuhn é que enquanto o “mapa” paradigmático estiver se mostrando frutífero, e não surgirem embaraços sérios no ajuste empírico da teoria, o cientista deve persistir tenazmente no seu compromisso com o paradigma. Embora a ciência normal seja uma atividade altamente direcionada, e em um certo sentido seletiva, essa restrição é essencial ao desenvolvimento da ciência. É somente centrando sua atenção em uma gama selecionada de fenômenos e princípios teóricos explicativos que o cientista conseguirá ir fundo no estudo da Natureza. Nenhuma investigação de fenômenos poderá ser levada a cabo com sucesso na ausência de um corpo de princípios teóricos e metodológicos que permitam seleção, avaliação e crítica do que se observa. Aqui se nota um dos principais enganos da concepção clássica de ciência, que imaginava ser possível fazer observações neutras. Nas concepções contemporâneas, reconhece-se que fatos e teorias estão em constante relação de interdependência, como que em “simbiose”, os primeiros sustentando as últimas e estas contribuindo para a sua seleção, classificação, concatenação, predição e explicação. De posse de um corpo de princípios teóricos e regras metodológicas, o cientista não precisa a cada momento reconstruir os fundamentos de seu campo, começando de princípios básicos e justificando o significado e uso de cada conceito introduzido, assim como a relevância de cada fenômeno observado. Kuhn entende a ciência normal como uma atividade de resolução de “quebra-cabeças” (puzzles), já que, como eles, ela se desenvolve segundo regras relativamente bem definidas. Só que na ciência os quebra-cabeças nos são apresentados pela Natureza. Ao longo da exploração de um paradigma pode ocorrer que alguns desses quebra-cabeças se mostrem de difícil solução. O dever do cientista é insistir no emprego das regras e princípios paradigmáticos fundamentais o quanto possa. Utilizando a analogia, não vale, por exemplo, cortar um canto de uma peça do quebra-cabeça para que se encaixe em uma determinada posição. Mas no caso da ciência esse apego ao paradigma, que é essencial, como indicamos acima, não pode ser levado ao extremo. Quando quebra-cabeças sem solução a que Kuhn denomina anomalias se multiplicam, resistem por longos períodos aos melhores esforços dos melhores cientistas, e incidem sobre áreas vitais da teoria paradigmática, chegou o tempo de considerar a substituição do próprio paradigma. Nestas situações de crise, membros mais ousados e criativos da comunidade científica propõem alternativas de paradigmas. Perdida a confiança no paradigma vigente, tais alternativas começam a ser levadas a sério por um número crescente de cientistas. Instala-se um período de discussões e divergências sobre os fundamentos da ciência que lembra um pouco o que ocorreu na fase pré-paradigmática. A diferença básica é que mesmo durante a crise o paradigma até então adotado não é abandonado, enquanto não surgir um outro que se revele superior a ele em praticamente todos os aspectos. Quando um novo paradigma vem a substituir o antigo, ocorre aquilo que Kuhn chama de revolução científica. Grande parte das teses filosóficas sofisticadas desse autor que se tornaram alvo de polêmicas entre os especialistas ligam-se ao que ele assevera acerca das revoluções científicas. Conforme já alertamos, não constitui propósito destas notas adentrar esse debate.