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Ascensão de Cristo (Fernão Gomes)

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Ascensão de Cristo
Ascensão de Cristo (Fernão Gomes)
Autor Fernão Gomes
Data c. 1590
Técnica pintura a óleo sobre madeira
Dimensões 335 cm × 123 cm 
Localização Museu de Arte Sacra do Funchal, Funchal

Ascensão de Cristo é uma pintura a óleo sobre madeira pintada cerca de 1590 pelo pintor português de origem castelhana Fernão Gomes, obra que se destinou inicialmente a decorar uma capela da Sé do Funchal e se encontra actualmente no Museu de Arte Sacra do Funchal.[1]

A Ascensão de Cristo, pintura que representa o episódio bíblico da Ascensão de Jesus ao céu depois da ressurreição, é um excelente exemplo da monumentalidade da obra Fernão Gomes que foi um dos mais eficazes pintores do Maneirismo português no contexto da Contrarreforma. É também um exemplo da criação de imagens de grande impacto mas onde está ausente profundidade.[1]

De origem espanhola, mas com aprendizagem flamenga, Fernão Gomes fixou-se em Lisboa antes da tomada da coroa portuguesa por Filipe II de Espanha em 1580, obtendo em 1594 o cargo de pintor régio e daí a encomenda da obra. Em 1583 recolheram-se esmolas na Sé do Funchal para a execução desta pintura,[1] que provém de um altar, hoje desaparecido, do transepto da Sé do Funchal, pertencente à Confraria da Ascensão, que havia sido fundada em 1572.[2]

A paleta geral da obra revela os valores do maneirismo em Portugal, pelos tons claros e intensos, de contrastes profundos.[2]

Efectivamente a paleta utilizada neste quadro baseia-se em tonalidades claras, recorrendo mais ao contraste de cor que ao de claro-escuro, ainda que a figura de Cristo funcione como foco irradiante pelo branco da túnica e pelo halo que o envolve. Nas vestes dos Apóstolos destacam-se, pela intensidade e claridade, os amarelos e rosas, sempre em contraponto com os mais sombrios azuis e verdes. Neste aspecto difere dos painéis do mesmo autor do Mosteiro dos Jerónimos, mas esta é uma cena de exterior e com carácter de teofania, que Fernão Gomes trata usualmente com uma iluminação mais difusa do que nos interiores, sendo estes mais propícios ao contraste entre penumbras densas e pontos de claridade intensa próprio do maneirismo.[3]

A composição segue nas linhas gerais uma gravura de Cornelis Cort, de 1537, elaborada a partir da Transfiguração de Rafael,[4] embora não siga de perto este modelo na concepção particular das figuras.[3]

Para José A. Seabra Carvalho é possível que Fernão Gomes tenha incluído na Ascensão um auto-retrato na figura do apóstolo mais à direita, semelhante ao que está no Pentecostes do Retábulo da Sé de Portalegre: «o mesmo rosto grave e arredondado de um homem já meio calvo é o único que dirige o seu olhar para fora da representação, encontrando-se deliberadamente com o nosso. A sua mão direita aponta para o centro superior da composição, onde se assiste ao insondável prodígio da manifestação divina. A presença deste olhar e de tal gesto é intencionalmente persuasiva, solicita-nos uma partilha, pretende implicar-nos na contemplação atenta dos mistérios sagrados que as pinturas narram, afirma subtilmente o seu privilégio de participar nos espaços pictóricos em que se distribuem a Virgem e os Apóstolos. A sua fisionomia tem, além disso, traços singulares de individuação, contrastando com os escorços angulosos e algo estereotipados dos outros personagens».[1][2][5]

A presença de um admonitor ("avisador") generaliza-se ao longo do século XVI sendo muitas vezes o próprio pintor a assumir esse papel, ilustrativo do seu crescente protagonismo de dar a ver uma invenção ou uma ideia.[3]

A datação da Ascensão de Cristo não é consensual entre os autores que a estudaram, o que comprova a dificuldade de ordenar cronologicamente a obra de Fernão Gomes derivada quer pela não documentação de algumas obras, quer pela sua tendência para repetir um reduzido elenco de formas. Dagoberto Markl, baseado em factores estilísticos, apontava a pintura do painel para 1573, após o regresso do pintor da Holanda, o que combina com a data da gravura sobre o mesmo tema.[3]

Vítor Serrão aponta para um execução mais tardia do painel, em cerca de 1590, baseando-se nas obras feitas então feitas no altar da Sé do Funchal «com retavolo que ao presente se está fazendo em Lixboa».[6]

Markl não aceitava esta hipótese, baseando-se na comparação com o desenho datado de 1599: «Há uma diferente noção de espaço, bem alargada e monumental no desenho e acanhada, arcaizante no painel do Funchal. Não é possível que entre este e as pinturas dos Jerónimos medeiem quatro anos, e nove em relação ao desenho».[4]

Outro elemento importante para Vítor Serrão na datação é a semelhança que José A. Seabra Carvalho nota entre o auto-retrato da Ascensão de Cristo e o do Pentecostes da Sé de Portalegre (1592-95), não podendo haver uma diferença de cerca de vinte anos entre estes dois painéis. Fernão Gomes, nascido em 1548, não teria o aspecto envelhecido da pintura já em 1573. Sem encerrar definitivamente a questão, este elemento reforça a posição de Vítor Serrão de situar a obra em cerca de 1590.[3]

Dagoberto Markl considera a Ascensão estilisticamente de inferior qualidade em relação aos painéis Nascimento da Virgem e Anunciação do Mosteiro dos Jerónimos, e sublinha a diferença no tratamento cromático, muito mais virado para tonalidades claras no caso do painel da Ascensão.[7]

Dagoberto Markl reconhece, contudo, afinidades com os painéis dos Jerónimos, tanto no «espaço acanhado da composição» como em proximidades de desenho, e ainda afinidades com um desenho do Museu Nacional de Arte Antiga: «Os anjos, que em menor número, povoam a parte superior do painel do Funchal, apresentam inegáveis afinidades nos rostos, nas anatomias e nas asas, com a Anunciação dos Jerónimos. Nas Virgens destes dois painéis reconhecem-se acentuadas semelhanças na maneira de desenhar o nariz e a boca, que encontramos igualmente na mulher aos pés da cama de Santa Ana, no Nascimento da Virgem, de Belém, e que se repetem no desenho assinado e datado de 1599, uma Ascensão pertencente ao Museu Nacional de Arte Antiga, em especial nos rostos da Virgem e de Maria Madalena. Também se aproximam os discípulos de Jesus em ambas as Ascensões, a do Funchal e o desenho do Museu, apesar das diferenças existentes entre uma pintura — onde intervieram possíveis colaboradores — e um desenho da exclusiva responsabilidade do mestre». Pesam mais as semelhanças que as diferenças e, numa apreciação global, Markl refere a excelência da Ascensão.[7]

Para Mª Isabel Gomes Pestana, o argumento do espaço acanhado referido Dagoberto Makl não se afigura como decisivo, uma vez que este autor o invoca de modo contraditório, um vez para salientar a afinidade com os painéis dos Jerónimos, e depois, na comparação com o Desenho sobre o mesmo tema, elogiar a abertura e monumentalidade de um em detrimento da limitação do outro. É difícil estabelecer uma comparação deste tipo entre um desenho e uma pintura pois o tratamento cromático introduz uma outra ordem de relações espaciais.[3]

Mª Isabel Gomes Pestana assinala ainda, em relação à sua composição simplificada, que a Ascensão de Cristo tem paralelismo num quadro do mesmo tema de Diogo Teixeira, de cerca de 1595-97, pertencente ao retábulo-mor do Mosteiro de Arouca, que optou também por colocar Cristo sobre uma pequena elevação de terreno arredondada, evocando até o globo terrestre, à volta do qual se posicionam os Apóstolos.[3]

A Ascensão do Funchal é apontada ainda por José A. Seabra de Carvalho como obra precursora do desenho existente do Museu Nacional de Arte Antiga: «Fernão Gomes já havia ensaiado uma composição congénere, embora mais ingenuamente rafaellesca, na Transfiguração que pintou para a Sé do Funchal».[8]

  1. a b c d Nota de apresentação da obra na Exposição "As ilhas do Ouro Branco Encomenda Artística na Madeira séculos XV-XVI" do Museu Nacional de Arte Antiga, de 16-11-2017 a 18-03-2018.
  2. a b c Nota sobre a obra na página do Museu de Arte Sacra do Funchal
  3. a b c d e f g Mª Isabel Santa Clara Gomes Pestana, Das Coisas visíveis às invisíveis, contributos para o estudo da Pintura Maneirista na Ilha da Madeira (1540-1620), Vol. I e II, Tese de Doutoramento em História da Arte da Época Moderna, Universidade da Madeira, 2004, [1]
  4. a b Dagoberto Markl, «Fernão Gomes no Mosteiro dos Jerónimos», in Jerónimos. Quatro séculos de Pintura…, vol II, citado por Mª Isabel Gomes Pestana.
  5. José Alberto Seabra Carvalho, in A Pintura Maneirista. A Arte no Tempo de Camões, pag. 478, citado por Mª Isabel Gomes Pestana, obra citada.
  6. Vitor Serrão, A pintura Proto-Barroca em Portugal (1612-1567), Tese de Doutoramento, Universidade de Coimbra, vol. II, p. 864. E também Vitor Serrão e Vasco Graça Moura, Fernão Gomes e o retrato de Camões, Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses/Fundação Oriente/Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1989, p. 22.
  7. a b Dagoberto Markl, Fernão Gomes, um pintor do tempo de Camões, Lisboa, 1973, pag. 43-46, 66, citado por Isabel Clara, obra citada, pag. 224.
  8. Catálogo da Exposição do Grande Jubileu do ano 2000. Cristo Fonte de Esperança, Porto, 2000, p.150.