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Teoria Pura do Direito: diferenças entre revisões

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== Pureza metodológica e objetivismo científico ==
== Pureza metodológica e objetivismo científico ==
Kelsen é Rei na terra dos plebeus

A Teoria Pura do Direito de Kelsen pretendia elevar o Direito à altura de uma ciência genuína, aproximando tanto quanto possível os seus resultados dos ideais de toda ciência: objetividade e exatidão.
A Teoria Pura do Direito de Kelsen pretendia elevar o Direito à altura de uma ciência genuína, aproximando tanto quanto possível os seus resultados dos ideais de toda ciência: objetividade e exatidão.



Revisão das 21h38min de 13 de abril de 2012

Teoria Pura do Direito (em alemão Reine Rechtslehre) é a obra mais famosa de Hans Kelsen, filósofo e jurista austríaco, naturalizado estadunidense. Escrito em 1934, o livro se insere nos cânones da escola juspositivista.

Nessa obra, Kelsen busca desenvolver uma teoria científica do direito, definindo a ciência jurídica como campo de estudo cujo objeto são as normas jurídicas positivas. O autor sustenta a necessidade de renunciar ao até então enraizado costume de defender ideais políticos, de caráter subjetivo, em nome de uma ciência do Direito supostamente objetiva.


Pureza metodológica e objetivismo científico

Kelsen é Rei na terra dos plebeus A Teoria Pura do Direito de Kelsen pretendia elevar o Direito à altura de uma ciência genuína, aproximando tanto quanto possível os seus resultados dos ideais de toda ciência: objetividade e exatidão.

Em sua busca por uma descrição neutra e objetiva do fenômeno jurídico, o autor procura desvencilhar o Direito de todos os elementos que lhe são estranhos, pertencentes a outras ciências como a psicologia, a sociologia, a ética e a teoria política. Sua pureza derivaria, portanto, de seu postulado metodológico fundamental, qual seja, não fazer quaisquer considerações que não sejam estritamente jurídicas, nem tomar nada como objeto de estudo senão as normas jurídicas. Kelsen pretendia construir uma ciência jurídica objetiva e clara, que se abstivesse de julgar segundo quaisquer critérios de justiça as normas que buscava descrever e explicar.

É importante ressaltar que Kelsen não busca criar uma "Teoria do Direito Puro", ou seja, ele não nega a ligação existente entre o Direito, a política, a sociologia e outros ramos das ciências sociais, nem tenta eliminar essas relações. Ele simplesmente afirma que a ciência jurídica é ciência autônoma, que não se confunde com política do Direito e não deve, portanto, se contaminar por ideologias políticas: "De um modo inteiramente acrítico, a jurisprudência tem-se confundido com a psicologia e a sociologia, com a ética e a teoria política. Esta confusão pode porventura explicar-se pelo facto de estas ciências se referirem a objectos que indubitavelmente têm uma estreita conexão com o Direito. Quando a Teoria Pura empreende delimitar o conhecimento do Direito em face destas disciplinas, fá-lo, não por ignorar ou, muito menos, por negar essa conexão, mas porque intenta evitar um sincretismo metodológico que obscurece a essência da ciência jurídica e dilui os limites que lhe são impostos pela natureza do seu objecto"[1].


Objeto de estudo

A teoria kelseniana pressupõe uma identidade entre o Direito e as normas jurídicas. Assim, o objeto de estudo da ciência jurídica seriam as normas jurídicas. As condutas humanas, por sua vez, só seriam objeto de estudo desta ciência na medida em que constituíssem o conteúdo das normas jurídicas.

Na Teoria Pura do Direito, o estudo do Direito divide-se, basicamente, em dois grandes ramos:

  • Teoria Estática do Direito: concentra-se sobre as normas em vigor, reguladoras da conduta humana, e estuda a pessoa como sujeito jurídico, a capacidade jurídica, a relação jurídica, o dever, a sanção, a responsabilidade, os direitos subjetivos e as competências; e
  • Teoria Dinâmica do Direito: concentra-se sobre as normas em vigor que regulamentam o processo jurídico em que o Direito é produzido e aplicado e estuda o fundamento de validade da ordem normativa e a estrutura escalonada da ordem jurídica(as relações hierárquicas entre as normas).

A Teoria Pura do Direito chegou a algumas conclusões amplamente aceitas na atualidade, tais como a identidade entre Estado e Direito, a redução da pessoa física à pessoa jurídica, a redução do direito subjetivo a direito objetivo e da autorização ao dever e a negação do caráter de Direito Internacional ao chamado Direito Internacional Privado.


Separação entre ser e dever ser

A base da Teoria Pura do Direito é a distinção fundamental elaborada por Kelsen entre o que ele denomina "ser" e "dever ser".

O âmbito do ser seria o mundo natural, explicado pelas ciências naturais com base nas premissas de verdadeiro/falso. Este domínio obedeceria ao princípio da causalidade, segundo o qual uma causa conduz a um efeito (quando A é, B é), sendo que o número de elos de uma série causal seria ilimitado. As leis naturais predizem eventos futuros e podem ser confirmadas ou não. Em não sendo aplicáveis, são falsas e devem ser substituídas.

Já o âmbito do dever ser diria respeito às normas, enquanto atos de vontade que se dirigem intencionalmente a uma conduta considerada obrigatória tanto pelos indivíduos que põe as regras quanto do ponto de vista de um terceiro interessado, e que vinculam seus destinatários. O dever ser insere-se no domínio das ciências sociais e se explica não com base nas premissas de verdadeiro/falso, mas de válido/inválido. Este domínio obedeceria ao princípio da imputação (quando A é, B deve ser), sendo que o número de elos de uma série imputativa é necessariamente limitado. As leis jurídicas prescrevem, autorizam ou permitem condutas e admitem um certo grau de não aplicação, ou ineficácia, que não conduz à sua anulação.

Segundo a Teoria Pura, a ciência jurídica não pretende com as proposições jurídicas por ela formuladas mostrar a conexão causal, mas a conexão de imputação entre os elementos de seu objeto.

A conduta humana (ser) só adquire uma significação jurídica quando coincide com uma previsão normativa válida (dever ser). A conduta humana pode se conformar ou contrariar uma norma e, dessa forma, pode ser avaliada como positiva ou negativa. Já as normas são estabelecidas por atos de vontade humana e, por este motivo, os valores através delas constituídos são arbitrários e relativos. Com efeito, outros atos de vontade humana poderiam produzir outras normas, diversas das primeiras e, assim, constituir outros valores. A separação entre "ser" e "dever ser" permite, assim, que a teoria jurídica desenvolvida por Kelsen independa do conteúdo material das normas jurídicas.

A separação entre "ser" e "dever ser" não é, todavia, absoluta. Embora Kelsen chame atenção para o fato de que a validade de uma norma, o dever de se conduzir da forma como a norma determina, não pode ser confundida com a eficácia da norma, ou seja, com o fato de que as pessoas efetivamente assim se conduzem, admite que uma ordem coercitiva só pode ser considerada válida quando seja globalmente eficaz.

As normas jurídicas gerais criadas pela via legislativa são normas conscientemente postas, ou seja, estatuídas. Já, os atos que constituem o fato legislação são atos produtors de normas, ou também chamados atos instituidores de normas, denotando um sentido subjetivo de dever-ser. Assim, através da Constituição, o sentido subjetivo é alçado a uma significação objetiva, o que transforme o fato legislativo como fato produtor do Direito.

Legislação e costume

Kelsen admite que o escalão imediatamente seguinte ao da Constituição constitui-se pelas normas gerais criadas pela legislação ou pelo costume. Dessa forma, a Constituição tamb´me pode instituir como fato produtor de Direito um determinado fato consuetudinário. Para o autor, o fato consuetudinário caracteriza-se pela circunstância de os indivíduos pertencentes à comunidade jurídica conduzirem-se por forma sempre idêntica sob certas e determinadas circunstâncias, da consuta ser repetida por um período longo, resultando no surgimento do costume, uma vontade coletiva de que valem os indivíduos para se conduzirem.

O sentido subjetivo do fato que constitui o costume é um dever-ser: o sentido de que nos devemos conduzir de acordo com o costume. No entanto, o sentido subjetivo do fato consuetudinário somente pode ser pensado como norma jurídica válida se for inserido na Constituição como fato produtor de normas jurídicas.

O Direito Consuetudinário apenas pode ser aplicado pelo órgãos aplicadores do Direito quando estes órgãos sejam considerados competentes para tal. No entanto, se o costume qualifica não é instituído como fato produtor de Direito em seu sentido positivo, é preciso pressupor que a instituição do costume como fato produtor produtor de Direito já se operou na forma fundamental como Constituição em sentido lógico-jurídico. É necessário pressupor-se uma norma fundamental que institua como fato produtor de Direito não só o fato legislativo como também o fato do costume qualificado.

A Constituição de uma comunidade jurídica pode sugir pela forma consuetudinária, deste modo, o costume é um fato produtor de Direito, mas, esta pressuposição apenas pode ser a norma fundamental, ou seja, a Constituição em sentido lógico-formal. Nesse sentido, o Direito legislado e o Direito consuetudinário revogam-se um ao outro.

Sanção e o direito como ordem social coativa

A Teoria Pura do Direito rejeita que a justiça seja a característica distintiva do direito em relação a outras ordens coercitivas em razão do caráter relativo do juízo de valor segundo o qual uma ordem social pode ser considerada justa ou injusta. Para ela, o fato de o conteúdo de uma ordem coercitiva eficaz ser julgado como injusto não é um fundamento para não considerar como válida essa ordem coercitiva.

Diferentemente, a visão kelseniana acerca do direito elege o conceito de sanção como central para a definição do fenômeno jurídico. Segundo o autor, o direito é uma ordem normativa social, que regula a conduta humana em relação a outras pessoas, e que pode prescrever ou proibir condutas. A conduta oposta àquela normativamente prescrita pressupõe uma sanção, uma punição para o agente que se comporta contrariamente aos interesses da comunidade jurídica.

Como conseqüência de uma situação de fato considerada socialmente prejudicial, as sanções devem ser executadas mesmo contra a vontade da pessoa atingida e, em caso de resistência, mediante o emprego da força física. As sanções são, portanto, socialmente organizadas. Há um monopólio da coação por parte da comunidade jurídica, que a emprega de forma centralizada por meio de seus órgãos (tribunais e autoridades executivas), o que termina por restringir a auto-defesa.

Resta claro que, para Kelsen, é o elemento "coação" no conceito de direito que o distingue de toda e qualquer outra ordem social. Não obstante, Kelsen admite a existência de normas especiais, que não preveem sanções - as normas derrogatórias de outras normas, as normas que conferem competência (poder jurídico a um indivíduo para produzir novas normas) e as normas interpretativas - mas que, de qualquer forma, estão ligadas às normas típicas que prescrevem condutas e preveem sanções. O direito poderia ser, portanto, definido como uma ordem social coativa e o Estado como uma ordem de coação centralizadora e limitada no seu domínio territorial. Se uma ordem de coação é ilimitada no seu domínio territorial, e dentro desse território, é de tal maneira eficaz que exclui toda e qualquer outra ordem de coação, ela pode ser considerada uma ordem jurídica, e a comunidade que ela constitui, um "Estado".

O autor concebe o ordenamento jurídico como um sistema jurídico que regula toda e qualquer conduta humana seja de forma positiva, seja de forma negativa: "uma conduta que não é juridicamente proibida é – neste sentido negativo – juridicamente permitida".[1]


Direito: atividade do Estado

Esta teoria considera o direito como sendo a atividade de produção de normas e coerção do Estado, que se manifesta num sistema de normas meramente formais. Estas normas estariam organizadas segundo uma hierarquia específica. As normas inferiores só poderiam ter valor se estivessem de acordo com as normas superiores ou se forem expressamente reconhecidas por elas como válidas e assim, sucessivamente até chegar a norma mais elevada.

Na Teoria Pura do Direito não se discute a legitimidade e nem a justiça desta norma mais alta. Tampouco considera como objeto de discussão se a autoridade que a elaborou teria legitimidade para isto. Kelsen parte do princípio que se ela existe e consegue se impor é quanto basta.

Segundo este sistema a constituição ou Lei Fundamental, estabeleceria como as leis devem ser feitas e por quem. A lei ditada pelo modo prescrito pela Lei Fundamental ou norma superior máxima determina, por sua vez, o modo pelo qual o judiciário resolveria as questões que lhe fossem submetidas e forneceria o critério para que se pudesse reconhecer uma atividade como própria do Estado - os atos administrativos - e prescreveria que condutas das pessoas seriam permitidas e quais as proibidas.

O Estado se constitui assim em um sistema de normas estruturadas logicamente a partir de uma norma superior, simplesmente imposta e garantida por um sistema eficaz de sanções.

Segundo a Teoria de Kelsen as condutas do cidadão só têm relevância jurídica na medida em que interferem de alguma maneira com este sistema de normas, sejam produzindo atos que se atribuem ao sistema, como legislador, juiz, administrador, etc., seja criando conflitos com outras pessoas, conflitos estes o sistema considera que se deve evitar. Em outras palavras o Estado se identifica como sendo o próprio ordenamento jurídico.

Em termos jurídicos a pessoa não passa de um sujeito de "imputação" de normas. Deste modo como determinadas ações se consideram do Estado, e seriam válidas apenas na medida em que o sistema legal as considera como tais, da mesma forma, certas ações se consideram de um sujeito na medida em que a ordem jurídica determina que deste modo se há de entender. Em última análise é o direito a criar a pessoa, ou melhor, o Estado em última análise é que estaria criando a pessoa.


A "norma fundamental"

Ao ser indagado do porquê da validade da lei de maior hierarquia ou Constituição, Kelsen, na sua Teoria Pura do Direito se vê obrigado a buscar uma resposta sustentando uma hipótese teórica de uma "norma fundamental" (grundnorm), que seria "pressuposta", e que não extrairia sua validade ou legitimidade senão exclusivamente da força e do poder de império do Estado.

Afirma: "o Estado e o direito são um só e mesmo sistema de coação" e deduz a impossibilidade de se legitimar o Estado pelo direito: o Estado é uma ordem jurídica, mas não está submetido a nenhuma ordem superior - isto seria recorrer à doutrina do direito natural - intelectualmente considerado o Estado é só um sistema de normas estudado pela ciência normativa do direito. O Estado se identifica com o direito em Kelsen é apenas um modo de "organizar a força".

Kelsen recusa-se a justificar ou criticar eticamente o direito positivo e o Estado. Para isto alega que se assim agisse estaria fazendo um juízo de valor, o que teria sempre um caráter subjetivo, afirmando : "se os teóricos do direito querem fazer ciência e não política, não devem sair do âmbito do conhecimento objetivo".

Não cabe, no sistema positivista kelseniano, perguntar se existem certos princípios normativos universais que deveriam informar a legislação toda para dar-lhe fundamento jurídico. O "justo" no caso se reduz ao que existe como "fato", como ordem imperativa e coercível.

O sistema positivista não comporta o reconhecimento de uma lei moral objetiva, de uma lei natural e nem de um direito que decorra do respeito à natureza humana como tal e que dê validade ou suporte de legitimidade à norma positiva, e nem indaga da justiça ou injustiça das leis; se a norma está de acordo com a norma superior hierárquica numa cadeia sucessória ou pirâmide ela válida e deve ser aplicada. Qualquer referêncial de fora do "sistema legal válido" é rejeitado. Não se admite na Teoria Pura que a norma ou regra seja criticada tendo-se por referência algum valor ou critério que esteja fora do sistema. Obedecida a norma mais alta o sistema se justifica por si.

Nega-se desta forma à pessoa humana todo direito que não seja concedido pelo Estado e que não seja estabelecido pela norma positiva ditada pela autoridade política. A tarefa legislativa do Estado fica sendo então a de criação dos direitos da pessoa humana, ao invés de reconhecê-los. O legislador cria o direito ao seu talante, de conformidade com as variáveis políticas de cada momento histórico. Tudo se submete ao Estado enquanto este se proclama como única fonte do direito.

Uma vez definido o Estado como fonte última e única do direito, nada pode dizer-lhe o que deve proibir ou permitir, salvo sua própria definição normativa. Se um movimento revolucionário derroga a forma de Estado vigente e impõe uma nova, na medida em esta consegue consolidar-se e reger no tempo, essa seria a definição normativa vigente, o novo direito. A liberdade das pessoas fica à mercê de quem de fato, detenha o poder.


Crítica

A Teoria Pura do Direito revolucionou o estudo do Direito, e seu autor foi considerado o maior jurista do século XX. Não obstante, sua teoria é alvo de severas críticas que apontam, em geral, para seu formalismo excessivo e consideram equivocada a tentativa de desvincular o estudo do direito da sociologia e da moral.

No prefácio à primeira edição da Teoria Pura do Direito, de 1934, o próprio autor explicita as críticas à sua obra, afirmando que além de adesões e imitações, ela teria provocado também forte oposição, "oposição feita com uma paixão quase sem exemplo na história da ciência jurídica".[1] Para Kelsen, o principal motivo de tamanho combate à Teoria Pura do Direito não tem origem em motivações científicas, mas em motivações políticas, já que a desvinculação entre direito e política postulada pelo autor teria como consequência uma limitação da influência dos juristas na política. Com efeito, a ideia de uma teoria pura do direito não comporta ideias políticas e torna impossível afirmar como ciência uma escolha política.

Kelsen critica seus opositores de construir uma falsa imagem da sua Teoria Pura, sem reconhecer a sua verdadeira essência, para criticá-la: "É destituída de qualquer conteúdo, é um jogo vazio de conceitos ocos, dizem com desprezo uns; o seu conteúdo significa, pelas suas tendências subversivas, um perigo sério para o Estado constituído e para o seu Direito, avisam outros. Como se mantém completamente alheia a toda política, a Teoria Pura do Direito afasta-se da vida real e, por isso, fica sem qualquer valor científico. É esta uma das objeções mais frequentemente levantadas contra ela. Porém, ouve-se também com não menos freqüência: a Teoria Pura do Direito não tem de forma alguma a possibilidade de dar satisfação ao seu postulado metodológico fundamental e é mesmo tão-só a expressão de uma determinada atitude política. Mas qual das afirmações é verdadeira? Os fascistas declaram-na liberalismo democrático, os democratas liberais ou os sociais-democratas consideram-na um posto avançado do fascismo. Do lado comunista é desclassificada como ideologia de um estatismo capitalista, do lado capitalista-nacionalista é desqualificada, já como bolchevismo crasso, já como anarquismo velado. O seu espírito é – asseguram muitos – aparentado com o da escolástica católica; ao passo que outros crêem reconhecer nela as características distintivas de uma teoria protestante do Estado e do Direito. E não falta também quem a pretenda estigmatizar com a marca de ateísta. Em suma, não há qualquer orientação política de que a Teoria Pura do Direito não tenha ainda se tornado suspeita. Mas isso precisamente demonstra, melhor do que ela própria poderia fazer, a sua pureza”.[1]

O positivismo jurídico, escola de pensamento jurídico de que a obra de Hans Kelsen é precursora, é criticado por diversas correntes da teoria do direito como o jusnaturalismo, que defende a existência de um direito natural paralelo ao direito posto, e o moralismo, que defende que direito e moral não podem ser dissociados.

Uma das mais frequentes críticas à teoria kelseniana questiona se o Estado antecede o Direito ou o contrário. Nessa linha, Gustav Radbruch, professor da Universidade de Heidelberg, sustenta que se o Estado tem o poder de determinar o que é justo e o que não é, com base apenas na vontade do legislador, qualquer agressão aos direitos humanos ficaria inteiramente justificada, já que prevista no ordenamento jurídico. Assim, o direito positivo se tornaria mera expressão da vontade do poder, isto é, da força social dominante.

O autor critica o formalismo da teoria de Kelsen, que deixa de lado a discussão sobre o conteúdo da norma e a questão da sua eventual justiça ou injustiça. Afirma que: “há leis que não são direitos e há um direito acima das leis” e ainda: “quando nem sequer se aspira a realizar a justiça, quando na formulação do direito positivo se deixa de lado conscientemente a igualdade, que constitui o núcleo da justiça, então não estamos diante de uma lei que estabelece um ‘direito defeituoso’, mas o que ocorre é que estamos diante de um caso de ausência de Direito.”[2]

Segundo Radbruch, foi a visão exclusivamente positivo-formalista do direito que permitiu a ascensão do nazismo na Alemanha e as suas conseqüências. Após a Segunda Guerra Mundial em Cinco Minutos de Filosofia do Direito, publicado em 12 de setembro de 1945, em forma de circular dirigida aos estudantes da Universidade de Heidelberg[3] diz: "Esta concepção da lei e sua validade, que chamamos Positivismo, foi a que deixou sem defesa o povo e os juristas contra as leis mais arbitárias, mais cruéis e mais criminosas. Torna equivalentes, em última análise, o direito e a força, levando a crer que só onde estiver a segunda estará o primeiro".

A ideia de que a visão formalista sobre a validade e a interpretação do direito permitiria legitimar qualquer vontade política ganhou força após o fim do regime nazista, com o término da segunda guerra mundial, quando a maioria dos juristas alemães estava à procura de uma teoria do direito que condenasse a recente barbárie e evitasse a sua repetição. Trata-se, no entanto, conforme sustenta Dimitri Dimoulis, de um mito que merece ser destruído, já que existe uma clara diferença entre a abordagem do positivismo jurídico e a prática dos regimes ditatoriais do século XX, os quais pregavam a reinterpretação do direito com referência a valores nacionalistas e racistas enquanto rejeitavam frontalmente a visão positivista de segurança e formalidades jurídicas.

Para Dimoulis, quem critica o positivismo por adotar uma postura neutra, atribuindo a qualidade de "direito" a qualquer sistema de normas, sejam elas justas ou injustas, confunde os requisitos de validade da norma e os requisitos de validade do sistema. Os positivistas afirmam que qualquer norma pode vigorar desde que satisfaça os requisitos de validade estabelecidos pelo sistema. O sistema, por sua vez, deve ser socialmente eficaz, ou seja, respeitado pela população de maneira geral. Assim, se o direito nazista vigorou, não foi porque os positivistas constataram tal fato, mas porque a população alemã aderiu às previsões do direito nazista.

Referências

  1. a b c d Kelsen, Hans (1979). Teoria Pura do Direito. Coimbra: Arménio Amado. p. 17  Erro de citação: Código <ref> inválido; o nome "Kelsen" é definido mais de uma vez com conteúdos diferentes
  2. Leyes que no son derecho y derecho por encima de las leyes, in Derecho injusto y derecho nulo, Aguilar, Madrid, 1971.
  3. (versão em português no Apêndice II, da tradução feita por Cabral de Moncada, de sua Filosofia do Direito - Armênio Amado, Editor, Sucessor Coimbra, 1974, 5a. edição, pp. 415 - 418)

Referências bibliográficas

  • CARVALHO, J. F. T., GARCIA, C. L. & SOUSA, J. P. G. de.. Dicionário de Política. São Paulo: Queiroz, 1998.
  • CUNHA, Sérgio Sérvulo da. Dicionário Compato de Direito. São Paulo: Saraiva, 2002.
  • DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico. São Paulo: Método, 2006.
  • KELSEN,Hans. Teoria Pura do Direito. Coimbra: Arménio Amado, 1979.
  • MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito. 26 ed.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
  • RADBRUCH, Gustav. Arbitrariedad Legal y Derecho Supralegal. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1962.
  • SGARBI, Adrian. Hans Kelsen (Ensaios Introdutórios). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.