Tripanotiona-dissulfeto redutase

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Ficheiro:EC PDB TR.png
A estrutura cristalina da TR do patógeno humano Trypanosoma cruzi

A enzima Tripanotiona-dissulfeto redutase (TR) teve seu primeiro número EC criado em 1989 como EC 1.6.4.8, transferido em 2002 para EC 1.8.1.12 [1] é uma flavoproteína dissulfeto redutase dependente de NADPH, encontrada somente em parasitas protozoários da ordem Kinetoplastidae da família Trypanosomatidae.[1] Já foi descrita nos organismos como Trypanosoma cruzi, Trypanosoma brucei, Leishmania donovani, Crithidia fasciculata e Trypanosoma congolense. Nestes parasitas, o seu sistema de oxi-redução - envolvendo tripanotiona/tripanotiona redutase - substitui os sistemas glutationa/glutationa redutase presentes nos seres humanos.[2]

Outros nomes: N (1), N (8) -bis (glutationil) espermidina redutase, NADPH: tripanotiona oxidoredutase, Tripanotiona redutase.

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Tripanotiona[editar | editar código-fonte]

Tripanotiona

A Tripanotiona é um ditiol sintetizado a partir da conjugação de duas moléculas de glutationa e uma de espermidina.[3] É uma molécula particular em tripanossomatídeos e ocupa papel central no metabolismo antioxidante. A tripanotiona foi descoberta em 1985 por Fairlamb e colaboradores,[3] sendo identificada como o principal tiol de baixa massa molecular presente em tripanossomatídeos.[3] Esse tiol atua juntamente com a tripanotiona redutase e a triparedoxina peroxidase, que juntos, formam um eficiente sistema de defesa antioxidante nesse grupo de organismos.[4]

Função[editar | editar código-fonte]

A função da TR é catalisar a redução do seu substrato tripanotiona dentro do citoplasma celular, uma vez que o acúmulo de dissulfetos afeta o equilíbrio tiól-coredox e, consequentemente, a atividade metabólica do parasito.[5]

A principal forma do substrato encontrada nos tripanossomos é a ditiol Tipanotiona (T[SH]2). Estima-se que 99% da tripanotiona esteja na forma reduzida dentro da célula e uma vez consumida nas reações metabólicas redox, converte-se na forma dissulfeto (TS2).[6] Esta, por sua vez, é rapidamente recuperada para a forma ditiol pela ação catalítica da TR.

Importância[editar | editar código-fonte]

O metabolismo antioxidante é essencial para a sobrevivência e também para a diferenciação de promastigota metacíclico para forma amastigota, que ocorre dentro do vacúolo parasitófago de macrófagos. O bom funcionamento dessa via é essencial, uma vez que macrófagos induzem extresse oxidativo, pela liberação de ROS e espécies reativas de nitrogênio no vacúolo parasitófago, como forma de eliminar os parasitos.[7] Durante o processo de diferenciação, uma das principais vias cujos genes são modulados em nível transcricional e pós-transcricional é justamente a via da tripanotiona.[4]

Reação enzimática[editar | editar código-fonte]

A reação de redução da tripanotiona oxidada se inicia após a ligação de NADPH, onde acontece a transferência dos elétrons à FAD e a redução dos resíduos da ponte dissulfero formado entre as cisteínas 52 e 57 (Cys-52-Cys-57). A redução desses resíduos ocorre pela formação de uma transferência de carga transiente entre a flavina e o tiolato Cys-57. Em seguida, após a entrada da tripanotiona oxidada no sítio ativo de TR, Cys-52 que está deprotonada pelo par His461’-Glu466’, ataca nucleofilicamente a ponte dissulfeto na tripanotiona oxidada, formando com ela um dissulfeto misto, que é resolvido pelo ataque de Cys-57 à Cys52. Por fim, a ponte dissulfeto Cys-57-Cys52 é novamente formada e a tripanotiona reduzida é liberada.[8]

Tripanotiona dissulfeto + NADPH = Tripanotiona + NADP +

Estrutura Cristalina[editar | editar código-fonte]

A primeira estrutura cristalina por raio-x foi isolada do organismo tripanossomatídeo Crithidia fasciculata, sendo resolvida por substituição molecular. O modelo de pesquisa foi a estrutura cristalina da glutationa redutase humana que compartilha aproximadamente 40% da identidade de sequência. A unidade assimétrica consiste em um homodímero de massa molecular aproximada de 108 kDa. A enzima do tripanossomatideo assume uma função biológica semelhante à glutationa redutase e, embora semelhante em topologia à glutationa redutase humana, tem um sítio ativo aumentado e uma série de diferenças de aminoácidos, estérica e eletrostática, o que lhe permite processar apenas o substrato único tripanotiona e não glutationa. [9]

Sítio Ativo[editar | editar código-fonte]

A estrutura de TR ativa é homodimérica [1][10] e cada monômero é composto por três domínios, sendo eles, um domínio de ligação à FAD (resíduos 1-160 e 289-360), um domínio de ligação à NADPH (resíduos 161-289) e um domínio de interface (resíduos 361-488). O sítio de ligação à tripanotiona é muito grande e coberto por resíduos não-polares em sua maioria.[10]

Ensaio Enzimático[editar | editar código-fonte]

Os ensaios enzimáticos da tripanotiona-dissulfeto redutase é realizados a partir da oxidação de NADPH dependente de tripanotiona.[11] O ensaio é constituído de tampão contendo Hepes pH 7,4, EDTA, NADPH, tripanotiona-dissulfeto redutase e a reação será iniciada pela adição do substrato Tripanotiona dissulfeto. As alterações na absorbância serão monitoradas pela leitura do consumo de NADPH no leitor de microplaca a 340nm a 27ºC por 3 minutos (registros a cada 30 segundos). Uma unidade de atividade (U) é definida como a quantidade de enzima necessária para catalisar a conversão de 1 µmol de NADPH a NADP+ por minuto a 27°C. [12]

A velocidade de reação desta enzima será determinada pela variação do consumo do doador de elétrons NADPH.

Purificação[editar | editar código-fonte]

Os estudos cristalográficos iniciais utilizaram TR isolado de Crithidia fasciculata clone H56.[13][14] Uma série de complicações surgiram dos primeiros estudos com essa enzima como: as dificuldades associadas ao crescimento e cultivo desse tripanossomatídeo não patogênico, aliadas ao baixo rendimento da enzima que poderia ser isolada e purificada, foram um fator limitante em termos de quantidade de material para estudo cristalográfico. Uma solução para os problemas encontrados foi a utilização de fonte recombinante de TR. Um sistema de superexpressão de Escherichia coli para TR.[15] A purificação de TR recombinante é alcançada por uma combinação de purificação de sulfato de amônio, cromatografia de afinidade em 2′5′-ADP Sepharose e cromatografia de troca aniônica e a pureza é avaliada por SDS-PAGE. [16]

Parâmetros Cinéticos[editar | editar código-fonte]

A TR apresentam elevada afinidade, alta eficiência catalítica e exclusividade por seu substrato TS2. [12]

A constante de afinidade será representada por Km na cinética enzimática e quanto ↓Km, maior será a eficácia catalítica de uma enzima.

A eficácia catalítica de TR (kcat/KM) é de 5,3x106 M-1 seg-1.

O Kmapp de NADPH representa a afinidade da enzima pelo NADPH é corresponde a 5.

O Kcat representa o número de reações que a enzima consegue converter seu respectivo substrato em cada sítio ativo a cada ciclo. O TR apresenta 14 200 min-1(TS2) de Kcat.

Inibição[editar | editar código-fonte]

Na Inibição enzimática, a substância inibidora forma ligações químicas com a Enzima, de modo a interferir na sua atividade catalítica. De acordo com a estabilidade da ligação entre o inibidor e a enzima. A inibição enzimática pode ser de dois tipos: reversível e irreversível. Os inibidores reversíveis podem atuar de diferentes maneiras. Dentre os tipos de inibição mais comuns podemos citar inibição competitiva, inibição não-competitiva, inibição acompetitiva, inibição competitiva parcial, não-competitiva parcial e mista linear.

No protozoário pertencente ao gênero Leishmania alguns compostos contendo metais e metais já demostraram ser capazes de inibir TR ligando-se ao sítio ativo, bem como drogas contendo antimônio que bloqueiam a atividade de TR são conhecidas. Além de tais compostos de metal que se ligam às duas cisteínas catalíticas ativas, vários compostos orgânicos também mostraram inibir a atividade do TR. Sulfeto de diaril, 2-iminobenzimidazoles, análogos de poliamina, compostos à base de quinolina, scaffolds à base de pirimidopiridazina, compostos de azol e análogos lunarinos. [17]

No protozoários pertencente ao gênero Trypanosoma também já foram identificados algumas classes de compostos promissores como derivados à base de poliamina, derivados não redutíveis, derivados de peptídeos, derivados de espermidina, fenotiazinas, compostos tricíclicos, sulfuretos de aminodifenils, derivados de naftoquinona e nitroderivados. [18]

Aplicação[editar | editar código-fonte]

Esta proteína representa um alvo importante no desenvolvimento de novos compostos para o tratamento da Doença de Chagas, Tripanossomíase africana e Leishmania causadas por parasitas protozoários pertencentes aos gêneros Trypanosoma e Leishmania. As diferenças estruturais entre as enzimas do parasita e do hospedeiro e seus substratos fornecem, portanto, uma base racional para o desenvolvimento de novos compostos que possuem capacidade de inibição da tripanotiona-dissulfeto redutase.[9]

Referências[editar | editar código-fonte]

  1. a b Fairlamb, Alan H.; Cerami, Anthony (outubro de 1992). «METABOLISM AND FUNCTIONS OF TRYPANOTHIONE IN THE KINETOPLASTIDA». Annual Review of Microbiology (em inglês) (1): 695–729. ISSN 0066-4227. doi:10.1146/annurev.mi.46.100192.003403. Consultado em 16 de outubro de 2021 
  2. Müller, Sylke; Liebau, Eva; Walter, Rolf D.; Krauth-Siegel, R.Luise (julho de 2003). «Thiol-based redox metabolism of protozoan parasites». Trends in Parasitology (em inglês) (7): 320–328. doi:10.1016/S1471-4922(03)00141-7. Consultado em 16 de outubro de 2021 
  3. a b c Fairlamb, Alan H.; Blackburn, Peter; Ulrich, Peter; Chait, Brian T.; Cerami, Anthony (22 de março de 1985). «Trypanothione: A Novel Bis(glutathionyl)spermidine Cofactor for Glutathione Reductase in Trypanosomatids». Science (em inglês) (4693): 1485–1487. ISSN 0036-8075. doi:10.1126/science.3883489. Consultado em 17 de outubro de 2021 
  4. a b Manta, Bruno; Comini, Marcelo; Medeiros, Andrea; Hugo, Martín; Trujillo, Madia; Radi, Rafael (maio de 2013). «Trypanothione: A unique bis-glutathionyl derivative in trypanosomatids». Biochimica et Biophysica Acta (BBA) - General Subjects (em inglês) (5): 3199–3216. doi:10.1016/j.bbagen.2013.01.013. Consultado em 17 de outubro de 2021 
  5. Krauth-Siegel, Luise R.; Comini, Marcelo A.; Schlecker, Tanja (2007). Flohé, Leopold; Harris, J. Robin, eds. «The Trypanothione System». Dordrecht: Springer Netherlands: 231–251. ISBN 978-1-4020-6050-2. doi:10.1007/978-1-4020-6051-9_11. Consultado em 17 de outubro de 2021 
  6. Fairlamb, A. H. Target discovery and validation with special reference to trypanothione. In: Fairlamb, A. H.; Ridley, R. G.; Vial, H. J. Drugs against parasitic diseases. R&D methodologies and issues - Discoveries and drug development. 2001.
  7. Stafford, James L.; Neumann, Norman F.; Belosevic, Miodrag (janeiro de 2002). «Macrophage-Mediated Innate Host Defense Against Protozoan Parasites». Critical Reviews in Microbiology (em inglês) (3): 187–248. ISSN 1040-841X. doi:10.1080/1040-840291046731. Consultado em 17 de outubro de 2021 
  8. Ilari, Andrea; Baiocco, Paola; Messori, Luigi; Fiorillo, Annarita; Boffi, Alberto; Gramiccia, Marina; Di Muccio, Trentina; Colotti, Gianni (fevereiro de 2012). «A gold-containing drug against parasitic polyamine metabolism: the X-ray structure of trypanothione reductase from Leishmania infantum in complex with auranofin reveals a dual mechanism of enzyme inhibition». Amino Acids (em inglês) (2-3): 803–811. ISSN 0939-4451. PMC PMC3266496Acessível livremente Verifique |pmc= (ajuda). PMID 21833767. doi:10.1007/s00726-011-0997-9. Consultado em 17 de outubro de 2021 
  9. a b Hunter, William N.; Bailey, Susan; Habash, Jarjis; Harrop, Stephen J.; Helliwell, John R.; Aboagye-Kwarteng, Tamara; Smith, Keith; Fairlamb, Alan H. (5 de setembro de 1992). «Active site of trypanothione reductase: A target for rational drug design». Journal of Molecular Biology (em inglês) (1): 322–333. ISSN 0022-2836. doi:10.1016/0022-2836(92)90701-K. Consultado em 17 de outubro de 2021 
  10. a b Baiocco, Paola; Colotti, Gianni; Franceschini, Stefano; Ilari, Andrea (23 de abril de 2009). «Molecular Basis of Antimony Treatment in Leishmaniasis». Journal of Medicinal Chemistry (em inglês) (8): 2603–2612. ISSN 0022-2623. doi:10.1021/jm900185q. Consultado em 17 de outubro de 2021 
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  12. a b Pita, Samuel S. da R.; Pascutti, Pedro G. (2011). «Therapeutic Targets in Chagas' Disease: a Focus on Trypanothione Reductase». Revista Virtual de Química (em inglês) (4). ISSN 1984-6835. doi:10.5935/1984-6835.20110035. Consultado em 21 de outubro de 2021 
  13. Hunter, William N.; Smith, Keith; Derewenda, Zygmunt; Harrop, Stephen J.; Habash, Jarjis; Islam, M.S.; Helliwell, John R.; Fairlamb, Alan H. (novembro de 1990). «Initiating a crystallographic study of trypanothione reductase». Journal of Molecular Biology (em inglês) (2): 235–237. doi:10.1016/S0022-2836(05)80314-6. Consultado em 21 de outubro de 2021 
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  16. Jones, Deuan C.; Ariza, Antonio; Chow, Wing-Huen A.; Oza, Sandra L.; Fairlamb, Alan H. (janeiro de 2010). «Comparative structural, kinetic and inhibitor studies of Trypanosoma brucei trypanothione reductase with T. cruzi». Molecular and Biochemical Parasitology (em inglês) (1): 12–19. PMC PMC2789240Acessível livremente Verifique |pmc= (ajuda). PMID 19747949. doi:10.1016/j.molbiopara.2009.09.002. Consultado em 21 de outubro de 2021 
  17. Turcano, Lorenzo; Torrente, Esther; Missineo, Antonino; Andreini, Matteo; Gramiccia, Marina; Di Muccio, Trentina; Genovese, Ilaria; Fiorillo, Annarita; Harper, Steven (26 de novembro de 2018). Kortagere, Sandhya, ed. «Identification and binding mode of a novel Leishmania Trypanothione reductase inhibitor from high throughput screening». PLOS Neglected Tropical Diseases (em inglês) (11): e0006969. ISSN 1935-2735. PMC PMC6283646Acessível livremente Verifique |pmc= (ajuda). PMID 30475811. doi:10.1371/journal.pntd.0006969. Consultado em 21 de outubro de 2021 
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