Usuário(a):Fabio Sioux/Testes
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Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever. Como começar
pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer?
Se antes da pré-pré-história já havia os monstros apocalípticos? Se esta história não
existe passará a existir.
A verdade é sempre um contato interior inexplicável. A minha vida a mais verdadeira é
irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique. Meu
coração se esvaziou de todo desejo e reduz-se ao próprio último ou primeiro pulsar.
A dor de dentes que perpassa esta história deu uma fisgada funda em plena boca nossa.
Então eu canto alto agudo uma melodia sincopada e estridente – é a minha própria dor,
eu que carrego o mundo e há falta de felicidade. Felicidade? Nunca vi palavra mais
doida, inventada pelas nordestinas que andam por aí aos montes.
Só não inicio pelo fim que justificaria o começo – como a morte parece dizer sobre a
vida – porque preciso registrar os fatos antecedentes.
Se há veracidade nela – é claro que a história é verdadeira embora inventada – que cada
um a reconheça em si mesmo porque todos nós somos um e quem não tem pobreza de dinheiro
tem pobreza de espírito ou saudade por lhe faltar coisa mais preciosa que ouro – existe
a quem falte o delicado essencial.
Como é que sei tudo o que vai se seguir e que ainda o desconheço, já que nunca o vivi?
É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no
rosto de uma moça nordestina. Sem falar que eu em menino me criei no Nordeste. Também
sei das coisas por estar vivendo. Assim é que os senhores sabem mais do que imaginam e
estão fingindo de sonsos.
Proponho-me a que não seja complexo o que escreverei, embora obrigado a usar palavras
que vos sustentam.
A história – determino com falso livre-arbítrio – vai ter uns sete personagens e eu sou
um dos mais importantes deles, é claro. Eu, Rodrigo S. M. Relato antigo, este, pois não
quero ser mordenoso e inventar modismos à guisa de originalidade. Assim é que
experimentarei contra os meus hábitos uma história com começo, meio e “gran finale”
seguido de silêncio e de chuva caindo. História exterior e explícita, sim, mas que
contém segredos – a começar por um dos títulos. “Quanto ao futuro”, que é precedido por
um ponto final e seguido de outro ponto final. Não se trata de capricho meu – no fim
talvez se entenda a necessidade do delimitado. (Mal e mal vislumbro o final que, se
minha pobreza permitir, quero que seja grandioso.) Se em vez de ponto fosse seguido por
reticências o título ficaria aberto a possíveis imaginações vossas, porventura até
malsãs e sem piedade.
Bem, é verdade que também eu não tenho piedade do meu personagem principal, a
nordestina: é um relato que desejo frio. Mas tenho o direito de ser dolorosamente frio,
e não vós. Por tudo isto é que não vos dou a vez.
Não se trata apenas de narrativa, é antes de tudo vida primária que respira, respira,
respira. O que é mais do que invenção, é minha obrigação contar sobre essa moça entre
milhares delas.
E dever meu, nem que seja de pouca arte, o de revelar-lhe a vida. Porque há o direito
ao grito. Então eu grito. Grito puro e sem pedir esmola.
Sei que há moças que vendem o corpo, única posse real, em troca de um bom jantar em vez
de um sanduíche de mortadela. Mas a pessoa de quem falarei mal tem corpo para vender,
ninguém a quer, ela é virgem e inócua, não faz falta a ninguém. Aliás – descubro eu
agora – eu também não faço a menor falta, e até o que escrevo um outro escreveria.
Como a nordestina, há milhares de moças espalhadas por cortiços, vagas de cama num
quarto, atrás de balcões trabalhando até a estafa. Não notam sequer que são facilmente
substituíveis e que tanto existiram como não existiriam. Poucas se queixam e ao que eu
saiba nenhuma reclama por não saber a quem. Esse quem será que existe?
Pretendo, como já insinuei, escrever de modo cada vez mais simples. Tenho que falar
simples para captar a sua delicada e vaga existência. Limito-me a humildemente – mas
sem fazer estardalhaços de minha humildade que já não seria humilde – limito-me a
contar as fracas aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela.
Ela que devia ter ficado no Sertão de Alagoas com vestido de chita e sem nenhuma
datilografia, já que escrevia tão mal, só tinha até o terceiro ano primário. Por ser
ignorante era obrigada na datilografia a copiar lentamente letra por letra – a tia é
que lhe dera um curso ralo de como bater à máquina. E a moça ganhara uma dignidade: era
enfim datilógrafa.
Quem antes afiançar que essa moça não se conhece senão através de ir vivendo à toa. Se
tivesse a tolice de se perguntar “quem sou eu?” Cairia estatelada em cheio no chão. É
que “quem sou eu?” Provoca necessidade. E como satisfazer a necessidade? Quem se indaga
é incompleto.
A pessoa de quem vou falar é tão tola que às vezes sorri para os outros na rua. Ninguém
lhe responde ao sorriso porque nem ao menos a olham.
Que não se esperem, então, estrelas no que se segue: nada cintilará, trata-se de
matéria opaca e por sua própria natureza desprezível por todos. Pergunto-me se eu deveria caminhar à frente do tempo e esboçar logo um final. Acontece
porém que eu mesmo ainda não sei bem como isto terminará. E também porque entendo que
devo caminha passo a passo de acordo com um prazo determinado por horas: até um bicho
lida com o tempo. E esta é também a minha mais primeira condição: a de caminhar
paulatinamente apesar da impaciência que tenho em relação a essa moça.
Juro que este livro é feito sem palavras. É uma fotografia muda. Este livro é um
silêncio. Este livro é uma pergunta. Mas desconfio que toda essa conversa é feita
apenas para adiar a pobreza da história, pois estou com medo.
Antes de ter surgido na minha vida essa datilógrafa, eu era um homem até mesmo um pouco
contente, apesar do mau êxito na minha literatura. As coisas estavam de algum modo tão
boas que podiam se tornar muito ruins porque o que amadurece plenamente pode apodrecer.
Transgredir, porém, os meus próprios limites me fascinou de repente. E foi quando
pensei em escrever sobre a realidade, já que essa me ultrapassa. Qualquer que seja o
que quer dizer “realidade”.
É. Parece que estou mudando o modo de escrever. Mas acontece que só escrevo o que
quero, não sou um profissional – e preciso falar dessa nordestina senão sufoco.
Ela me acusa e o meio de me defender é escrever sobre ela.
Quero neste instante falar da nordestina. É o seguinte: ela como uma cadela vadia era
teleguiada exclusivamente por si mesma. Pois reduzia-se a si. Também eu, de fracasso em
fracasso, me reduzi a mim.
Sou um homem que tem mais dinheiro que os que passam fome, o que faz de mim de algum
modo desonesto. E só minto na hora exata da mentira. Mas quando escrevo não minto. Que
mais? Sim, não tenho classe social, marginalizado que sou. A classe alta me tem como um
monstro esquisito, a média com desconfiança de que eu possa desequilibrá-la, a classe
baixa nunca vem a mim.
Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas. Mas voam faíscas e lascas como
aços espelhados.
Ah que medo de começar e ainda nem sequer sei o nome da moça. Sem falar que a história
me desespera por ser simples demais. O que me proponho a contar parece fácil e à mão de
todos. Mas a sua elaboração é muito difícil.
Pois tenho que tornar nítido o que está quase apagado e que mal vejo. De uma coisa
tenho certeza: essa narrativa mexerá com uma coisa delicada: a criação de uma pessoa
inteira que na certa está tão viva quanto eu. Cuidai dela porque meu poder é só
mostrá-la para que vós a reconheçais na rua, andando de leve por causa da esvoaçada
magreza.
E se for triste a minha narrativa? Depois na certa escreverei algo alegre, embora
alegre por quê?
- Porque escrevo? Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar
para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não
suporto mais a rotina de me ser e se não fosse sempre a novidade que é escrever, eu
morreria simbolicamente todos os dias. Experimentei quase tudo, inclusive a paixão e o
seu desespero. E agora só quereria ter o que eu tivesse sido e não fui. Mas preparado
estou para sair discretamente pela saída da porta dos fundos.***
Pareço conhecer nos menores detalhes essa nordestina, pois se vivo com ela. E com muito
adivinhei a seu respeito, ela se me grudou na pele qual melado pegajoso ou lama negra.
Vejo a nordestina se olhando ao espelho e – um rufar de tambor – no espelho aparece o
meu rosto cansado e barbudo. Tanto nós nos intertrocamos. Não há dúvida que ela é uma
pessoa física.
&&&&&&E adianto um fato: trata-se de moça que nunca se viu nua porque tinha vergonha.
Vergonha por pudor ou por ser feia? moça essa que dormia de combinação de brim com manchas bastante suspeitas de sangue
pálido. Para adormecer nas frígidas noites de inverno enroscava-se em si mesma,
recebendo-se e dando-se o próprio parco calor. Dormia de boca aberta por causa do nariz
entupido, dormia exausta, dormia até o nunca. &&&&&
Quanto à moça, ela vive num limbo impessoal, sem alcançar o pior nem melhor. Ela
somente vive, inspirando e expirando, inspirando e expirando. Na verdade – para que
mais que isso? O seu viver é ralo. Sim. Mas por que estou me sentindo culpado? E
procurando aliviar-me do peso de nada ter feito de concreto em benefício da moça.
Afianço também que a história será igualmente acompanhada pelo violino plangente
tocado por um homem magro bem na esquina. A sua cara é estreita e amarela como se ela
já tivesse morrido. E talvez tenha. Tudo isso eu disse tão longamente por medo de ter
prometido demais e dar apenas o simples e o pouco.
Pois esta história é quase nada. O jeito é começar de repente assim como eu me lanço de
repente na água gélida do mar, modo de enfrentar com uma coragem suicida o intenso
frio.
Vou agora começar pelo meio dizendo que – – que ela era incompetente. Incompetente para
a vida. Faltava-lhe o jeito de se ajeitar. Só vagamente tomava conhecimento da espécie
que tinha de si em si mesma.
Faltava-lhe o jeito de se ajeitar. Tanto que (explosão) nada argumentou em seu próprio
favor quando o chefe da firma de representante de roldanas avisou-lhe com brutalidade
(brutalidade essa que ela parecia provocar com sua cara de tola, rosto que pedia tapa),
com brutalidade que só ia manter no emprego Glória, sua colega, porque quanto a ela,
errava demais na datilografia, além de sujar invariavelmente o papel.
Isso disse ele. Quanto à moça, achou que se deve por respeito responder alguma coisa e
falou cerimoniosamente a seu escondidamente amado chefe: – Me desculpe o aborrecimento.
O senhor Raimundo Silveira – que a essa altura já lhe havia virado as costas – voltou-
se um pouco surpreendido com a inesperada delicadeza e alguma coisa na cara quase
sorridente da datilógrafa o fez dizer com menos grosseria na voz, embora a contragosto:
– Bem, a despedida pode não ser para já, é capaz até de demorar um pouco. Depois de
receber o aviso foi ao banheiro para ficar sozinha porque estava toda atordoada.
Olhou-se maquinalmente ao espelho que encimava a pia imunda e rachada, cheia de
cabelos, o que tanto combinava com sua vida. Pareceu-lhe que o espelho baço e
escurecido não refletia imagem algum. Sumira por acaso a sua existência física? Logo
depois passou a ilusão e enxergou a cara todo deformada pelo espelho ordinário, o nariz
tornado enorme como o de um palhaço de nariz de papelão.
Ela era de leve como uma idiota, só que não o era. Não sabia que era infeliz. É porque
ela acredita. Em quê? Em vós, mas não é preciso acreditar em alguém ou em alguma coisa
– basta acreditar. Isso lhe dava às vezes estado de graça. Nunca perdera a fé. (Ela me
incomoda tanto que fiquei oco. Estou oco desta moça. E ela tanto mais me incomoda
quanto menos reclama. Estou com raiva. Uma cólera de derrubar copos e pratos e quebrar
vidraças. Como me vingar? Ou melhor, como me compensar? Já sei: amando meu cão que tem
mais comida do que a moça. Por que ela não reage? Cadê um pouco de fibra? Não, ela é
doce obediente.)
Ninguém olhava para ela na rua, ela era café frio. E assim se passava o tempo para a
moça esta. Assoava o nariz na barra da combinação. Não tinha aquela coisa delicada que
se chama encanto. Só eu a vejo encantadora. Sé eu, seu autor, a amo. Sofro por ela. E
só eu é que posso dizer assim: “que é que você me pede chorando que não lhe dê
cantando”?
Essa moça não sabia que ela era o que era, assim como um cachorro não sabe que é
cachorro. Daí não se sentir infeliz. A única coisa que queria era viver. Não sabia para
quê, não se indagava.
Quem sabe, achava que havia uma gloriazinha em viver. Ela pensava que a pessoa é
obrigada a ser feliz. Então era.
Nascera inteiramente raquítica, herança do sertão
Com dois anos de idade lhe haviam morrido os pais de febres ruins no sertão de
Alagoas, lá onde o diabo perdera as botas.
Muito depois fora para Maceió com a tia beata, única parenta sua no mundo, a qual lhe
dava cascudos no alto da cabeça de ossos fracos por falta de cálcio.
Batia mas não era somente porque ao bater gozava de grande prazer sensual – a tia que
não se casara por nojo – é que também considerava de dever seu evitar que a menina
viesse um dia a ser uma dessas moças que em Maceió ficavam nas ruas de cigarro aceso
esperando homem.
As pancadas ela esquecia pois esperando-se um pouco a dor termina por passar. Mas o
que doía mais era ser privada da sobremesa de todos os dias: goiabada com queijo, a
única paixão na sua vida.
Pois não era que esse castigo se tornara o predileto da tia sabida?
A menina não perguntava por que era sempre castigada mas nem tudo se precisa saber e
não saber fazia parte importante de sua vida.
%%%%%%Esse não-saber pode parecer ruim mas não é tanto porque ela sabia muita coisa
assim como ninguém ensina cachorro a abanar o rabo e nem a pessoa a sentir fome;
nasce-se e fica-se logo sabendo. Assim como ninguém lhe ensinaria um dia a morrer: na
certa morreria um dia como se antes tivesse estudado de cor a representação do papel de
estrela. Pois na hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é o
instante de glória de cada um e é quando como no canto coral se ouvem agudos
sibilantes.%%%%%%%%
Quando era pequena tivera vontade intensa de criar um bicho. Mas a tia achava que ter
um bicho era mais uma boca para comer. Então a menina inventou que só lhe cabia criar
pulgas pois não merecia o amor de um cão.
Do contacto com a tia ficara-lhe a cabeça baixa. Mas a sua beatice não lhe pegara:
morta a tia, ela nunca mais fora a uma igreja porque não sentia nada e as divindades
lhe eram estranhas.
Pois a vida é assim: aperta-se o botão e a vida acende. Só que ela não sabia qual era
o botão de acender. Nem se dava conta de que vivia numa sociedade técnica onde ela era
um parafuso dispensável.
Mas uma coisa descobriu inquieta: já não sabia mais ter tido pai e mãe, tinha esquecido
o sabor. E, se pensava melhor, dir-se-ia que havia brotado da terra do sertão em
cogumelo logo mofado.
Ela falava, sim, mas era extremamente muda. Uma palavra dela eu às vezes consigo mas
ela me foge por entre os dedos.
Eu não inventei essa moça. Ela forçou de dentro de mim a sua exigência. Ela não era
nem de longe débil mental, era à mercê e crente como uma idiota.
A moça que pelo menos comida não mendigava, havia toda uma subclasse de gente mais
perdida e com fome. Só eu a amo.
Depois – ignora-se por quê – tinham vindo para o Rio, o inacreditável Rio de Janeiro,
a tia lhe arranjara emprego,
finalmente morrera e ela, agora sozinha, morava numa vaga de quarto compartilhado com
mais quatro moças balconistas das Lojas Americanas.
O quarto ficava num velho sobrado colonial da áspera rua do Acre entre as prostitutas
que serviam a marinheiros, depósitos de carvão e de cimento em pó, não longe do cais do
porto.
Rua do Acre. Mas que lugar. Os gordos ratos da rua do Acre. Lá é que não piso pois
tenho horror sem nenhuma vergonha do pardo pedaço da vida imunda.
Uma vez por outra tinha a sorte de ouvir de madrugada um galo cantar a vida e ela se
lembrava nostálgica do sertão.
Onde caberia um galo a cocoricar naquelas paragens ressequidas de artigos por atacado
de exportação e importação?
&&&&&&&&Embora a moça anônima da história seja tão antiga que podia ser uma figura
bíblica. Ela era subterrânea e nunca tinha tido floração. Minto: ela era capim).&&&&&
Dos verões sufocantes da abafada rua do Acre ela só sentia o suor, um suor que
cheirava mal. Esse suor me parece de má origem. Não sei se estava tuberculosa, acho que
não. No escuro da noite um homem assobiando e passos pesados, o uivo do vira-lata
abandonado.