Saltar para o conteúdo

Aborto: diferenças entre revisões

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Conteúdo apagado Conteúdo adicionado
Análise jurídica de caso concreto tratando de aborto em caso de feto com vida extra-uterina inviável
(Sem diferenças)

Revisão das 04h48min de 27 de novembro de 2004

I – Resumo do Caso

O caso trata do pedido de autorização judicial para prática de aborto eugênico, ou seja, interrupção da gravidez em virtude da impossibilidade de existência de vida extra-uterina. Tal pedido foi formulado por Gabriela Oliveira Cordeiro.

Gabriela teve seu pedido negado em primeira instância pelo Juiz de Direito de Teresópolis em 06 de novembro de 2003. Tal indeferimento teve como fundamento a falta de previsão legal desta excludente de ilicitude no rol permissivo do art. 128 do Código Penal (“CP”).

Dessa decisão recorreu o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro e, em 19 de novembro de 2003, a desembargadora Gizelda Leitão Teixeira concedeu medida liminar autorizando a realização da interrupção da gravidez.

Em 21 de novembro de 2003, o padre Luis Carlos Lodi da Cruz impetrou habeas Corpus e consegui sustar a decisão do Tribunal de Justiça de conceder permissão para a realização do aborto.

O caso chegou ao Superior Tribunal de Justiça o qual se manifestou a favor da interrupção da gravidez, tendo em vista a impossibilidade de vida extra-uterina do feto.


II – Análise do Caso

O presente estudo tem como objetivo traçar os principais pontos e bens jurídicos envolvidos. A situação examinada traz à tona diversos pontos controversos, tais como a ponderação de direitos e valores em virtude da existência de direitos da personalidade contrapostos.

Procuramos, ainda, fazer uma análise teleológica da legislação sobre o tema, ou seja, buscamos a verdadeira intenção do legislador quando listou as cláusulas excludentes da ilicitude do abortamento, para, assim, conhecermos de forma precisa o alcance das normas envolvidas. Para tal, levamos em consideração alguns ensinamentos traçados em decisões do direito alienígena sobre o assunto.

Primeiramente, é preciso que fique clara a existência de valores conflitantes. Enquanto o feto tem seu direito à vida garantido pelo ordenamento jurídico, temos que levar em conta os direitos da gestante à livre disposição do corpo e à saúde mental e psíquica.

No curso inicial do processo, em nenhum momento se cogitou de eventuais direitos da gestante, levando-se o foco da discussão aos direitos do nascituro que estariam sendo cerceados. A proteção ao nascituro não pode excluir a proteção aos direitos da gestante, inclusive por estar intimamente ligada aos mesmos.

O primeiro forte argumento que pode ser invocado pela paciente é de que sua própria vida encontra-se em risco, não só em virtude de complicações que podem advir de uma gravidez problemática, mas também pelas questões psicológicas que envolvem o fato.

O Código Penal prevê duas hipóteses onde existe, expressamente, a exclusão da ilicitude do crime de aborto, são elas: (i) o aborto necessário, caso a vida da gestante esteja em risco; e (ii) o aborto sentimental quando a gravidez resulta de estupro – aqui temos uma discussão doutrinária interessante, pois a lei fala apenas em estupro, porém a doutrina se posiciona no sentido de, tratando-se de norma penal permissiva, aplicar-lhe interpretação extensiva estendendo seus alcances também para os casos de gravidez oriunda de atentado violento ao pudor.

Na primeira hipótese, o abortamento se justifica no estado de necessidade (contraposição de bens jurídicos), por não ser possível a preservação da vida da gestante. Na segunda situação, o abortamento se justifica na violência ou grave ameaça determinantes de uma gravidez que não foi querida. Nesse sentido, vide Paulo José da Costa Junior, “Aborto eugênico ou necessário?”, em Revista Jurídica, n. 229, p. 27.

Assim, a existência de anomalias fetais, por si só, dentro de uma interpretação literal dos permissivos legais, não autoriza a interrupção da gravidez.

Os dois permissivos legais excluem a ilicitude da conduta, pois a norma penal refere que são impuníveis o aborto necessário e o sentimental. Na hipótese do aborto necessário, as normas gerais da excludente de ilicitude pelo estado de necessidade autorizam a conduta, independente da existência do permissivo específico.

Entretanto, as normas gerais do estado de necessidade não resolvem a problemática do aborto sentimental e do aborto eugênico, na medida em que, nessas duas hipóteses, em princípio, não temos dois bens jurídicos numa situação de perigo, não cabendo a discussão da razoabilidade do sacrifício do bem ameaçado.

Por outro lado, no caso do aborto sentimental, não sendo possível o reconhecimento da excludente típica especial, poderia ser reconhecida uma excludente supralegal de culpabilidade, ou seja, da inexigibilidade de conduta adversa. Esta escusativa de terceiro patamar poderia ser aplicada também nas hipóteses de aborto eugenésico, sempre que se entender em não aplicar a causa supralegal de exclusão da ilicitude, dentro de uma acepção material do conceito. Não se pode exigir da mulher que mantenha a gestação de um feto que não chegará a vida extra-uterina, ou que venha perder logo após o nascimento. Isto significa dar um tratamento desumano e cruel à gestante em prejuízo de sua saúde física e mental, também garantida na CF em seu art. 196. Ademais, a estes embriões ou fetos não cabe outorgar-lhes a condição de nascituro.

Defendemos a previsão legal para a interrupção da gravidez em caso de anomalias graves e incuráveis do feto que inviabilizem a vida fora do útero. Segundo Cezar Roberto Bitencourt, o Código Penal não legitima a realização do chamado aborto eugenésico, mesmo que seja provável que a criança nasça com deformidade ou enfermidade incurável. Contudo, sustenta que a gestante que provoca o auto-aborto ou consente que terceiro lho pratique está amparada pela inexigibilidade de outra conduta. Nesse sentido, vide Geraldo Francisco Pinheiro Franco, “impossível a sobrevida do feto, deve ser autorizado o aborto”, em boletim do IBCCrim, 1993, n. 11 p. 01, que defende que o aborto eugênico pode ser enquadrado nas hipóteses do art. 128, I, CP.

A interrupção da gravidez envolve a discussão sobre o bem jurídico mais valioso na natureza, ou seja, a vida, protegido pelo art. 5º, caput, da CF, e também a saúde física e mental. Entretanto, sempre que em conflito – gestante/feto -, os bens jurídicos merecem uma consideração valorativa global e ponderativa.

Nessa trilha:

“o TC declarou expressamente que a vida do nascituro é um bem jurídico constitucionalmente protegido no art. 15 da CF Espanhola; como tal, pode entrar em conflito com outros direitos relativos e valores constitucionais como podem ser a vida e a dignidade da mulher, conflitos que não podem ser valorados de forma unilateral, desde o ponto de vista dos direitos da mulher ou da exclusiva proteção da vida do feto em formação. Na medida em que nenhum desses bens em conflito pode afirmar-se com caráter absoluto, impõe-se uma ponderação e uma harmonização. Esta valoração não pode ser subjetiva ou parcial, isto é, de uma das partes em conflito, mas segundo critérios objetivos e neutros, estabelecidos por quem tem a faculdade legislativa e capacidade de impor por via geral e imperativa”.

No caso em análise, a proteção a vida do feto e da gestante estão de tal forma ligadas que a ordem concedida em favor de um implica a restrição imediata a liberdade do outro. Portanto, a questão deve ser analisada por dois ângulos, de um lado temos a liberdade individual, da qual a autodeterminação da gestante é uma manifestação, e, de outro, temos os diferentes graus de tutela da vida humana. Ou seja, existe flagrante contraposição entre o direito à vida em um sentido amplo, pleiteado por aqueles contrários à autorização do abortamento, e o direito a liberdade, a intimidade e a autonomia privada da gestante em um sentido estrito.

Quando da impetração do habeas corpus, a paciente pretendia a tutela da liberdade de opção da mulher em dispor de seu próprio corpo especificamente no caso de trazer em seu ventre feto fadado ao óbito logo após o parto. É necessário frisar que o presente trabalho não visa discutir a possibilidade do abortamento em sentido amplo, mas apenas no caso de o feto possuir anomalia grave que o leve, inexoravelmente, ao fracasso da vida fora do útero materno.

No caso em tela, o feto possui uma anomalia chamada anencefalia, que se caracteriza pela ausência da abódoba craniana, ou seja, ausência total ou parcial do crânio. Não é qualquer anomalia fetal que induz a interrupção da gravidez, mas aquela que inviabiliza a vida extra-uterina, isto é, que oferece um grau de certeza de que não haverá sobrevida. Os modernos métodos para apurar a situação do embrião ou feto nos fazem pensar sobre a origem biológica do ser humano e sobre o conteúdo substancial do direito à vida.

O TJ/SC, na ApCrim 98003566-0, Segunda Câmara Criminal, 05.05.1988, rel. Des. Jorge Mussi, em RT 756/798, deu provimento ao recurso interposto pelo interessado e autorizou o abortamento mediante alvará pois houve demonstração de que o feto era portador de anencefalia e de outras anomalias incompatíveis com a sobrevida extra-uterina. Em depoimento prestado nos autos deste processo, o companheiro da gestante declarou que, caso fosse negado o pedido, em vez de preparar o enxoval, teria que preparar o caixão e o velório. Consigna-se que havia laudo médico e psicológico nos autos.

É fácil perceber as dificuldades que devem surgir ao se enfrentar um diagnóstico que revela a má formação fetal. Imagine a quantidade de sentimentos dolorosos que envolvem a decisão de se interromper ou não uma gestação porque nada se pode fazer para salvar a vida do feto. Sendo assim, é dever do judiciário fornecer uma resposta rápida, precisa e definitiva sobre a criminalização da conduta de abortamento, para que a gestante que passa por esta situação não precise se preocupar com aspectos criminais de sua conduta.

O crime de aborto, tipificado no CP, pressupõe a existência de vida do feto, sendo este elemento indissociável do delito ali tipificado. Nas causas de exclusão da ilicitude expressas na legislação penal a lei preserva o direito de escolha da mulher, não atentado para a viabilidade do feto. Estamos, portanto, diante de uma tutela jurídica da liberdade e autonomia privada da mulher. A lei não determina que o aborto deve ser realizado nesta ou naquela hipótese, deixando a cargo da gestante optar por sua realização.

No caso de impossibilidade de vida extra-uterina, a antecipação do evento morte em nome da saúde física e psíquica da mulher nos parece bastante razoável. Nesse sentido, o voto do Min. Joaquim Barbosa nos autos do pedido de Habeas Corpus 84.025-6, STJ: “Isto porque, ao proceder à ponderação entre os valores tutelados pelo direito, a vida extra-uterina inviável e a liberdade de autonomia privada da mulher, deve prevalecer o direito de liberdade desta de escolher aquilo que melhor representa seus interesses pessoais, suas convicções morais e religiosas, seu sentimento pessoal”.

A idéia de autonomia da vontade é essencial ao princípio da dignidade da pessoa humana, “em casos de malformação fetal que leve à impossibilidade de vida extra-uterina, uma interpretação que tipifique a conduta como aborto estará sendo flagrantemente desproporcional em comparação com a tutela legal da autonomia privada da mulher, consubstanciada na possibilidade de escolha de manter ou interromper a gravidez, nos casos previstos no Código Penal” .

Segundo o Acórdão 212/1996, de 19 de dezembro do Tribunal Constitucional Espanhol, os embriões ou fetos que não têm condições de viver são embriões ou fetos abortados no sentido mais profundo da expressão, isto é, frustrados, já que no que diz respeito à dimensão que faz dos mesmos um bem jurídico, cuja proteção tem guarita constitucional.

Segundo Geraldo Francisco Pinheiro Franco, insistir no prosseguimento de uma gravidez sem a possibilidade de êxito, como no caso da acrania, poderá causar risco potencial e grave comprometimento psicológico da gestante.

Ou seja, partilhamos do entendimento que não se pode privilegiar a proteção a vida do feto, tendo em vista que esta está fada ao fracasso, em detrimento da saúde física e mental da gestante. O feto sem possibilidade de vida extra-uterina não pode receber o mesmo tratamento que uma vida plena e saudável recebe. Este entendimento tem se mostrado majoritário nas decisões das cortes constitucionais e supremas.

Em França, a decisão de se interromper a gravidez é também vista como algo inerente a autonomia privada e a liberdade da mulher, o que o prof. Jacques Robert vê como “lê droit de disposer de son corps”.

Ainda segundo o voto do rel. Min. Joaquim Barbosa nos autos do pedido de Habeas Corpus 84.025-6, STJ,:

“o feto anencefálico, mesmo estando biologicamente vivo, não tem proteção jurídica [...] A própria lei de transplantes de órgãos (Lei 9.434 de 1997), ao fixar como o momento da morte do ser humano o da morte encefálica reforça este argumento.

Conlcuo. O feto, desde a sua concepção até o momento em que se constatou clinicamente a sua irreversibilidade da anencefalia, era merecedor de tutela penal. Mas, a partir do momento em que se comprovou a sua inviabilidade, embora biologicamente vivo, deixou de ser amparado pelo art. 124 do Código Penal.”

Assim, a autorização judicial encontra plausibilidade mesmo nos casos de aborto eugênico, entendido aquele praticado quando as anomalias informem a inviabilidade da vida extra-uterina. Por vária razões aderimos à essa corrente, seja pela teoria da inexigibilidade de conduta adversa, seja pela preservação da saúde psíquica e mental da gestante ou ainda pela falta de amparo legal ao feto inviável.

Concluímos, portanto, que nas hipóteses de interrupção da gestação por critério eugênico, o médico necessita de autorização judicial, tanto se admitirmos que é uma espécie de aborto necessário como se adotarmos a inexigibilidade de outra conduta como tese, na medida em que se faz mister uma apreciação jurídica do caso, o qual não está previsto expressamente em lei. Não é qualquer anomalia fetal que induz à interrupção da gravidez, mas aquela que inviabiliza a vida extra-uterina. Nesse último caso, entendemos que o pedido de autorização deve ser concedido por todos os motivos acima expostos.