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Vergílio Ferreira: diferenças entre revisões

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Revisão das 19h00min de 15 de setembro de 2004

Vergílio Ferreira (1916-1996) é um escritor português, nascido em Melo, no distrito de Gouveia, uma aldeia com vista sobre a serra que tanto haveria de influenciar a sua obra. Professor de formação (veja-se a referência aos professores de "Manhã Submersa" e "Aparição"), foi, contudo, como escritor que mais se distinguiu. O seu nome continua actualmente associado à literatura a través da atribuição do Prémio Vergílio Ferreira.

A sua vasta obra, geralmente dividida em ficção (romance, conto), ensaio e diário, costuma ser agrupada em dois periodos literários: o Neo-Realismo e o Existencialismo. Considera-se que "Mudança" é a obra que marca a transição entre os dois periodos.


O Neo-realismo em Vergílio Ferreira


O Existencialismo em Vergílio Ferreira


Um autor fixa um tema. Mas esse tema,revelando, como revela,um interesse,revela sobretudo que foi só em torno dele que o artista pôde realizar-se como tal. (Vergílio Ferreira)

Encarado sob o prisma existencialista, o mundo é privado de sentido e, assim sendo, a temática da solidão em Vergílio Ferreira não é apenas um dos seus corolários mas também um último refúgio para a dor de viver e morrer sem explicação: a "solitudine", base latina da palavra solidão, revela já o estado de abandono, a vida isolada e sem protecção a que está votado o ser humano. A temática da solidão mostra, em algumas das suas nuances, a irracionalidade de acontecimentos de todos os dias e de situações completamente banais, de onde nasce o sentimento do Absurdo. É neste contexto que a obra surge como incarnação do drama existencial e que os autores, embrenhados ou simpatizantes do Existencialismo, reflectem o solitário quotidiano de sujeitos que se transcendem pela escrita e valorizam o interior das personagem em detrimento do "plot". Pode dizer-se que o verdadeiro assunto é a "paisagem de sentimentos" que se vislumbra nas suas obras, sendo a solidão a batuta de uma partitura que exprime o silêncio de quem não se integra e/ou de quem procura respostas.

Atravessa a sua obra o discurso quase milenário da solidão, como um dos aspectos mais profundos da condição humana, sempre acompanhado pelo silêncio: o silêncio adquire, assim, o valor de linguagem simbólica da solidão, exprimindo-se pela observação, pela escuta, pelo pensamento, pela meditação, pelo sonho e pela recusa deliberada de debitar palavras.

Perpassa, na obra deste autor, uma tentativa de elevar os problemas individuais à generalidade dos Homens verifica-se, igualmente, através de uma produção literária que não se refere a um "eu" que fala de si, mas um "EU" mais amplo que se refere a todos os Homens. Qualquer que seja a problemática tratada pelo este autor (inevitabilidade da morte, (in)existência de Deus, ausência de Valores, …) ela parte da reflexão sobre a questão do "eu" mas essa questionação avança, quase sempre, no sentido do homem ao Homem, como exemplifica o seguinte excerto de Conta-Corrente 4:


A velhice é assim um cemitério, antes de ela própria lá estar. Eu o penso agora, nesta tarde já fria, e me olho e olho ao longe o futuro que não tenho.


Como sabemos, as personagens que se sentem mais solitárias, nos romances de Vergílio Ferreira, são aquelas já no fim da vida, que perderam o amor, a esperança e procuram uma justificação para a vida que se gastou:


Estou só e cansado e a vida pesa tanto…


Não posso apresentar-me assim de mãos vazias perante a morte, a morte tem de matar alguam coisa, não tenho quase nada para matar…

Na obra de Vergílio Ferreira e, mais particularmente, nos seus "romances líricos", emerge, sempre renovado, um sentimento de solidão ("estou só", "estou bem só") que mergulha os protagonistas no silêncio ou na percepção de um silêncio universal. Em Vergílio Ferreira, o silêncio revela a impotência humana face à omnipotência de problemas quase sempre intangíveis, sendo uma reacção contra o absurdo da morte e da dúvida acerca de um Deus capaz de justificar essa absurdidade.

Um outro aspecto da sua obra é o do silêncio como marca mais visível da vivência social, da vivência matrimonial ou, se quisermos, da fragilidade da convivência quotidiana. Paulo, protagonista de "Para Sempre", revela que, na sua vida conjugal, comemos em silêncio, em silêncio ouvimos o tinir da louça e isso é como o anúncio ou aviso ou ameaça do que nos explode por dentro. (…) Sandra tem palavras banais.

De qualquer forma, verificamos que em Vergílio Ferreira, a consciência do "eu" e da sua solidão se manifestam através da visão, instrumento privilegiado de acesso ao pensamento reflexivo. As personagens de Vergílio Ferreira assumem um papel questionador, procurando esse sentido uma vez que o mundo aparecia (…) sob a forma de uma absurda estupidez .

Vergílio Ferreira, como nos revelam as entrelinhas da sua ficção romanesca, parece sentir a necessidade de extravasar as emoções, as suas agonias e os seus orgulhos de Homem, confinado aos seus limites e à sua concha, mas, sem dúvida, consciente da sua grandeza, usando, para tal, a voz das suas personagens. Como se percebe,subsiste uma perspectiva intimista e absolutamente pessoal, capazes de conjugar, num todo coerente, o trágico e o grotesco.

Por este motivo, Carlos Ceia observa que "o romance de Vergílio Ferreira é uma interrogação sobre a humanidade do homem" , havendo uma busca constante da verdade do Homem. Perante o estado de desespero dos protagonistas que não encontram respostas, assistimos também a tentativas de fuga que procuram vislumbrar um último raio de luz, condutor do Futuro e supressor do Passado. Todavia, há sempre uma esperança, por mais absurda que seja, quais protagonistas de En attendant Godot: um deus? Um projecto?

Os protagonistas de Vergílio Ferreira são, antes de mais, questionadores e problematizores do real: umas desvinculadas ou em vias de se desvincularem da vida; outras, à procura de uma Estrela Polar, guia no caminho ou à espera da resposta E se Deus não existisse?