Dimaquero
O Dimaquero (em latim: Dimachaerus; plural: Dimachaeri) era uma categoria (armaturae) de gladiador do Império Romano que empunhava duas espadas no combate. A sua existência é controversa, dado que, dentre a pluralidade de representações pictóricas de gladiadores, muito poucas são as que retratam combatentes munidos de duas espadas curtas (gládios) ou duas sicas de lâmina curva, ao estilo dos trácios.[1]
No entanto, a pospelo das dúvidas de alguns académicos, de acordo com Éric Teyssier, bem como doutros historiadores, o dimaquero não será meramente um gladiador, de uma qualquer outra classe, armado com duas espadas, mas antes uma categoria própria de gladiador, cuja denominação terá variado e evoluído ao longo dos tempos.[2]
Etimologia
[editar | editar código-fonte]O seu nome significa literalmente "o que leva duas espadas" ("di" - duas- + "machaerus"[3] - "macaira"; espada-).[4]
Equipamento
[editar | editar código-fonte]As representações dos dimaqueros e do seu respectivo equipamento variam muito conforme as fontes pictóricas, pelo que é difícil precisar, com rigor, a uniformidade com que andavam equipados.[5] Nalgumas fontes pictóricas, figuram com uma armadura mínima e ligeira, que se resumia ao bálteo (uma variedade de cinto, diferente do cingulum)[6], algumas faixas de tecido ou coiro (as chamadas fascies) e o ''subligaculum'' (o "subligar", uma espécie de calções curtos, usados para proteger os órgãos sexuais).[7] Noutras fontes, aparecem representados tão-somente com o subligar vestido e mais nada. Nestas representações dos dimaqueros, em que o usavam equipamento muito simples e ligeiro, geralmente nem sequer usavam capacete e combatem descalços.[8]
Noutras representações, todavia, surgem mais couraçados, equipados com lorigas, cotas de malha, grevas, com fascies nas pernas e coxas e até usavam elmos que ocultavam a cara inteira, à guisa daqueles com que os secutores se encasquetavam.[9]
É erróneo, portanto, propalar a ideia de que os dimaqueros tinham um equipamento uniforme ou semelhante entre si, porque não parece haver muita coincidência dentre as fontes históricas disponíveis, que aponte nesse sentido.[10]
O único elemento garantidamente emblemático e distintivo, que funciona como denominador comum, dentre as muitas variedades diferentes de dimaqueros, que vai assomando nas diferentes representações pictóricas, são as duas espadas curtas ou adagas, que dão nome a esta categoria de gladiador.[11]
O elemento mais característico destes gladiadores era o uso simultaneo dessas duas armas, comummente dois gladios ou duas adagas (se bem que também poderiam ser outras combinações de armas, por exemplo uma adaga e um arbelo, como depois se explicará infra), uma em cada mão. Isto permitia-lhes encetar ataques mais rápidos, mercê do peso reduzido do equipamento que levavam.[5]
Há autores, como Harold Johnston, que defendem que os dimaqueros não eram, deveras, uma categoria autónoma de gladiador, tratando-se em vez disso de uma sub-disciplina, uma "escola gladiatória", dentro das outras categorias de gladiadores ou até uma categoria mista, que conjugava diferentes disciplinas.[1]
No final do Império, surgiram muitas sub-disciplinas novas e inovadoras dentro das diferentes categorias de gladiadores, pelo que é possível que o dimaquero seja mais uma dentre elas.[12]
Estilo de combate
[editar | editar código-fonte]Os dimaqueros estavam fundamentalmente equipados para o combate à queima-roupa, o armamento de que dispunham não lhes permitia impor distanciamento sobre o adversário. [13]Empunhavam duas sicas ou gládios e empregavam um estilo de combate adaptado para, além de atacar, conseguirem defender-se com elas, visto que não estavam munidos de escudo com que se pudessem adargar. [14]
Pouco mais se sabe a respeito desta categoria gladiatória, no entanto, dada a dificuldade de combater brandindo duas espadas, infere-se que os dimaqueros deveriam ser ambidestros ou guerreiros muito habilidosos e escanados nas lides da arena, pelo que isso terá confluido para que fossem celebrados como se fossem uma categoria própria de gladiador.[14]
Adversários típicos
[editar | editar código-fonte]Eram inimigos dos secutores e reciários.[15] Dado o seu estilo de combate e de equipamento, os dimaqueros eram ideais para defrontar adversários de armadura pesada, sendo certo que também poderiam lidar com outros dimaqueros. [16]
Há registos expressivos de combates entre dimaqueros e hoplómacos, bem como contra uma outra categoria de gladiador chamada oplomaco, que, de acordo com Justo Lípsio, será, presuntivamente, uma putativa variante da categoria gladiatória dos samnitas.[17]
Louis Robert, epigrafista e numismata francês do século XX, coligiu, a partir da década de 40 do século passado, numerosos documentos epigráficos e iconográficos relativos aos gladiadores e ao mundo grego do Império Romano do Oriente.[13]
Segundo Louis Robert, o dimaquero era um gladiador "anti-reciário". Efectivamente, perlustrando o corpo documental da obra de Louis Robert, descobrem-se exemplares de baixos-relevos em que dimaqueros se digladiam contra reciários.[13][18]
Há autores que sustentam que o dimaquero era ideal para combater contra o reciário, porque as adagas são perfeitas para cortar a rede do reciário.[19] Há outros autores, todavia, que advogam que não se tratará propriamente de uma questão de o dimaquero ser o tipo de gladiador ideal para combater com o reciário, mas antes de ser o tipo de gladiador que torna os combates com os reciários mais espectaculares e empolgantes para o público.[18]
Os combates até à morte eram raros, porque pressupunham um prejuízo muito significativo para o lanista.[20] A solução passava, portanto, por limitar os golpes letais e em maximizar golpes mais sangrentos, mas benignos, a fim de exaltar o público, sem correr grandes riscos para os gladiadores. Por conseguinte, apostava-se mais no aspecto cortante das armas, do que no aspecto perfurante. As espadas curtas do dimaquero cumprem essa função na perfeição.[21]
História
[editar | editar código-fonte]Os dimaqueros conheceram maior popularidade durante os séculos II a IV a.C, gozando de fama de insídiosos (traiçoeiros), entre os romanos.[16] Os registos, tanto escritos como pictóricos, que chegaram até nós, a respeito desta categoria de gladiador, pecam por exiguos e ambiguos.[22] Foi encontrada uma inscrição em Lyon, França, que faz menção desta categoria de gladiador, se bem que grafada como dymacherus.[23]
Os três nomes dos dimaqueros
[editar | editar código-fonte]Segundo Artemidoro de Daldis, as donzelas romanas que sonhassem com gladiadores pressagiavam os seus futuros maridos[24]. Na sua obra, Onirocrítica (Tratado sobre a Interpretação dos Sonhos), Artemidoro correlaciona os diferentes tipos de armas e equipamentos gladiatórios com a personalidade e a aparência física do suposto futuro marido da donzela sonhadora. Dentre as categorias (armaturae) de gladiadores elencadas (trácio, mirmilão, secutor, reciário, eques, essedário e provocator) remata com o Dimaquero, no final do rol.[25] Esta é uma das poucas fontes escritas, com base nas quais é possível inferir que os dimaqueros se tratavam de uma categoria própria e autónoma de gladiador. [26] [27]
Sonhar com o dimaquero e com aquele a quem denominam de «arbelas», significa que a donzela se tornará numa bruxa-envenenadora (venéfica) ou volver-se-á perversa ou feia.
Atento o redigido por Artemidoro, o dimaquero e o arbelas serão a mesma categoria de gladiador.[28] A categoria gladiatória dos arbelas é um hapax legómenon, que só aparece nesta obra de Artemidoro. [29] Há alguns autores que revêem os arbelas em certas representações pictóricas, designadamente baixos-relevos, em que estão ilustrados gladiadores que empunham lâminas curvas em ambas as mãos, a defrontar-se. [30]Acontece, contudo, que há outros autores, ainda, que classificam os gladiadores dessas mesmas representações como scissores (lit. "aqueles que cortam; que retalham; que dilaceram"), que, por sua vez, é outra categoria controversa de gladiadores.[31]
Do que respeita à simbologia, é relevante mencionar que as alusões que Artemidoro faz às noções de "perversão" e de "fealdade" associadas ao dimaquero, correlacionam-se, também, com a simbologia associada ao scissor, por sinal uma figura funesta do imaginário romano.[32]
Ademais, atendendo à posição desposada pelo historiador Michael Carter, o arbelas está naturalmente relacionado com o arbelo um instrumento cortante semicircular, usado para curtir peles[33]. Por fim, o arbelas (e, por conseguinte, o dimaquero) é identificado num baixo-relevo que retrata um gladiador que empunha uma adaga numa mão e na outra leva uma manica (um guarda-braço) que remata numa lâmina em meia-lua, semelhante ao utensílio de curtir peles supra referido.[34]
Em derradeira análise e em sentido amplo, sem se ater a uma interpretação demasiado etimológica da palavra "dimaquero", é possível conceber que o dimaquero seja o mesmo que o arbelos e que o scissor, no sentido em que o dimaquero não será estritamente o que porta duas macairas (duas espadas/facas), mas antes duas lâminas.[35] Isto faz especial sentido, se repararmos que o termo "macaira", especialmente no mundo grecófono, de onde o étimo mákhaira proveio, antes de ter sido latinizado pelos romanos, pode conglobar um vasto leque de objectos cortantes, desde facas pequenas, como bisturis, até espadas curtas.[36][37][38]
Assim, desta forma, a noção de dimaquero já coincide com a de arbelas e de scissor, que brandiam a adaga e a manica com o arbelo na ponta.[39] Esta tese, da tripla nomenclatura dos dimaqueros, é corroborada por Georges Ville, na sua obra «A gladiatura do Ocidente».[40]
Cronologia
[editar | editar código-fonte]Éric Teyssier engendrou uma cronologia hipotética sobre a evolução das denominações desta categoria peculiar de gladiador. A categoria denominada scissor surge pouco depois da aparição das primeiras categorias de gladiadores (armaturae) técnicas (o provocador e o mirmilão), por torno de 25 a.C.[41]
É na primeira metade do século I a.C que aquilo a que se designava scissor se começou a chamar dimaquero. Por fim, com a emergência do fenómeno gladiatório no Império do Oriente, o dimaquero acabou por assumir a denominação de arbelas, já na segunda metade do século I a.C, mas apenas na parte oriental e grecófona do Império, na parte ocidental o nome dimaquero manteve-se.[42]
Segundo Teyssier, «todos os baixo-relevos do gladiador com a manica de arbelo, salvo o busto de Onésimo, provém da parte grecófona do Império» [2]..
Referências
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