Justificativa para o estado

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.

A justificativa do Estado é um tema central na teoria política, e sua compreensão varia entre diferentes ideologias e correntes de pensamento. A justificativa do Estado é o fundamento que sustenta a legitimidade da autoridade do governo sobre uma sociedade. Essa explicação não apenas aborda a razão pela qual o Estado deve existir, mas também delineia o papel que o governo deve desempenhar. Dessa forma, ela molda a visão de um Estado legítimo e influencia a percepção do que o governo pode ou não realizar.[1]

Não existe uma justificativa única e universalmente aceita para o Estado. Enquanto os anarquistas questionam a necessidade do Estado, argumentando que as sociedades humanas prosperariam melhor sem essa estrutura, as diversas ideologias políticas apresentam suas próprias justificativas, criando visões distintas do que constitui um Estado legítimo. A perspectiva de uma pessoa sobre o papel do governo muitas vezes serve como a espinha dorsal de sua ideologia política, resultando em divergências de opinião em várias questões políticas que podem ser rastreadas até a justificação do Estado. As constituições de diferentes países buscam codificar visões sobre os propósitos, poderes e formas de governo. No entanto, essas constituições frequentemente expressam esses princípios de maneira abstrata, deixando para leis, tribunais e ações específicas de políticos a tarefa de dar substância a esses conceitos. Em muitos casos, o discurso vago sobre os objetivos governamentais é traduzido em leis estatais específicas, estruturas burocráticas e ações de execução, moldando assim a operacionalização concreta desses princípios na prática governamental. Essa relação complexa entre a justificativa do Estado, ideologia política e implementação prática destaca a importância de compreender as raízes filosóficas e as implicações concretas desse conceito central na teoria política.[2]

Soberania transcendente e história[editar | editar código-fonte]

No contexto do feudalismo europeu, a preponderante justificação do Estado repousava na incipiente concepção do direito divino dos reis. Esta doutrina postulava que os monarcas derivavam sua autoridade diretamente de uma divindade, conferindo-lhes imunidade perante qualquer responsabilização por suas ações diante de instituições terrenas, como um parlamento. A legitimidade das terras sob jurisdição estatal estava intrinsecamente atrelada à posse pessoal do monarca. A confluência entre o direito divino e o princípio da primogenitura engendrou a teoria da monarquia hereditária nos estados-nação nos albores do período moderno, embora seja imperativo assinalar a necessidade de corroborar essas assertivas por meio de fontes acadêmicas. Contrastando com esse paradigma, o Sacro Império Romano não se encaixava na delimitação conceitual de Estado e não ostentava características de uma autêntica teocracia, mas sim de uma entidade federativa.[3]

Na China feudal, as concepções políticas estavam permeadas pela noção do "mandato do céu". Paralelo à teoria do direito divino, essa perspectiva situava o governante em uma esfera divina, atuando como intermediário entre o Céu e a Terra. Divergindo, entretanto, do direito divino dos reis, essa teoria não presumia uma vinculação permanente entre uma dinastia e o Estado. Fundamental para essa doutrina era a premissa de que o governante mantinha o mandato do céu apenas ao prover uma administração eficaz. Caso contrário, o céu retiraria seu aval, e qualquer agente que restabelecesse a ordem seria investido com um novo mandato. Este é um exemplar de teocracia, onde tanto o poder quanto a sabedoria para governar são concebidos como concessões de uma entidade superior, sujeitas à revogação pelo próprio céu. Esse conceito apresenta notáveis similitudes com as ideias inculcadas na tradição judaico-cristã, desde a demanda de Israel por "um rei como as nações" até a declaração de Cristo de que as autoridades contemporâneas detinham poder porque Deus o outorgara a elas. Um exemplo bíblico ilustrativo reside na narrativa do rei Nabucodonosor, que, segundo o livro de Daniel, governou o império babilônico por designação divina. Contudo, ao se deificar, submeteu-se a uma existência bovina por sete anos. A restauração somente ocorreu quando ele reconheceu novamente Deus como o verdadeiro soberano.[4] [5]

A noção e os tipos de justificativa para a existência do Estado ao longo da história humana são temas fundamentais na teoria política e refletem a diversidade de pensamento sobre a natureza e o propósito do governo. Diferentes correntes de pensamento ao longo dos séculos apresentaram diversas justificativas para a formação e a legitimidade do Estado. A noção de contrato social sugere que a formação do Estado é resultado de um acordo entre os indivíduos. Os membros da sociedade concordam em renunciar a certas liberdades em troca da proteção e benefícios proporcionados pelo governo. Exemplo: As teorias de filósofos como Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau exploram diferentes facetas do contrato social. No Direito Divino dos Reis, a autoridade do Estado é fundamentada na vontade divina. Os governantes são vistos como escolhidos por Deus, e sua autoridade é legitimada por essa origem divina. Exemplo: No feudalismo europeu, a teoria do direito divino dos reis era prevalente, sustentando que os monarcas derivavam sua autoridade diretamente de Deus. O Utilitarismo é baseado na busca da maximização da felicidade e minimização do sofrimento, a justificativa utilitarista para o Estado argumenta que sua existência é necessária para garantir o bem-estar máximo da sociedade. Por exemplo, as ideias de Jeremy Bentham e John Stuart Mill contribuíram para a fundamentação utilitarista do Estado.[6][7]

Em uma teocracia, a justificativa para o Estado reside na crença de que a autoridade política é divinamente ordenada. O governo é guiado por princípios religiosos e as leis são interpretadas a partir das escrituras sagradas. Exemplos: Regimes históricos como o do Antigo Egito, onde o faraó era considerado um intermediário entre os deuses e o povo. Presente na filosofia política chinesa, a ideia do Mandato do Céu argumenta que a autoridade do governante é legitimada pela aprovação celestial. Um líder perde o direito de governar se não mantiver a ordem e a justiça. Exemplo: A antiga China, onde a dinastia reinante era considerada como possuidora do Mandato do Céu. Durante o Iluminismo, filósofos como Montesquieu e Rousseau questionaram e reformularam as bases do governo, defendendo a ideia de que a existência do Estado deveria ser justificada pela razão e pelo bem comum. Exemplo: A influência dessas ideias na Revolução Francesa e em movimentos revolucionários em outros lugares.[7][8]

Glória cívica, contrato social e bens públicos[editar | editar código-fonte]

Na Itália renascentista, os teóricos contemporâneos viam o propósito principal das cidades-estado italianas menos abertamente monárquicas como a glória cívica.[9]

No período do século XVIII, normalmente chamado de Iluminismo, desenvolveu-se uma nova justificação do Estado europeu. A teoria do contrato social de Jean-Jacques Rousseau afirma que os governos retiram o seu poder dos governados, do seu povo “soberano” (geralmente um determinado grupo étnico, e os limites do Estado são legitimados teoricamente como terras desse povo, embora isso muitas vezes não seja, raramente exactamente, caso), que nenhuma pessoa deve ter poder absoluto e que um Estado legítimo é aquele que satisfaz as necessidades e desejos dos seus cidadãos. Estas incluem a segurança, a paz, o desenvolvimento económico e a resolução de conflitos. Além disso, o contrato social exige que um indivíduo abra mão de alguns dos seus direitos naturais, a fim de manter a ordem social através do Estado de direito. Eventualmente, o direito divino dos reis caiu em desuso e esta ideia ascendeu; formou a base da democracia moderna.[10]

Embora um sistema de mercado possa permitir que empresas com interesses próprios criem e distribuam muitos bens de forma óptima, existe uma classe de “bens colectivos” – ou “bens públicos” que não são produzidos adequadamente num sistema de mercado, tais como infra-estruturas ou serviços sociais. As forças de mercado podem não ser suficientes para incentivar indivíduos racionais a produzir adequadamente estes bens públicos; portanto, as instituições coercivas devem intervir e garantir a produção de tais bens públicos, seja assumindo a sua produção sob a alçada do Estado (por exemplo, a construção de estradas públicas) ou introduzindo forças de mercado para incentivar a sua produção no sector privado (por exemplo, fornecendo subsídios para veículos eléctricos).[11]

Ideologias políticas[editar | editar código-fonte]

É nessas questões que se podem encontrar as diferenças entre o conservadorismo, o socialismo, o liberalismo, o libertarianismo, o fascismo, especialmente este último, e outras ideologias políticas. Existem também duas ideologias – o anarquismo e o comunismo – que argumentam que a existência do Estado é, em última análise, injustificada e prejudicial. Por esta razão, o tipo de sociedade que pretendem estabelecer seria sem Estado. O anarquismo afirma que a comunidade daqueles que lutam para criar uma nova sociedade deve constituir ela própria uma sociedade sem Estado. O comunismo deseja substituir imediata ou eventualmente as comunidades, unidades e divisões que coisas como trabalho, dinheiro, câmbio, fronteiras, nações, governos, polícia, religião e raça criam pela comunidade universal possível quando essas coisas são substituídas.[12]

O socialismo de estado afirma que o grau em que um estado é da classe trabalhadora é o grau em que ele luta contra o governo, a classe, o trabalho e o governo. O grau em que vence tal luta é considerado o grau em que é comunista em vez de capitalista, socialista ou estatal. O anarco-capitalismo argumenta que os impostos são roubo, que o governo e a comunidade empresarial cúmplices na governação são crime organizado e equivalem ao submundo do crime, e que a defesa da vida e da propriedade é apenas mais uma indústria, que deve ser privatizada. O anarco-comunismo e o anarco-coletivismo dizem que os impostos, sendo roubo, são apenas propriedade, o que também é roubo, e que o estado é inerentemente capitalista e nunca resultará numa transição para o comunismo, e diz que aqueles que lutam contra o capitalismo e o estado para produzir uma sociedade comunista já devem formar tal comunidade. No entanto, a maioria dos pontos de vista concorda que a existência de algum tipo de governo é moralmente justificada. O que eles discordam é sobre o papel adequado e a forma adequada desse governo. [13]

Existem várias maneiras de conceber as diferenças entre essas diferentes visões políticas. Por exemplo, poder-se-ia perguntar em que áreas o governo deveria ter jurisdição, até que ponto pode intervir nessas áreas, ou mesmo o que constitui intervenção em primeiro lugar. Pode-se dizer que algumas instituições existem apenas porque o governo fornece a estrutura para a sua existência; por exemplo, os marxistas argumentam que a instituição da propriedade privada só existe devido ao governo. O debate de intervenção pode ser enquadrado em termos de governo grande versus governo pequeno.[14]

Ver também[editar | editar código-fonte]

Referências

  1. Schmidtz, David (1990). «Justifying the State». Ethics (1): 89–102. ISSN 0014-1704. Consultado em 21 de dezembro de 2023 
  2. Simmons, A. John (1999). «Justification and Legitimacy». Ethics (4): 739–771. ISSN 0014-1704. doi:10.1086/233944. Consultado em 21 de dezembro de 2023 
  3. «Divine right of kings | Definition, History, & Facts | Britannica». www.britannica.com (em inglês). Consultado em 21 de dezembro de 2023 
  4. «The Mandate of Heaven | World Civilization». courses.lumenlearning.com. Consultado em 21 de dezembro de 2023 
  5. Danielle. «Israel's theocratic government imperils all things secular - Freedom From Religion Foundation». ffrf.org (em inglês). Consultado em 21 de dezembro de 2023 
  6. «TEORIA POLÍTICA E DO ESTADO» 
  7. a b «Elementos de Teoria Geral do Estado» (PDF) 
  8. «Teoria Política» 
  9. Reus-Smit, Christian (2 November 2009). "4: Renaissance Italy". The Moral Purpose of the State: Culture, Social Identity, and Institutional Rationality in International Relations. Princeton Studies in International History and Politics. Princeton University Press (published 2009). p. 73. ISBN 9781400823253.
  10. Bristow, William (2023). Zalta, Edward N.; Nodelman, Uri, eds. «Enlightenment». Metaphysics Research Lab, Stanford University. Consultado em 21 de dezembro de 2023 
  11. Nelson, Richard R. (2003). «On the Complexities and Limits of Market Organization». Review of International Political Economy (4): 697–710. ISSN 0969-2290. Consultado em 21 de dezembro de 2023 
  12. «prole.info». web.archive.org. 12 de março de 2007. Consultado em 21 de dezembro de 2023 
  13. Tucker, Benjamin (1985) [1886]. State Socialism and Anarchism and Other Essays: Including the Attitude of Anarchism Toward Industrial Combinations and Why I Am an Anarchist (1st ed.). Colorado Springs: Ralph Myles Publisher. ISBN 9780879260156.
  14. Reus-Smit, Christian (2 November 2009). "4: Renaissance Italy". The Moral Purpose of the State: Culture, Social Identity, and Institutional Rationality in International Relations. Princeton Studies in International History and Politics. Princeton University Press (published 2009). p. 73. ISBN 9781400823253.