Direito divino dos reis

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O direito divino dos reis é uma doutrina política e religiosa segundo a qual o poder dos reis tem como fundamento a vontade de Deus.[1]
No Ocidente cristão, a doutrina desenvolveu-se a partir do cesaropapismo bizantino e consolidou-se na França durante o ancien régime, e também na Inglaterra, com base na crença de que o monarca reina por vontade de Deus — e não pela vontade de seus súbditos ou do parlamento ou da aristocracia ou de qualquer entidade terrena.
A Reforma protestante não modificou necessariamente essa doutrina, onde ela era adotada. Apenas destacou uma das suas consequências: o monarca por direito divino deveria obedecer a Deus, sob pena de perder sua legitimidade.
Na atualidade, a doutrina do direito divino subsiste em estados teocráticos. No Vaticano, justifica o poder do Papa. Nos califados, as concepções derivadas do Corão sobre fusão dos papéis espirituais e temporais — concentrados nas mãos do califa — também resultam em regimes legitimados pelo direito divino. No Japão, país conhecido como o império do sol nascente, o imperador é considerado como descendente da deusa Amaterasu, deusa xintoísta do sol, sendo que o disco solar está presente na bandeira do país.
A teoria do poder dos reis[editar | editar código-fonte]
O poder dos reis é proveniente da doutrina política e religiosa do absolutismo político. Como um termo genérico utilizado pelas ideias que justificam a autoridade e a legitimidade de um monarca, a doutrina sustenta que um rei deriva seu direito de governar da vontade divina, e não de qualquer autoridade temporal, nem mesmo da vontade de seus súditos. Escolhido por Deus, um monarca é responsável apenas por ele, e só deve ser responsabilizado pelos seus atos perante Deus. A doutrina implica que a deposição do rei ou a limitação do seu poder e as prerrogativas da coroa são atos contrários à vontade divina. No entanto, a doutrina não é uma teoria política prática, mas sim um aglomerado de ideias. As limitações práticas colocaram limites muito consideráveis do poder político e de autoridade dos monarcas, e com as prescrições teóricas do direito divino raramente foi traduzido literalmente para o absolutismo total. Essa teoria foi criada pelo bispo, teólogo francês Jacques Bossuet, consolidando-se no transcorrer do século XVII.
Frente aos poderes formidáveis dos barões feudais e do Papa, bem como os desafios impostos pela Reforma Protestante, vários pensadores europeus, de inclinação estatocrata, conceberam uma espécie de ‘terceira via’ entre o Império e o Papado. Defenderam uma teoria que afirmasse em caráter definitivo a autoridade e a legitimidade dos monarcas colocando-os acima da nobreza e do clero e dos protestantes.[2]
Na França[editar | editar código-fonte]
O direito divino dos reis foi defendido por Jean Bodin (1530-1596), teórico político francês, influenciado pelo calvinismo. Segundo ele, os príncipes soberanos (os reis) eram designados por Deus para governarem os outros homens. Jacques Bossuet defendeu essa teoria para fundamentar o absolutismo de Luís XIV de França, mas foi na Inglaterra protestante que a teoria do direito divino dos reis encontrou a sua mais completa aplicação e fundamentação teológica e jurídico-política, com o rei Jaime VI da Escócia e I de Inglaterra.
Na Inglaterra[editar | editar código-fonte]
A morte de Elizabeth I, em 1603, pôs fim à dinastia Tudor. O sucessor de Elizabeth foi Jaime I, rei da Escócia, filho de Maria Stuart. Jaime I fora católico por influência da mãe, mas tornara-se calvinista e puritano no trono da Escócia. Ao assumir a coroa de Inglaterra tornou-se anglicano.
A rainha Elizabeth I impusera aos seus súditos um juramento — Oath of Allegiance — em que se afirmava a sua absoluta supremacia temporal e espiritual. Em 1605, Jaime I altera o texto desse juramento, não negando expressamente ao Sumo Pontífice, ao então papa Paulo V, a qualidade de Vigário de Cristo em matéria espiritual, negando-se todavia a sua supremacia em assuntos temporais nos reinos cristãos e o direito de deposição dos monarcas heréticos. Para defender o novo texto de juramento, Jaime I mandou publicar uma Apologia, que foi dada à estampa em 14 de fevereiro de 1608.[3] Por ordem do Papa, o cardeal Roberto Belarmino publicou uma refutação,[4] sob o pseudónimo de Mateus Torti, que era um dos seus secretários. O rei Jaime I decide responder, mandando retocar a sua Apologia e juntar-lhe um longo prefácio — Prefácio monitório (1609). Desta vez, o livro trazia a identificação do seu autor, o rei Jaime I. O cardeal Belarmino respondeu no ano seguinte, também com o próprio nome, mas o Papa resolve sondar Francisco Suárez, S. J., professor na Universidade de Coimbra, que três anos depois publica um extenso livro: Defensio fidei catholicae adversus anglicanae sectae errores…, Coimbra, 1613 ("Defesa da fé católica contra os erros da seita anglicana").
Para o rei inglês, a sua autoridade régia era de "direito divino", pretendendo ter sido eleito pessoalmente por Deus para governar o seu povo. A sua realeza era absoluta, independente de qualquer poder ou autoridade da terra. O rei era assim uma espécie de lugar-tenente de Deus no seu reino, e só perante Deus teria que prestar contas do modo como exercera o seu poder.
A refutação de Suárez continha a doutrina católica, que se pode resumir do seguinte modo: o poder político dos reis não é recebido directamente de Deus; é o povo organizado em comunidade política que transmite o poder aos reis. O único poder que a Igreja Católica considera proveniente de Deus é o poder espiritual do Papa que, quando recebe as chaves de São Pedro, não considera que as receba da própria Igreja, mas de Cristo. A Igreja Católica, por meio dos cardeais eleitores, designa apenas a pessoa do sucessor de Pedro. No conceito católico, Cristo é quem lhe entrega o poder espiritual, não por um acto novo, mas em virtude do acto único em que as entregou a Pedro e a seus sucessores nas margens do lago de Tiberíades.
O livro de Francisco Suárez foi condenado e mandado queimar, tanto em Inglaterra como em França; em Inglaterra por ordem do Arcebispo de Cantuária; em França, por ordem do parlamento de Paris.
Mais tarde, com a Revolução Gloriosa, a Inglaterra foi a primeira a abandonar os princípios da doutrina do "direito divino dos reis" formulada pelo seu rei Jaime I, passando a colocar a autoridade do rei na dependência e sob o escrutínio de um parlamento (House of Commons), iniciando na Europa o período da chamada "moderna democracia representativa". A teoria do "direito divino dos reis" continuou, porém, a ter forte influência nas elites intelectuais e políticas de França até ao fim do "ancien régime". Em Portugal, os doutrinários regalistas adeptos do "direito divino dos reis", vieram também a ter decisiva influência no tempo do marquês de Pombal, quando os jesuítas foram expulsos.
O direito divino do monarca contradizia a doutrina da Igreja Católica — mesmo quando era defendido por príncipes como o Luís XIV, o Rei-Sol, ou por primeiros-ministros como o marquês de Pombal — porque negava o papel daquela Igreja como intermediária espiritual entre o homem comum e Deus, conferindo esse atributo ao monarca. No protestantismo, o principal traço dos reis é o de se considerarem vigários (ou representantes, em inglês deputy) de Deus na Terra.
No final do século XIX, J. N. Figgis popularizou o conceito aplicando-o a respeito de todo o ancien régime através de um livro intitulado The divine right of kings (O direito divino dos reis, 1896), confundindo mais do que esclarecendo.
Referências
- ↑ PIAZZA, Waldomiro O. Religiões da humanidade. São Paulo: Loyola, 2005.
- ↑ História por Voltaire Schilling. Política. A Teoria do Direito Divino dos Reis
- ↑ Triplice nodo triplex cuneus...., Londres, 1608.
- ↑ Responsio Matthaei Torti Presbyteri et Theologi Papiensis ad librum inscriptum Triplici nodo triplex cuneus Permissu superiorum..., Colónia, 1608.
Bibliografia[editar | editar código-fonte]
- Paulo Durão Alves, A Filosofia política de Suárez, Porto, Livraria tavares Martins, 1949, pp. 17–22.
- Heinrich A. Rommen, The Natural Law, Nova Iorque, Arno Press, 1979, pp. 70–109.
- Gonçalo Pistacchini Moita, "Francisco Suárez. Apresentação ao leitor do séc. XXI" in Francisco Suárez, De legibus..., Lisboa, Tribuna da História, 2004, pp. 40–44.
- Burgess, Glenn. "The Divine Right of Kings Reconsidered" The English Historical Review 107 No. 425 (October 1992:837-861).