Nitrenos

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Nitrenos são uma classe de intermediários altamente reativos que possuem um átomo de nitrogênio monovalente e neutro com uma estrutura HN ou RN. Também podem ser chamados de aminilenos e já receberam nomes como imidogenos e azenos. Podem existir na forma de singleto, contendo 4 elétrons de spins antiparalelos (pareados), ou como tripleto, contendo 2 elétrons de spins pareados e 2 de spins paralelos. Até o final da década de 60, o termo nitreno teve outro significado: era utilizado para descrever o análogo da nitrona cujo átomo de oxigênio ligado por ligação dupla é substituído por carbono ligado da mesma forma.[1]

Nitreno singleto(esquerda) e tripleto(direita)

A história dos nitrenos começou do final do século XIX, quando em 1891 Tiemann os propôs como intermediários no rearranjo de Lossen. Porém somente começaram a ser mais estudados a partir das décadas de 40 e 50.[2]

Estrutura[editar | editar código-fonte]

Os nitrenos assemelham-se estruturalmente aos carbenos, porém contêm um átomo de nitrogênio no lugar do carbono. Possuem duas ligações a menos que as aminas normais e dois pares de elétrons não-ligantes, totalizando seis elétrons de valência. Assim como os carbenos, os nitrenos são eletrófilos.[3] Apesar de serem muito reativos, cálculos ab initio mostram que nitrenos são mais estáveis que carbenos por uma diferença de entalpia de 25-26 kcal.mol-1 (104,7-108,8 kJ.mol-1).[4] Nitrenos ligados a grupos alquila já foram isolados por aprisionamento em matriz a 4 K, ao passo que quando ligados a grupos aromáticos, que são mais estáveis, foi possível isolá-los a 77 K.[5] O estado fundamental do nitrogênio apresenta energia 140 kcal inferior ao estado menos energético dos nitrenos, o que explica sua reatividade elevada.[6]

O tripleto é o estado fundamental para o composto HN e para a maioria dos nitrenos, porém podem ser gerados também singletos.[5] Os 4 elétrons pareados dos singletos resultam em sistema com spin igual a S = ½ + (-½) + ½ + (-½) = 0, sendo a multiplicidade mS = 2S + 1 = 1. Já no caso dos tripletos, há 2 elétrons pareados e 2 paralelos, gerando spin S = ½ + (-½) + ½ + ½ = 1 e multiplicidade mS = 2S + 1 = 3.[7] A hibridação dos orbitais do nitreno aproxima-se de sp, sendo que um par de elétrons ocupa o orbital sp enquanto que os outros ocupam os outros dois orbitais p (Figura 1).

Figura 1 - Comparação das formas singleto e tripleto dos nitrenos e carbenos.[8][9]

A energia envolvida na conversão singleto-tripleto (ΔHST) costuma ser maior nos nitrenos do que nos carbenos. Por exemplo, enquanto o fenilnitreno apresenta ΔHST de 17-18 kcal.mol−1, a conversão singleto-tripleto do fenilcarbeno a temperatura ambiente envolve menos de 2 kcal.mol−1.[8] Esta diferença pode ser explicada com base na teoria dos orbitais moleculares. O estado singleto do fenilcarbeno, de energia maior que o tripleto, é estabilizado por apresentar os dois elétrons não-ligantes no orbital molecular menos energético σ, reminiscente do orbital hibridado sp2, ao passo que a forma tripleto apresenta seus elétrons nos orbitais p e σ. Já o fenilnitreno não recebe este tipo de estabilização, pois ambos estados possuem seus elétrons em orbitais moleculares σ e π (Figura 2).

Figura 2 - Orbitais moleculares do nitreno NH; o orbital 1σ, não mostrado, corresponde ao orbital atômico 1s do nitrogênio.[10]

A estrutura eletrônica dos nitrenos influencia a estereoquímica das reações em que participam. Por exemplo, observa-se que adições de compostos EtOOC–N a duplas ligações C=C ocorrem de forma estereosseletiva somente quando singletos são utilizados.[5]

Formação[editar | editar código-fonte]

Nitrenos podem ser obtidos a partir de diversos compostos, em reações análogas às de formação dos carbenos.[3][5]

a) Quebra de ligações duplas: o principal método de formação de nitrenos é a decomposição térmica ou fotolítica de azidas ou de isocianatos.[3][5]

decomposição térmica ou fotolítica de azidas e de isocianatos
decomposição térmica ou fotolítica de azidas e de isocianatos

A fotólise direta de uma azida orgânica leva inicialmente à formação de um singleto, que muitas vezes é o estado excitado do tripleto. Alternativamente, nitrenos tripletos podem ser obtidos a partir de fotólise sensibilizada de azidas ou fotólise convencional em presença de iodeto de metila.[9]

b) O nitreno não-substituído HN pode ser obtido por fotólise ou eletrólise de NH3, N2H4 ou HN3.[5]

c) Eliminação: nitrenos podem ser obtidos por eliminação a partir de sulfonamidas em meio alcalino, bem como por fotólise de iminodibenzotiofenos N-substituídos.[5][11]

Formação de nitrenos por eliminação a partir de sulfonamidas e por fotólise de iminodibenzotiofenos N-substituídos
Formação de nitrenos por eliminação a partir de sulfonamidas e por fotólise de iminodibenzotiofenos N-substituídos

d) Processos eletroquímicos: intermediários reativos para transferência de nitrenos podem ser formados sob condições brandas utilizando-se anodo de platina.[12]

Formação de nitrenos por processos eletroquímicos.
Formação de nitrenos por processos eletroquímicos.

e) Catálise por metais: azidas podem interagir com metais e formar adutos M–N3R, que posteriormente eliminam N2 para formar complexos metal-imido/nitreno. Foi demonstrado que a forma bipiramidal é mais estável que a pseudo-tetraédrica para este complexo (Figura 3).[13]

Figura 3 - Diagrama qualitativo do orbital d para o complexo ferro-imido/nitreno nas formas pseudotetraédrica (esquerda) e bipiramidal (direita).[13]

Reações[editar | editar código-fonte]

O nitrogênio está presente em grande parte das moléculas essenciais aos processos biológicos, como DNA e proteínas, além de muitos medicamentos. Por essa razão, métodos sintéticos que introduzem o nitrogênio nas moléculas são de grande importância. Por muito tempo, os nitrenos foram considerados espécies muito reativas, porém pouco seletivas. Entretanto, avanços recentes na química de nitrenos tornaram-nos ferramentas úteis para a formação de ligações C–N graças a sua alta capacidade de rearranjo e sua grande capacidade de se inserir em várias ligações.[2]

Os trabalhos pioneiros abordaram a capacidade de inserção de nitrenos a ligações C-H e C=C, gerando C-H aminados e aziridenos, como abordado por Lwowski (1971) e Barton (1965).[14][15] Em virtude da alta reatividade dos intermediários de nitrenos, as primeiras reações envolvendo essas moléculas apresentaram baixa seletividade e rendimento. Porém, com utilização de complexos metálicos como catalisadores em reações envolvendo nitrenos, uma grande quantidade de metodologias mais eficientes for introduzida como apresentado por Evans (1994) e Müller (1996).[16][17]

a) Adição: Nitrenos, em especial, nitrenos acilo e sulfonilo, podem facilmente se inserir em outras ligações C-H, como o exemplo apresentado abaixo (Figura 4).

Figura 4 - Esquematização da reação de adição de nitreno em ligação C-X

Devido à onipresença de grupos amino em fármacos, mecanismos, muitos dos quais envolvendo metais catalíticos, vem sendo propostos. Ru, Rh e Pd tem demostrando resultados promissores na catálise de reações de amidação e aminação em uma série de reações que envolvem a formação de nitrenos intermediários.[2]

b) Inserção a ligações C=C: Grande atenção tem sido dada ao desenvolvimento de metodologias para a desfuncionalização seletiva de alcanos por via catalítica. Nessas transformações sintéticas duas ligações C-X são formadas em uma reação, originando uma variedade de produtos.[2]

O mecanismo de adição de nitrenos a olefinas foi sugerido por Skell e Woodworth em 1956 e 1959.[18][19] A hipótese por eles desenvolvida pode ser resumida da seguinte forma: (a) as espécies singleto podem reagir em uma única etapa gerando um anel de três membros (aziridina) de forma estéreo-específica, enquanto que, (b) as espécies tripleto necessariamente formam um intermediário dirradical, o qual possui barreiras energéticas de rotação menores sobre uma única ligação (Figura 5).[20]

Figura 5 - Descrição esquemática da adição de nitrenos a alcanos. (Modificado a partir de [20])

c) Rearranjos: Em virtude de rápidos rearranjos, nitrenos contendo grupos alquila em geral não dão origem às reações mencionadas acima (Figura 5). Tais rearranjos conformacionais são tão rápidos que é alta a possibilidade da reação se desenvolver sem a formação de nitrenos livres (Figura 6).[5]

Figura 6 - Descrição de reação conformacional sofrida por nitrenos alquila na qual a migração ocorre ao mesmo tempo em que o nitreno é formado. (Adaptado a partir de [5])

d) Abstração: segue abaixo um exemplo de reação de abstração (Figura 7):

Figura 7 - Descrição de reação envolvendo nitrenos que que resulta na extração do radical R. (Adaptado a partir de [5])

e) Dimerização: a dimerização da diamida N2H2 é um importante exemplo de reação de dimerização realizada por nitrenos. Nitrenos aril estão envolvidos, por exemplo, na formação de azobenzenos, como apresentado na Figura 8.

Figura 8 - Formação de azobenzeno a partir da dimerização de nitrenos aril. (Adaptado a partir de [5])

Íon nitrênio[editar | editar código-fonte]

Íons nitrênio são moléculas com nitrogênio divalente, positivamente carregado. Os nitrênios são isoeletrônicos ao metileno, e assim como os nitrenos são análagos aos carbenos, os ións nitrênio são análogos aos carbocátions. Os íons nitrênio podem ser encontrados ligados a dois radicais ou a um único átomo.[5] São caracterizados pela presença de um sexto elétron e um orbital p vacante. Da mesma forma que carbenos e nitrenos, os ións nitrênio também podem existir no estado singleto ou tripleto (Figura 9).

Figura 9 - Diferentes conformações do íon nitrênio. (Adaptado a partir de [5])

Ver também[editar | editar código-fonte]

Referências

  1. IUPAC. Compendium of Chemical Terminology (the "Gold Book"). 2. ed. McNaught, A.D.; Wilkinson, A. (ED). Oxford: Blackwell Scientific Publications, 1997. Disponível em: http://goldbook.iupac.org (atualizada em 2006). Acesso em: 07/12/13. ISBN 0-9678550-9-8. DOI: 10.1351/goldbook.
  2. a b c d Dequirez, G.; Pons, V.; Dauban, P. Nitrene chemistry in organic synthesis: still in its infancy? Angew. Chem. Int. Ed., v. 51, p. 7384-7395, 2012. DOI: 10.1002/anie.201201945.
  3. a b c Clayden, J.; Greeves, N.; Warren, S. Organic chemistry. 2.ed. New York: Oxford University Press, 2012.
  4. Kemnitz, C.R.; Karney, W.L.; Borden, W.T. Why are nitrenes more stable than carbenes? An ab initio study. J. Am. Chem. Soc., v. 120, n. 14, p. 3499-3503, 1998. DOI: 10.1021/ja973935x
  5. a b c d e f g h i j k l m Smith, M.B.; March, J. March’s advanced organic chemistry: reaction, mechanisms, and structure. 6.ed. New Jersey: Wiley-Interscience, 2007
  6. Belloli, R. Nitrenes. J. Chem. Educ., v. 48, n. 7, p. 422-426, 1971.
  7. Anslyn, E. V.; Dougherty, D. A. Modern Physical Organic Chemistry. Sausalito: University Science Books, 2006
  8. a b c Platz, M. S. Comparison of phenylcarbene and phenylnitrene. Acc. Chem. Res., v. 28, n. 12, p. 487-492, 1995
  9. a b Bucher, G. Photochemical reactivity of azides. In: Horspool, W.; Lenci, F. (ED). CRC handbook of organic photochemistry and photobiology. 2.ed. Boca Raton: CRC Press, 2004.
  10. Gritsan, N.; Platz, M. Photochemistry of azides: the azide/nitrene interface. Bräse, S.; Banert, K. (ED). Organic azides: syntheses and applications. Chippenham: John Wiley & Sons, Ltd., 2010.
  11. Morita, H.; Tatami, A.; Maeda, T.; Kim, B. J.; Kawashima, W.; Yoshimura, T.; Abe, H.; Akasaka, T. Generation of nitrene by the photolysis of N-substituted iminodibenzothiophene. J. Org. Chem., v. 73, n. 18, p. 7159-7163, 2008. DOI: 10.1021/jo800604t.
  12. 12. Siu, T.; Picard, C. J.; Yudin, A. K. Development of electrochemical processes for nitrene generation and transfer. J. Org. Chem., v. 70, n. 3, p. 932-937, 2005. DOI: 10.1021/jo048591p
  13. a b Mankad, N. P.; Müller, P.; Peters, J. C. Catalytic N-N coupling of aryl azides to yield azoarenes via trigonal bipyramid iron-nitrene intermediates. J. Am. Chem. Soc., v. 132, n. 12, p. 4083-4085, 2010. DOI: 10.1021/ja910224c.
  14. Lwowski, W. Heterocyclics from azides and nitrenes. Transactions of the New York Academy of Sciences, v. 33, n. 2, p. 259-266, 1971. DOI: 10.1111/j.2164-0947.1971.tb02591.x
  15. Barton, D. H. R., Starratt, A. N., J. Am. Chem. Soc., p. 2444, 1965
  16. Evans, D. A.; Faul, M. M.; Bilodeau, M. T. J. Am. Chem. Soc., v. 166, p. 2742, 1994.
  17. Müller, P., Baud, C. Jacquier, Y. Tetrahedron, v. 52, p. 1543, 1996.
  18. Dauban 2012
  19. Skell, P. S., Woodworth, R. C.; J. Am. Soc., v. 78, p. 4496, 1956.
  20. a b Woodworth, R. C.; Skell, P. S. j. Am. Soc., v. 81, 3383, 1959.