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Na sucessão de resistências fiscais aos tributos militares no Rio de Janeiro colonial, as reivindicações presentes na revolta da cachaça em 1660, se inserem na reforma de parte do contingente da infantaria local a fim de se reduzir os gastos com a defesa pagos pela população local. Nesse movimento, a injustiça está identificada não apenas com um governador que desvia para seu patrimônio pessoal o dinheiro arrecadado com os impostos militares, mas que atropela a jurisdição real ao suspender a imposição destinada à armada (ainda mais querendo trocar o direito sobre o vinho por uma finta geral).

A prática de auto-gestão das finanças da guerra exercitada durante os primeiros séculos da colonização e nos períodos de ameaça de invasão ou ataque estrangeiro acabam sedimentando uma noção específica sobre este tipo de imposto, que deveria ser aprovado, gasto e administrado pela comunidade organizada, e suas receitas utilizadas na própria defesa. Fora disto o tributo passava a se constituir num recurso injusto.

Compreende-se, em decorrência, as resistências e protestos que iriam causar a forma adotada de rateamento das despesas surgidas com a defesa das praças coloniais para as guerras além da fronteira do Rio de Janeiro. A sustentação militar da colônia representaria um pesado custo nas vidas e nas fazendas - para os colonos espalhados pela América . O esforço de guerra para a sua manutenção envolve todas as capitanias coloniais, mas é encabeçada pelo Rio de Janeiro. As piores previsões, iriam se confirmar, de que se tornaria um sorvedouro "de gente e dinheiro", fonte de "grandes despesas".(ALMEIDA, 1973, p. 139)

Reclama-se de desabastecimento uma vez que os víveres são desviados para o sul, aumento dos preços e gastos sem proveito.(ALMEIDA, 1973, pp. 139-146; COARACY, 1965, pp. 202-244) O mesmo se verifica com as inesgotáveis remessas de tropas para o sul às custas de recrutamentos sempre penosos.(COARACY, 1965, p. 214)

A situação se agrava mais ainda com a impossibilidade dos negociantes do Rio comercializarem diretamente com a as outras praças coloniais, em função das restrições colocadas pelo seu governador, de quem se suspeitava acertara acordos com o governador de Buenos Aires.(COARACY, 1965, p. 215)

A situação beira a opressão com a fiscalidade gravando o comércio de aguardente.(COARACY, 1965, p. 215) As reclamações dos moradores do Rio que até ali sustentavam sozinhos aquelas pesadas despesas viriam a ser parcialmente atendidas, quando o Conselho Ultramarino reparte 20.000 cruzados necessários para a manutenção da Colônia com Bahia (responsável por 10.000 cruzados) e Pernambuco (5.000 cruzados), cabendo ao Rio os restantes 5.000 cruzados.(ALMEIDA, 1973, p. 140)

Requeridos os recursos, caberia aos governadores acertarem com a câmara o melhor modo de arrecadá-los, com suavidade mas também com alguma brevidade. Neste processo de levantamento de fundos para gastos militares, as recomendações do Conselho Ultramarino falavam da possibilidade de recorrer aos efeitos da Fazenda real, provisoriamente.(ALMEIDA, 1973, p. 140)

Os recrutamentos, envio de gente, a necessidade de recursos iriam abalar as condições de vida nas principais cidades coloniais durante as guerras ultramarinas. Na Bahia e Pernambuco os rendimentos dos contratos do azeite de peixe e do sal foram tributados mas, a fim de aliviar a sobrecarga fiscal sobre os moradores, a Coroa autorizou que dos recursos fosse destinada à Colônia.(ALMEIDA, 1973, p. 141)

O Rio permaneceria sob pesadas exigências fiscais, tributando-se a aguardente e o tabaco e, posteriormente, colocado sob contrato que deveria atender aquelas contas.(ALMEIDA, 1973, p. 141) Ao lado do acúmulo de contribuições que recaiam sobre o Rio, os protestos e resistências vão se acumulando. Oficiais da câmara são repreendidos pelo rei e, em outra ocasião, chegam a pedir a suspensão das contribuições.(ALMEIDA, 1973, p. 141-2)

O Rio de Janeiro seria, a partir dos primeiros anos de sua criação, a fonte de receitas para sustentar a colonia, sendo decisivo o seu interesse e o dos comerciantes locais, assim como os da metrópole, nos contatos com Buenos Aires, no acesso a prata peruana e aos couros uruguaios.(ALMEIDA, 1973, p. 145)

As reações diante da forma como a Metrópole estruturara o financiamento da defesa de seus territórios coloniais não tardaria a demonstrar seus limites. Ao longo do século XVII procuraria-se meios tanto mais suaves, mas grande parte das receitas da Colônia continuaria a pesar sobre o Rio de Janeiro, até porque ficaria sob jurisdição imediata do governador do Rio.(COARACY, 1965, p. 244)Até então, nenhuma das inquietações que transcorreram na história colonial do Rio de Janeiro até aquela data, superou a crise política que explodiu na década de 1660.

Nos primeiros dias de novembro de 1660, um grupo de proprietários de terras atravessou a baía de Guanabara e reuniu uma multidão no Paço da cidade. Milhares de pessoas ocuparam a câmara, destituíram seus edis e depuseram o governador da capitania, que então se encontrava em viagem. Pelas ruas gritavam por "Liberdade", dispararam a tocar o sino da câmara, dirigiram palavras de ódio às autoridades e aclamaram "Vivas a Vossa Majestade", que reafirmaram como seu Rei e Senhor. Em meio aos tumultos, casas de pessoas identificadas com o governo deposto foram saqueadas, padres jesuítas e beneditinos atacados e ofendidos pelo povo armado e os oficiais da justiça real constrangidos a aprovar por meios legais medidas de reforma imediata. Ao longo dos cinco meses seguintes vassalos sediciosos controlariam nada menos do que a cidade considerada a jóia mais preciosa da Coroa imperial.

A profundidade da crise esteve garantida pelo adensamento de descontentamentos que vinham se acumulando, tornando a cidade um verdadeiro barril de pólvora. O Rio de Janeiro representava então um dos principais pólos econômicos de todo o Império. Na segunda metade do século XVII, a região detinha uma posição privilegiada de grande produtora e exportadora de açúcar e consumidora de escravos, com seus comerciantes atuando intensamente nas trocas do Atlântico sul onde estavam envolvidos no tráfico negreiro com a África e no acesso à prata das zonas espanholas na América através do rio da Prata.(ALENCASTRO, 2000) A despeito de tudo, seus moradores viviam achacados com pesadas taxações a que eram obrigados a pagar para manutenção das tropas de defesa. Para piorar a situação, como apontamos, esses recursos, depois de arrecadados, eram com freqüência desviados para outras finalidades, aumentando ainda mais a tensão entre autoridades fiscais e os colonos.(FIGUEIREDO, 1996, p. 21)

Essa insatisfação rebentou justamente quando se tentou dar início à cobrança de uma nova taxa sobre todos os moradores da cidade para atender aos gastos com sua defesa. Além da denúncia de tirania, outras sérias acusações contra o governador ajudaram ao movimento pela sua deposição. Pesavam contra Salvador de Sá Correia e Benevides denúncias de despotismo, de preencher os altos postos da capitania com seus parentes, de agir sem possuir jurisdição em diversas esferas legais e, ainda, de coibir o direito que possuíam os colonos de representação direta ao rei. Outra forte divergência decorria da política do governador de aproximação com a Companhia de Jesus na defesa dos índios contra a escravidão, o que feria os interesses dos grupos econômicos desejosos na utilização dessa fonte de mão de obra. Na área fiscal, a figura odiosa do provedor Pedro de Souza Pereira e seus despautérios, ilustrada anteriormente, provocava toda a sorte de descontentamento de grupos econômicos significativos da região.

Nos últimos meses de 1660, os tributos lançados pelo governador Salvador Correa de Sá e Benevides inauguram uma sucessão de protestos. Em outubro, diante da fraca receita com um imposto duramente negociado com a câmara, o governador arbitrariamente lança um outro, suplementar, desta vez sem consulta. Esse imposto direto previa uma finta geral para a população e um taxa predial para os moradores da rua Direita e arredores. Considerado sem legitimidade para aplicar tal finta — um direito apenas dos monarcas devidamente escorados nas reuniões das Côrtes — e já desgastado sob uma conjuntura econômica crítica, as insatisfações com o governador aumentam. Acusavam-no ainda da elevação de vários outros tributos, como o subsídio dos vinhos, a má distribuição no pagamento do donativo e a ampliação desnecessária do contingente da infantaria de 350 para 500 homens. O protesto possuía outros ingredientes decisivos como a prepotência deste governador, os desgastes causados pela sua vinculação com os jesuítas contra a escravidão indígena, a conjuntura de baixa nos preços do açúcar, aliada à epidemia e mortes de escravos e a forte oposição de grupos políticos alijados do poder.

Com a partida de Salvador Côrrea para São Paulo em outubro de 1660, a fim de reconhecer a situação das minas de ouro em território paulista, Tomé Correia de Alvarenga permanece governando em seu lugar. Poucos dias depois é realizada a primeira manifestação entre os descontentes na ponta do Bravo, na freguesia de São Gonçalo, sob a liderança de Jerônimo Barbalho. Reclamam das vexações causadas por Salvador Correia e de arbitrariedades contra os oficiais da câmara.

Apresentam em 2 de novembro um protesto formal a Tomé Correia de Alvarenga com vários desses capítulos e outras exigências, entre elas a redução do número de soldados e a abolição imediata da finta. O governador interino envia procuradores para conversações com os insatisfeitos. Diante da dificuldade de acordo, líderes da revolta cruzam a Baia de Guanabara e, atraindo uma multidão, tomam às 5 da manhã o prédio da câmara. Destituem o governador Salvador Corrêa de seu cargo retomando o tema dos capítulos: "magoados, queixosos e oprimidos das vexações, tiranias, tributos, fintas, pedidos, destruições de fazendas, que lhe havia feito o Governador Salvador Corrêa de Sá e Benavides".(FAZENDA, 1920, p. 497) Diante dos vereadores e tabeliães, lavram um auto removendo de seus cargos o governador e vereadores. Nomeiam o fidalgo e cavaleiro da Ordem de Cristo, capitão Agostinho Barbalho Bezerra, filho do antigo governador Luis Barbalho, que, reticente em aceitar tal incumbência, é ameaçado de morte pela chusma caso não assumisse, "para que governasse na guerra como no político, até Sua Majestade prover o que mais fosse de seu real serviço".(FAZENDA, 1920, p. 497)

A turba substitui todas as autoridades locais por elementos de sua confiança, entre os homens bons da cidade. A primeira medida do governo então instalado é a revisão das exigências fiscais que motivaram a revolta: "que por nenhum acontecimento consentissem os ditos oficiais da Camara neste povo, tributos nem fintas sem expressa provisão de Sua Majestade, por evitar os tumultos do povo e alterações, que esta cidade tem experimentado".(FAZENDA, 1920, p. 499)

O desgate motivado pela ação dos contratadores não ficaria ausente da Revolta da Cachaça. As dívidas acumuladas com figuram entre as principais razões do movimento, além dos achaques a que submetiam os senhores de engenho da região comprando seu açúcar abaixo do preço. Nos "Capítulos" encaminhados pelos amotinados ao governador interino, exigem desde o 3º item que "se saiba e se apure o que se deve a fazenda real dos contratos passados e dos mais efeitos e se cobre logo para socorro da praça". Não estavam apenas interessados em defender as rendas que cabiam ao rei, mas queriam evitar que, com a inadimplência dos contratadores, os colonos fossem achacados por fintas e impostos necessários ao "socorro do presídio". No entanto, algumas medidas titubeantes do novo governador, já em seus primeiros dias, incomodam a massa organizada e ansiosa que, logo, também o depõe a 8 de fevereiro de 1661, passando a câmara a exercer o governo. A revolta dura até abril de 1661, com o governador Salvador Corrêa de Sá e Benevides comandando a resistência em São Paulo, onde permanece. A repressão dali organizada desarticula o movimento, sentencia vários envolvidos à prisão e degrêdo e decapita Jerônimo Barbalho (também filho de Luiz Barbalho Bezerra e irmão de Agostinho), ficando sua cabeça exposta na cidade. Quase uma dezena de presos foi enviada para as masmorras onde apodreceriam por muitos anos à espera de julgamento.(BOXER, 1973, pp. 124-167; FIGUEIREDO, 1996, p. 1-58)

A dramaticidade desse protesto e a violência das punições não acalmam o quadro tenso das disputas entre as elites coloniais e as exigências financeiras do reino; tampouco menos amargo ficam as várias formas do monopólio praticadas na economia da América portuguesa. Poucos anos depois, em 1666, uma longa petição ao rei dos moradores do Rio continuam protestava contra a sobrecarga fiscal, uma situação considerada injusta do Rei para com aqueles que até ali já haviam acudido inúmeras vezes aas necessidades do Império (guerra contra os holandeses, restauração de Angola). Desta vez, a queixa deriva das dificuldades de cumprir o total de 26 mil cruzados por ano (para esse montante aceitarase taxas adicionais de 4% sobre o açúcar e 2% sobre as importações) que vinham sendo cobradas desde 1662, com duração prevista para dezesseis anos, para contribuição das despesas da paz com a Holanda e dote da Infanta D. Catarina que casava com Carlos II da Inglaterra. As condições para perpetuação do imposto eram insustentáveis, com os moradores "tão perdidos e impossibilitados, que não podem acudir às necessidades de suas casas e famílias",(COARACY, 1965, p. 178) pedindo ao Rei a suspensão desta contribuição voluntária.

Inclemente, o máximo que as negociações com a Coroa alcançaram foi a dilatação do prazo para 24 anos e o lançamento de um imposto de 5% sobre as rendas provenientes de aluguéis, propriedades, escravos e produtos da terra.(COARACY, 1965, p. 178) A mesma câmara, em 1671, dirigindo-se ao Rei, implora que seja suspensa a contribuição de 400.000 réis, imposta no ano anterior para os serviços das missões religiosas nas conquistas ultramarinas. As reclamações iam se acumulando pois, além da argumentação de pobreza de seus moradores, alegam que estes já conviviam com dificuldades até para pagar o donativo para o dote.(COARACY, 1965, p. 188-9.)



Bibliografia

ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. ALMEIDA, Luís Ferrand A colonia do Sacramento na época da sucessão da Espanha. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1973. BOXER, C.R. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola, 1602-1686. São Paulo: Companhia Editôra Nacional-EDUSP, 1973 COARACY, Vivaldo. O Rio de Janeiro no século XVII. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1965, p 148. FAZENDA, Vieira. Antiqualhas e memórias do Rio de Janeiro. Revista do IHBG, t. 88, v. 142, 1920. FIGUEIREDO, Luciano Raposo de A. Revoltas, fiscalidade e identidade na América portuguesa: Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais, 1641-1761. São Paulo: USP, 1996.