Bugiada e Mouriscada do São João de Sobrado

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A Festa de São João de Sobrado, também conhecida por Bugiada e Mouriscada de Sobrado, é uma manifestação popular tradicional que se realiza anualmente, no dia 24 de junho, sob a invocação de São João, na vila de Sobrado, município de Valongo.[1]

É uma tradição antiquíssima, que se desenrola sob a forma de uma luta entre mouros e cristãos, designados localmente por Mourisqueiros e Bugios, respectivamente.

A Bugiada e Mouriscada é uma representação teatral da lenda. Desenrola-se na rua e os participantes, que habitualmente ultrapassam as sete centenas, são habitantes ou naturais de Sobrado. É, hoje, reconhecida como um riquíssimo fenómeno antropológico e etnográfico e uma das mais importantes festividades de Portugal.

A Lenda[editar | editar código-fonte]

Conta-se que habitavam na serra de Cucamacuca (actual Serra de Santa Justa) mouros (mourisqueiros), provavelmente na extração do ouro, tendo a filha do Reimoeiro ficado gravemente doente.

O reimoeiro chamou todos os sábios e curandeiros da região para curarem a sua filha, mas em vão. A jovem não melhorava. O líder mourisco começava a impacientar-se, quando ouviu falar de uma tribo cristã que habitava ali perto (em Sobrado) e que tinha uma imagem milagrosa (S. João) — eram os bugios. A imagem já havia noutra ocasião curado a filha do Velho da Bugiada.

O Reimoeiro, em desespero de causa pediu a imagem emprestada aos bugios, que acederem ao pedido.

A princesa moura é curada. O reimoeiro organiza então grandes festas em honra de S. João, mas recusa-se a devolver a imagem aos bugios. Mas a ingratidão do Reimoeiro vai mais longe, em almoço por ele oferecido, em jeito de afronta oferece aos bugios os restos do repasto.

O caldo estava entornado. Os bugios reclamam a imagem como sua, os mouros recusam-se a dá-la. Estala a guerra. São trocadas mensagens entre as duas tribos para se fazer a paz. Nada feito. Os Senhores doutores de Lei (advogados), também intervêm e debatem as leis entre eles. Não chegam a acordo, trocando-se tiros entre os dois palanques (castelos).

O ambiente aquece. O Reimoeiro, farto do impasse em que se tornou a guerra, reúne o exército e toma o palanque cristão (bugio) de assalto prendendo o Velho (líder dos bugios).

Tudo parece perdido, sem a imagem e com o velho preso, a tribo cristã que pecou apenas pela sua generosidade, vê o seu fim perto, às mãos mouras. O líder cristão é levado e só um milagre o poderia salvar a ele e ao seu povo da ruína.

Mas, eis que um reduto de bugios fieis ao rei surge, entre a multidão, trazem algo, uma serpe gigantesca que assusta os mouros (fugindo deixando o Velho da Bugiada para trás). Restitui-se a ordem inicial. Como sempre o bem triunfa.


Referências Históricas[editar | editar código-fonte]

A Festa de São João de Sobrado tem por detrás uma lenda transmitida oralmente de geração em geração, que remontaria ao tempo em que os muçulmanos ocuparam boa parte da Península Ibérica. Essa lenda dá conta da disputa de uma imagem milagrosa de São João, detida pelos bugios, a que os mourisqueiros pretenderiam também recorrer para salvar a filha do seu rei.

Desconhece-se quando se principiaram estas festas sabendo-se que deverão ter ocorrido após 1758, pois nas memórias paroquiais não existe qualquer menção a esta festa. poderá ter se principiado no séc. XVIII ou então no século seguinte, mas sem documentação que comprove estas afirmações.

As mais antigas referências conhecidas sobre esta festa são as seguintes:

Bugiada/ Mouriscada na obra: Etnografia Portuguesa, de José leite Vasconcelos, no vol. VIII (p.409)

“O S. João na freguesia de Sobrado, concelho de Valongo (apontamento enviado por Jerónimo Alves Barbosa, do Porto, em 8 de Novembro de 1882):

No dia 24 de Junho de todos os anos é este santo festejado na igreja paroquial da freguesia. Concorre ali gente en número espantoso, e até de grandes distâncias, mais com o propósito de presenciar o que os ‘moços’ aí fazem. Primeiramente dão um espectáculo a que chamam a ‘dança do Menino’, onde se apresentam vestidos de uma maneira digna de apreço. As falas são em verso. Terminada esta, começa imediatamente outra. Arranjam para ali doze ou dezasseis jumentos e aprestos de lavoura, como arados, grades, etc., com que principiam a lavrar. De resto, tendo praticado tudo como se fosse num campo, principiam a semear. Montam então os jumentos (mas voltados para a cauda do animal) e uns espalham pelo solo areia e excrementos de cabra, e outros fingem escrever em um papel, servindo de tinteiro o cu do animal. O final desta brincadeira sobressai com muito fogo de artifício e música. E a retirada das caravanas efectua-se num regozijo indescritível, tocando violas, dançando e cantando até suas casas”


Música Gorada

Na aldeia pitoresca de Sobrado

Terra aonde se cria o melhor gado

E já deu bastantes brasileiros

Tem hoje denodados Mourisqueiros.

No dia do Baptista S. João

Fazem eles ali grande função

Correm todos em vários desafios

Os Mourisqueiros e garbos Bugios

Os doidos imitando no correr

(e não faltam irmãos para ir ver)

A saltar e pullar por entre a praça

E os doidos socegados achando-lhes graça

(…)”

Versos de José Alves dos Reis, folheto volante de 10 pp,, 1896

A festa em 1913

Notícia de “O Vallonguense”, nº1, de 29 de Junho de 1913:

“Realizou-se na passada terça-feira a festa de S. João Baptista. Houve as tradicionais danças dos ‘Mouriscos e Bugios’ sempre muito engraçadas e apimentadas. Não há meio de tirar esta antiga costumeira, tão enraizada está nos hábitos deste povo a quem chamam tolo; eu penso porém que mais tolos são aqueles que atravessando montes e vales o vêm apreciar. Tolos não, finos é que eles são, porque com suas artes pitorescas chamam grande número de forasteiros à sua terra”.

A Bugiada e Mouriscada[editar | editar código-fonte]

Esta manifestação desenrola-se sob a forma de danças. Os bugios, sob a condução do Velho da Bugiada, vão mascarados, vestidos de roupas garridas, levam penachos de fitas na cabeça, guizos por todo o corpo e castanholas nas mãos. São, habitualmente, em número de várias centenas, de todas as idades, e fazem uma enorme algazarra. São o lado folião e telúrico da festa. Os mourisqueiros são comandados pelo Reimoeiro. São rapazes solteiros, em número de algumas dezenas. Usam um fato colorido e listado, na cabeça levam uma barretina cilíndrica, ladeada de espelhos e encimada de plumas, usam polainas e, na mão direita, transportam uma espada. São o lado organizado, apolíneo, militar, da festa.

Depois das danças, que têm início pela manhã, a "Festa da Bugiada" atinge o seu clímax ao fim da tarde, quando cada uma das formações sobe ao respectivo castelo e tem início a guerra, acompanhada, em simultâneo, de trocas de "embaixadas" e de "negociações diplomáticas". Não havendo acordo, os mourisqueiros atacam o castelo bugio e levam o seu Velho preso. Quando tudo parece terminado, os bugios recorrem a uma gigantesca serpe, aparecem de rompante aos mourisqueiros, libertam o seu chefe e cada formação vai fazer a respectiva dança final em seu sítio.

A Bugiada não é, porém, constituída apenas pelo que se passa em torno da tensão entre bugios e mourisqueiros. De facto, há três outros tipos de manifestações populares tradicionais que se entremeiam nesta festa. Uma delas é o conjunto de cenas de crítica da vida local e nacional, típicas da época carnavalesca. Outra é o ritual da lavra da praça, em que as operações de lavrar, gradar e semear são feitas na sua ordem inversa. Finalmente, a mais espectacular é a chamada Dança do Cego ou Sapateirada - uma cena curiosíssima de teatro popular, em que se evoca a perturbação causada numa comunidade local pela chegada de um cego que viaja de terra em terra, guiado pelo seu moço.

Figuras da Festa[editar | editar código-fonte]

Velho da Bugiada – A par do Reimoeiro, o Velho da Bugiada é uma figura central da Festa de Sobrado, cabendo-lhe não apenas o papel de dirigir a Bugiada e suas danças, mas também de realizar uma série de outras tarefas, relacionadas com a construção dos Castelos, com o convite aos advogados e ao cavaleiro que vai correr as embaixadas, a designação dos que vão executar os diferentes papeis nos ‘serviços’ da tarde, relacionados com os trabalhos rituais de cunho agrícola e com a Dança do Cego. É um posto muito pretendido e de elevada carga simbólica.

Bugio – Integrante da Bugiada. Não existe controlo relativamente a quem pode aceder ao estatuto de Bugio, havendo na Bugiada novos, idosos e crianças, homens e mulheres. Em épocas passadas, até aos anos 60-70 do século passado, era socialmente mal visto as mulheres irem de Bugio. Mas elas chegavam a participar, procurando disfarçar a sua condição. Usam como traje uma calça terminada em folhos, um gibão e uma capa que vai de manhã sobre os ombros e, de tarde, sob um dos braços. Na cabeça, levam um chapeu de abas largas e um penacho de fitas multicolores. Não se pode olvidar um importante elemento de identificação do bugio: a máscara. Nas mãos, são obrigatórias as castanholas.


Reimoeiro – Deturpação de Rei Moiro, no modo de falar local. É o líder dos Mourisqueiros e a ocupação do lugar significa normalmente o ponto culminante de um percurso iniciado vários anos antes.

Mourisqueiro – É o membro da Mouriscada. Só podem ir de Mourisqueiros jovens solteiros. Nos tempos em que a estrutura da comunidade local assentava na economia agrícola e em que havia casas de lavradores, mais ou menos abastadas, caba a cada casa destas ‘apresentar’ um Mourisqueiro.

Autoria: Manuel Pinto- Dicionário sobre a Bugiada e Mouriscada

Curiosidades[editar | editar código-fonte]

"A Festa de S. João de Sobrado está repleta de coisas estranhas: inversões, mistérios, subversões, paradoxos, à espera de interpretações pertinentes. Vejamos algumas:

  • Em muitas outras terras, festeja-se o S. João de noite; em Sobrado é de dia – todo o dia, da alva até depois do sol-pôr.
  • Toda a gente janta ao fim do dia ou princípio da noite; em Sobrado, o jantar da festa é de manhã, pelas 10 horas.
  • Nas outras terras (e, nesta, nos outros dias) ninguém gosta de fazer o, digamos assim, “trabalho sujo”; pois em Sobrado não falta quem goste de ir semear, lavrar ou gradar todo mal-vestido e terminar com a roupa desfeita ou quase sem roupa; não falta quem goste – como acontece com o sapateiro e o cego – de chafurdar na lama, em cenas de primitivismo que deixam estarrecidos e com ar de enojado muitos forasteiros;
  • Em outras terras, em que há tradições festivas que metem mouros, turcos,  etc, estes são geralmente os ‘maus da fita’, os derrotados. Em Sobrado, são os Mourisqueiros os únicos com dignidade para ir na procissão e a pegar nos andores, incluindo o de S. João. E depois de vencerem pela força os cristãos, só são derrotados pelo terror da Serpe; e, ainda assim, como que ressuscitam para a Dança do Santo.
  • Nas terras onde ainda se pratica a agricultura, todos começam por lavrar a terra, se querem colher algum “samiguel”; só depois gradam e semeiam. Pois em Sobrado, em dia de S. João, primeiro semeia-se e só depois é que se lavra.
  • Por fim, é difícil encontrar no país (e alguns dizem que mesmo na Europa) muitas festas com um carácter mais espectacular do que esta. Pois tanto Bugios como Mourisqueiros antes de darem um espectáculo aos que vão à festa, dão um espectáculo a si mesmos: dançam e lutam porque a festa ainda é qualquer coisa que, se não existisse, deixaria um vazio enorme na vida deles e não poderiam “matar a paixão”. Em 1974, houve cheias por altura do S. João e choveu que Deus a dava no dia 24. Quase ninguém se atreveu a ir à festa. Mas nem por isso as danças se deixaram de fazer. Porque o S. João de Sobrado não é um mero espectáculo, mas algo que dá sentido à vida – individual e colectiva.

A Festa de S. João é feita de tudo isto e sem isto nunca seria a festa de S. João."


Autoria: Manuel Pinto

A Festa de Sobrado[editar | editar código-fonte]

Organização da Festa[editar | editar código-fonte]

Todos os anos é constituída uma Comissão de Festas composta por um grupo de Sobradenses de “boa-vontade”. Quando não surge uma Comissão voluntária, cabe à Associação Casa do Bugio a sua organização, uma vez que a sua missão é a promoção e a preservação da tradição.

A comissão organizadora é confirmada pela Associação Casa do Bugio e o nome dos festeiros anunciados na missa de festa do dia de São João. A sua organização tem a duração de um ano e principia ás 21h00 do dia 24 de Junho com a passagem do testemunho, cerimónia esta que decorre no adro da Igreja Matriz.

Concertos[editar | editar código-fonte]

São inúmeros os grupos e cantores famosos que já actuaram no palco do São João de Sobrado. A aposta é na variedade e na qualidade dos intérpretes que tanto dignificam a festa e cativam forasteiros das redondezas.

Os Mourisqueiros "roubam" o santo (foto de Nuno King, 2018)


Missa e Procissão[editar | editar código-fonte]

A festa contempla a cerimónia religiosa em honra de S. João, com missa cantada que se inicia às 10h00, sermão e procissão que será comandada pelos Mourisqueiros que carregam todos os andores dos santos.

Fogos de artifício[editar | editar código-fonte]

Os Fogos de Artificio, principalmente o da noitada de São João, são primorosamente planeados e executados por empresas de pirotecnia conceituadas. É um dos momentos altos da festa e a sua fama é antiga. Já em 1882 havia um relato do seu esplendor. No fim da noitada, tal como é tradição, a “Vaca de Fogo” encerra as festividades profanas pois na manhã do dia 24 os exércitos Mouro e Cristão lutarão pela posse da Imagem Milagrosa de São João.

Referências

  1. «Romarias e Festas populares em Junho». Folclore.pt. Consultado em 16 de novembro de 2019 

Ligações externas[editar | editar código-fonte]