Decisão Europeia de Investigação

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Uma Decisão Europeia de Investigação (DEI) (em inglês: European Investigation Order, EIO) é um mecanismo estabelecido ao abrigo da legislação da União Europeia através do qual um juiz ou magistrado de um Estado-Membro da UE pode fazer um requerimento vinculativo às agências de aplicação da lei de outro Estado-Membro para recolher provas para auxiliar numa investigação criminal. A decisão autoriza ações obrigatórias como buscas, escutas telefónicas, vigilância, citação (subpoena) para entrega de documentos ou registos, etc. O mecanismo existe em toda a UE, com exceção da Dinamarca e da Irlanda, que têm derrogações (opt-outs) nesta área do direito da UE.[1][2] A DEI foi criada pela Diretiva 2014/41/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014, relativa à decisão europeia de investigação em matéria penal.[3]

Uso[editar | editar código-fonte]

A DEI tem como objetivo ampliar a forma como um Estado-Membro pode requerer a assistência de outro Estado-Membro no âmbito das investigações criminais. Consequentemente, a DEI pode ser referida como um instrumento de “Reconhecimento Mútuo”. A DEI pode ser emitida em relação a quatro tipos de processos. O primeiro tipo diz respeito aos processos penais instaurados por uma autoridade judicial relativos a uma infração penal ao abrigo da legislação nacional do Estado-Membro que emite a DEI. O segundo e o terceiro tipos dizem respeito aos processos instaurados pelas autoridades administrativas ou judiciais por atos puníveis ao abrigo da legislação nacional do Estado-Membro que emite a DEI, sempre que a infração der origem a processos perante um tribunal competente em matéria penal. Por último, uma DEI pode ser emitida em relação a estes três primeiros tipos de processos relacionados com ofensas ou infrações sempre que uma pessoa coletiva possa ser responsabilizada e punida no Estado-Membro de emissão. A DEI pode servir como uma alternativa menos intrusiva à emissão de um Mandado de Detenção Europeu (MDE) de ação penal. Com base numa DEI, o arguido pode ser ouvido no Estado-Membro de execução, por exemplo, através de videoconferência, em vez de ser entregue ao Estado-Membro de emissão. Para algumas medidas de investigação, os Estados-Membros podem exigir o princípio da dupla incriminação, ou incriminação dual, isto é, que o crime de que o arguido é acusado exista no ordenamento jurídico de ambos os Estados-Membros. Porém, tal como acontece com o MDE, o requisito da dupla incriminação, ou incriminação dual, é obrigatoriamente eliminado sempre que a DEI disser respeito a uma das infrações incluída nas categorias de infrações constantes do Anexo D desta Diretiva ou sempre que seja punível no Estado de emissão com pena ou medida de segurança privativas de liberdade de duração máxima não inferior a (3) três anos. Uma melhoria importante da DEI é a disposição expressa de que o arguido tem o direito de requisitar a emissão de uma DEI (por exemplo, uma DEI para ouvir uma testemunha de defesa noutro Estado-Membro). Deve salientar-se, contudo, que a DEI não pode ser utilizada para fazer vigilância transfronteiriça de arguidos com o propósito de transferência de processos penais.[4][2]

Desafios de implementação[editar | editar código-fonte]

A criação da DEI gerou um certo alvoroço nas comunidades académica e jurídica. Têm existido algumas críticas de que a DEI é um instrumento dos Ministérios Públicos dos Estados-Membros que não proporciona aos arguidos um elevado padrão de proteção de direitos humanos. Alguns críticos chegaram ao ponto de argumentar que a criação da DEI foi precipitada, uma vez que não havia permitido que fossem retiradas primeiro as experiências do Mandado de Detenção Europeu (MDE), e outros críticos afirmaram que é uma solução de retalhos num quadro fragmentado de reconhecimento mútuo. A principal regra prevista no artigo 21.º, n.º 1, é que o Estado-Membro de execução suportará todos os custos da realização da DEI requerida pelo Estado-Membro emissor. Ora, a lógica subjacente a esta regra é a de que os custos funcionam com base no princípio da reciprocidade. Porém, alguns Estados-Membros encontram-se numa posição tal em que são obrigados a executar muito mais DEI do que as que emitem, e, para além disso, há também Estados-Membros que podem ficar encarregues de realizar uma DEI de grande alcance tendo de suportar os seus custos elevados. Neste sentido, o artigo 21.º, n.º 2, sugere que, nestes casos, os Estados-Membros se consultem e acordem entre si sobre a forma de partilharem os custos ou modificarem as medidas previstas na DEI se a previsão inicial de custos for excecionalmente elevada.[2][3]

Existem também alguns desafios em matéria de direitos humanos. O artigo 1.º, n.º 3, da Diretiva estipula que a emissão de uma DEI pode ser requerida por um suspeito, arguido ou advogado em seu nome. Contudo, nem todos os Estados-Membros cumprem esta Diretiva de modo a permitir que suspeitos/acusados/seus advogados possam sempre que quiserem requerer a emissão de uma DEI para a obtenção provas noutro Estado-Membro. Isto levanta um desafio ao princípio da igualdade de meios de defesa garantido pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem como componente essencial de um julgamento justo. O artigo 4.º da Diretiva estipula o tipo de processos para os quais uma DEI pode ser emitida, o que inclui os processos administrativos. Porém, isto acaba por ser problemático para efeitos de cumprimento da regra da especialidade, uma vez que um Estado-Membro emissor pode solicitar provas de uma infração administrativa no Estado-Membro de execução, mas depois vir a utilizá-las para processos penais. Os motivos para o não reconhecimento ou para a não execução de uma DEI, previstos no artigo 10.º da Diretiva, são limitados, sendo as únicas razões legais que permitem a um Estado-Membro de execução indeferir um requerimento de uma DEI de um Estado-Membro emissor. Isto também se aplica ao princípio ne bis in idem, segundo o qual ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime, entre outros princípios.[5][2][3]

Outra discrepância no direito de defesa diz respeito ao direito de, de forma imediata e direta, contestar a emissão de uma DEI. Este direito não era inerente quando a Diretiva foi elaborada ou entrou em vigor. Através de interpretações e orientações da agência Eurojust, foram entretanto sendo adicionados esclarecimentos ao longo dos anos. Porém, quando contestada uma decisão desfavorável para um arguido, sobre o caso Gavanozov, em 2019, um Tribunal da Bulgária evitou responder diretamente sobre o estatuto jurídico dos suspeitos. Neste caso, o Tribunal búlgaro optou por tomar outra decisão desfavorável sobre este caso, que foi proferida a 11 de novembro de 2021. Nesta decisão, o Tribunal explicou os artigos de acordo com a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) e da Carta dos Direitos Fundamentais da UE. A impossibilidade de contestar, no Estado-Membro de emissão, a necessidade e a legalidade de uma Decisão Europeia de Investigação que determine a prossecução de medidas como buscas e apreensões constitui uma violação do artigo 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da UE. O Estado de emissão deve, pelo menos, proporcionar a oportunidade de contestar a legalidade da DEI emitida, em alguma fase do processo de investigação. Esta possibilidade deve incluir simultaneamente a fiscalização da legalidade das medidas determinadas e da forma como foram executadas. A emissão de uma DEI deverá negada quando este nível mínimo de proteção para o acusado não puder ser garantido pelas suas leis nacionais. O Tribunal segue assim a recomendação do Procurador-Geral Michal Bobek, que neste caso informou que, enquanto o legislador búlgaro não remediar esta situação, a Bulgária estará em violação constante dos direitos fundamentais e, portanto, não poderá participar no processo de reconhecimento mútuo deste mecanismo da DEI.[6][7][2][3]

Outra questão diz respeito aos direitos da defesa. São pouco claras quais são as consequências de qualquer ilegalidade na execução de uma DEI para o processo no Estado-Membro de emissão, especialmente quando os direitos da defesa não foram respeitados na execução de uma DEI (por exemplo, quando a defesa do arguido não dispor da possibilidade de interrogar uma testemunha incriminatória).[2][3]

História[editar | editar código-fonte]

A Directiva foi proposta em abril de 2010, por um grupo de sete Estados-Membros da União Europeia: Áustria, Bulgária, Bélgica, Estónia, Eslovénia, Espanha e Suécia. A DEI substituiria o quadro jurídico existente aplicável à recolha e transferência de provas entre os Estados-Membros. Propôs um procedimento que permitiria a uma autoridade de um Estado-Membro (a "autoridade de emissão") solicitar medidas específicas de investigação criminal a serem executadas por uma autoridade de outro Estado-Membro (a "autoridade de execução"). A medida baseia-se no princípio do reconhecimento mútuo estabelecido no artigo 82.º, n.º 1, do TFUE. O artigo 82.º, n.º 1, estipula que a cooperação judiciária em matéria penal na União Europeia baseia no reconhecimento mútuo de sentenças e decisões judiciais.[8]

A DEI continha várias inovações significativas em relação aos procedimentos existentes. A DEI centra-se nas medidas de investigação a executar e não no tipo de provas a recolher. A DEI tem um âmbito amplo – todas as medidas de investigação são abrangidas, exceto aquelas explicitamente excluídas. Em princípio, a autoridade emissora decide o tipo de medida de investigação a utilizar. Porém, a flexibilidade é introduzida ao permitir, num número limitado de casos, que a autoridade de execução decida recorrer a uma medida de investigação diferente da prevista na DEI. São previstos prazos claros para o reconhecimento e, com maior flexibilidade, para a execução da DEI. A proposta também inova ao prever a obrigação legal de executar a DEI com a mesma celeridade e prioridade que para um caso nacional semelhante. A DEI prevê a utilização de um formulário que deverá ser utilizado em todos os casos.[2][3]

Em comparação com o Mandado Europeu de Obtenção de Provas e com o Auxílio Judiciário Mútuo, a DEI prevê a racionalização dos motivos de recusa e o direito da autoridade emissora de solicitar que um ou vários dos seus funcionários ajudem na execução da medida no Estado-Membro de execução.[9]

Em agosto de 2010, a Comissão Europeia emitiu um parecer sobre a iniciativa, alertando que poderia ser um sistema de partilha de provas sem as salvaguardas fornecidas pelas normas comuns de admissibilidade. No seu parecer, a Comissão Europeia destacou as vantagens da proposta – um sistema mais simples e unificado – se o sistema fosse apoiado por normas processuais e de direitos fundamentais adequadas. No momento da adoção do parecer, Viviane Reding, a Comissária da Justiça da UE, afirmou que iria "garantir que a proposta respeita a Carta dos Direitos Fundamentais da UE".[10][11]

Uma orientação geral sobre o projeto do texto legislativo foi alcançada na reunião do Conselho de dezembro de 2011,[12] permitindo ao Conselho negociar com o Parlamento Europeu a adoção da medida. O relator no Parlamento Europeu foi o eurodeputado português Nuno Melo do CDS – Partido Popular (CDS–PP) filiado no Partido Popular Europeu (PPE).[13]

Antes de a aprovação da DEI poder ser considerada pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho da UE, esta foi criticada pela Fair Trials International, pela Agência dos Direitos Fundamentais, pela Statewatch e por alguns membros do Parlamento do Reino Unido, que temiam que permitisse o aumento da vigilância policial e o uso desproporcional de meios de poderes de investigação em assuntos triviais.[14][15]

A Diretiva foi adotada em 2014.[16]

Justificação[editar | editar código-fonte]

Ao considerar a Decisão Europeia de Investigação, é importante analisar a razão pela qual existe e a justificação para acrescentar mais uma medida de investigação às medidas de investigação transfronteiriças existentes. Antes da DEI, existia a Decisão-Quadro 2003/577/JAI do Conselho, de 22 de Julho de 2003, relativa à execução na União Europeia do reconhecimento mútuo das decisões de congelamento de bens para efeitos de obtenção de provas ou posterior confisco de bens.[17] O problema desta Decisão-Quadro, contudo, era que seria necessário apresentar um requerimento separado para a transferência das provas para o Estado-Membro emissor.[18] Houve também a Decisão-Quadro 2008/978/JAI do Conselho, relativa a um Mandado Europeu de Obtenção de Provas destinado à obtenção de objetos, documentos e dados para utilização no âmbito de processos penais. Este instrumento permitiu o reconhecimento mútuo das ordens judiciais emitidas para obtenção de objetos, documentos e dados para utilização em processos penais.[19] O problema com esta medida era que ela só se aplicava a provas já existentes e, portanto, tinha um âmbito limitado, fora do qual a única medida disponível era o procedimento de Auxílio Judiciário Mútuo.[18] O resultado destas decisões-quadro foi que o quadro de recolha de provas era fragmentado e complexo. Esta fragmentação foi discutida no Programa de Estocolmo pelo Conselho Europeu em 2009, onde foi decidido que era necessário existir um sistema abrangente baseado no reconhecimento mútuo para a obtenção de provas em processos penais transfronteiriços. A resposta a esta fragmentação foi, portanto, a DEI.[20]

Ver também[editar | editar código-fonte]

Referências

  1. «European Investigation Order | Eurojust | European Union Agency for Criminal Justice Cooperation». www.eurojust.europa.eu (em inglês). Consultado em 5 de novembro de 2023 
  2. a b c d e f g «Portal Europeu da Justiça - Decisão europeia de investigação, auxílio judiciário mútuo e equipas de investigação conjuntas». e-justice.europa.eu. Consultado em 5 de novembro de 2023 
  3. a b c d e f «EUR-Lex - 32014L0041 - PT - EUR-Lex». eur-lex.europa.eu. Consultado em 5 de novembro de 2023 
  4. Sayers, Debbie (junho de 2011). «The European Investigation Order-travelling without a 'roadmap'. CEPS Liberty and Security in Europe, June 2011». shop.ceps.eu. Consultado em 5 de novembro de 2023 
  5. «EUR-Lex - eu_human_rights_convention - EN - EUR-Lex». eur-lex.europa.eu (em inglês). Consultado em 5 de novembro de 2023 
  6. «CJEU: Bulgaria (Currently) Precluded from Issuing EIOs Due to Lack of Legal Remedies». eucrim.eu (em inglês). Consultado em 5 de novembro de 2023 
  7. «CURIA - List of results». curia.europa.eu. Consultado em 5 de novembro de 2023 
  8. Consolidated versions of the Treaty on European Union and the Treaty on the Functioning of the European Union#Consolidated version of the Treaty on European Union#Consolidated version of the Treaty on the Functioning of the European Union#Protocols#Annexes#Declarations annexed to the Final Act of the Intergovernmental Conference which adopted the Treaty of Lisbon, signed on 13 December 2007#Tables of equivalences, 2012, consultado em 5 de novembro de 2023 
  9. «Procedure File: 2010/0817(COD) | Legislative Observatory | European Parliament». oeil.secure.europarl.europa.eu. Consultado em 5 de novembro de 2023 
  10. «Justiça e direitos fundamentais». commission.europa.eu. Consultado em 5 de novembro de 2023 
  11. «Press corner». European Commission - European Commission (em inglês). Consultado em 5 de novembro de 2023 
  12. Conselho da União Europeia. Bruxelas, 13 e 14 de dezembro de 2011. Principais resultados do Conselho (PDF). [S.l.: s.n.] 
  13. «Página inicial | Deputados | Parlamento Europeu». www.europarl.europa.eu. Consultado em 5 de novembro de 2023 
  14. «Britons to be spied on by foreign police». The Telegraph (em inglês). 26 de julho de 2010. Consultado em 5 de novembro de 2023 
  15. «European police to get access to UK records». The Independent (em inglês). 27 de julho de 2010. Consultado em 5 de novembro de 2023 
  16. «EUR-Lex - 32014L0041 - PT - EUR-Lex». eur-lex.europa.eu. Consultado em 5 de novembro de 2023 
  17. Decisão-Quadro 2003/577/JAI do Conselho, de 22 de Julho de 2003, relativa à execução na União Europeia das decisões de congelamento de bens ou de provas, 22 de julho de 2003, consultado em 5 de novembro de 2023 
  18. a b Diretiva 2014/41/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014, relativa à decisão europeia de investigação em matéria penal, 130, 3 de abril de 2014, consultado em 5 de novembro de 2023 
  19. Decisão-Quadro 2008/978/JAI do Conselho, de 18 de Dezembro de 2008 , relativa a um mandado europeu de obtenção de provas destinado à obtenção de objectos, documentos e dados para utilização no âmbito de processos penais, 18 de dezembro de 2008, consultado em 5 de novembro de 2023 
  20. Programa de Estocolmo — Uma Europa aberta e segura que sirva e proteja os cidadãos, 2010, consultado em 5 de novembro de 2023