Integral de McShane

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.

O matemático estadunidense Edward James McShane apresentou, em 1973,[1] uma nova formulação da integral de Lebesgue sem o recurso à Teoria da Medida. Neste âmbito, passava na altura, a ser uma alternativa ao curso de F. Riesz e B. Sz. Nagy (ver[2] [Ch.II]). Com base na integral de Henstock-Kurzweil, também conhecida por integral de Riemann generalizada[3][4][5], surgida uma década antes através dos trabalhos independentemente desenvolvidos pelo matemático inglês Ralph Henstock (1923-2007) e pelo matemático checo Jaroslav Kurzweil (1926-2022), McShane dá origem a uma integral, que haveria de ficar conhecida pelo seu nome. Usando as mesmas somas de Riemann tão bem conhecidas de muitos estudantes dos cursos de Ciências e Engenharia, tal integral não era, contudo, uma integral nova já que se formalizava equivalente à integral de Lebesgue, apresentada no princípio do século XX pelo francês Henri Lebesgue.

Partições, Pontilhados e Calibres[editar | editar código-fonte]

Tratando-se de uma integral baseada nas somas de Riemann, assenta ela obviamente em conceitos conhecidos como o de partição e ainda outros inerentes à integral de Henstock-Kurzweil. A nomenclatura relativa a estas noções variam bastante de autor para autor. Esta nossa exposição é nesse ponto sobretudo inspirada por definições semelhantes usadas, por exemplo, por Elon Lages de Lima[6] e Djairo Guedes de Figueiredo[7] no que respeita à integral de Riemann.

Dado um intervalo limitado e fechado, , da reta real, , por partição de entenderemos um qualquer conjunto finito e ordenado em que e . Cada intervalo é chamado de subintervalo determinado pela partição O valor será dito diâmetro da partição Por designaremos o conjunto de todas as partições do intervalo .

Relativamente a uma partição , chamaremos pontilhado de admissível para , a qualquer sequència finita de pontos daquele intervalo, que tenha termos, ou seja, tantos quantos os subintervalos de determinados por . Um dado pontilhado, de , diz-se subordinado à partição de , se e só se tiver um e um só elemento em cada um dos subintervalos em que decompõe o intervalo . Isto é,

Notemos que a sequência pode admitir termos repetidos, e que o número , indicado, tem em conta essa repetição. Observe- se que no caso de ser um pontilhado subordinado à partição , então o número de repetições não excede 2. Este mesmo número pode ser superior no caso de não haver subordinação.

Com uma partição e um pontilhado que lhe seja admissível, podemos formar o conjunto

,

a que chamaremos partição pontilhada associada ao par .

Todos estes conceitos provêm, como se sabe, da integral de Riemann. Os que se seguem têm origem na formulação da integral de Henstock-Kurzweil.

Iremos considerar partições pontilhadas de dois tipos. Umas em que o pontilhado está subordinado à partição , as quais chamaremos de partição de pontilhado subordinado, e aquelas em que, pelo contrário, não está subordinada a , a que daremos o nome de partição livremente pontilhada.

Dada uma função positiva , uma partição pontilhada , associada ao par , é dita -fina sempre que

, para .

Nestas circunstâncias, a função toma o nome de calibre.

São válidas as seguintes relações com as amplitudes dos subintervalos determinados por uma partição pontilhada que seja -fina.

Teorema 1[editar | editar código-fonte]

Se a partição pontilhada for -fina então existe um outro calibre tal que

para .

Dada uma partição de pontilhado subordinado, ,

se existir um calibre tal que para , então é -fina.

Se for um calibre limitado e for um número real tal que , qualquer que seja , e for uma partição pontilhada que seja -fina, então tem-se necessariamente .

Na verdade, se for -fina, temos com , para ,

,

o que implica , o que demonstra .

Inversamente, para mostrarmos , seja tal que para relativamente a um dado calibre . Então se ou seja, se o pontilhado for subordinado a , temos necessariamente , para , ou seja, é -fina.

A asserção é uma consequência imediata da demonstração de .

Exemplo 1[editar | editar código-fonte]

Uma função tal que , para cada , isto é que seja constante e positiva no intervalo , constitui um calibre. Dizer que uma partição pontilhada, , é -fina implica que independentemente do pontilhado admissível para a partição . Reciprocamente, se então qualquer partição de pontilhado subordinado, , é -fina.

Compatibilidade[editar | editar código-fonte]

Permanece a questão de saber se qualquer calibre, , admite uma partição pontilhada que seja -fina. A questão é inteiramente esclarecida pelo seguinte teorema, conhecido na literatura como lema de Cousin por ser devido, noutro contexto, ao matemático francês Pierre Cousin.

Teorema 2[editar | editar código-fonte]

Para cada função , existe uma partição de , de pontilhado subordinado, que é -fina.

A demonstração desta proposição resulta da seguinte observação. Se com , e forem duas partições, de pontilhado subordinado, -finas dos intervalos e , respetivamente, então por junção das duas partições construímos uma partição de pontilhado subordinado de , igualmente -fina.

Assim, procedamos por contradição, supondo que não existe nenhuma partição, de pontilhado subordinado de , que seja -fina. Então para qualquer , pelo menos um dos intervalos, ou , também não admite nenhuma partição de pontilhado subordinado igualmente -fina. Escolhendo , o ponto médio do intervalo , designemos tal subintervalo de , por , cuja amplitude é igual a . Aplicando a o mesmo argumento, construímos analogamente um subintervalo de , , de amplitude , o qual também não admite nenhuma partição, de pontilhado subordinado, que seja -fina. Por este processo constituímos uma sucessão descendente de intervalos fechados,

em que é um intervalo de amplitude que não admite nenhuma partição, de pontilhado subordinado, que seja -fina. Nestas condições é possível afirmar que é um conjunto não vazio, limitado e fechado (ver[6] [Teorema 12, p.145]) e além disso, singular já que , quando . Isto é, , com , qualquer que seja .

Mas dado que , existe tal que , Como tal, constitui uma partição, de pontilhado subordinado, -fina do intervalo , o que é contraditório.

A Integral de McShane[editar | editar código-fonte]

Dada uma função , relativamente a uma qualquer partição pontilhada, , consideremos a respetiva soma de Riemann

,

onde e .

Estas somas de Riemann intervêm na integral de Riemann e na integral de Henstock-Kurzweil sob a condição adicional de que o pontilhado seja subordinado à partição . Para formularmos a integral de McShane essa condicionante não é tida em conta. Quer dizer, o pontilhado é livre entre todos os pontilhados admissíveis para a partição .

Nestas condições, diremos que é integrável à McShane se existir um valor real tal que:

  • Para qualquer existe um calibre tal que qualquer que seja a partição livremente pontilhada, , que seja -fina se tem .

A fim de relacionarmos este integral com o de Riemann e o de Riemann generalizado, recordemos que é integrável à Riemann sempre que existir um valor real tal que:

  • Para qualquer existe um valor (ou se quisermos, um calibre constante ) tal que qualquer que seja a partição de pontilhado subordinado, , tal que (respetivamente que seja -fina) se tem .

Mais geralmente para a integral de Henstock-Kurzweil a respetiva definição consiste na existência de um valor real , de modo que

  • Para qualquer existe um calibre, , tal que qualquer que seja a partição de pontilhado subordinado, , que seja -fina se tem .

São óbvias as relações entre estes tipos de integrabilidade que indicamos no seguinte teorema.

Teorema 3[editar | editar código-fonte]

Seja . Então são válidas as seguintes implicações:

  • é integrável à Riemann é integrável segundo Henstock-Kurweil;
  • é integrável à McShane é integrável segundo Henstock-Kurzweil.

Em qualquer dos casos as integrais correspondentes coincidem.

Unicidade[editar | editar código-fonte]

É fácil de demonstrar, em qualquer dos integrais acima apresentados, a unicidade do valor do integral.

Para o caso do integral de McShane suponhamos que existem dois valores, e , para os quais é verificada a condição .

Tome-se e calibres e tais que:

  • , para qualquer partição livremente pontilhada, , -fina,

e

  • , qualquer que seja a partição livremente pontilhada, , -fina.

Seja e usemos o Teorema 2 para obtermos uma partição pontilhada, , que seja -fina.

Então, como ser -fina implica ser -fina e -fina, obtemos

,

o que é contraditório.

Para os integrais de Riemann e de Henstock-Kurzweil a mesma demonstração pode ser seguida passo a passo.

Alguns exemplos[editar | editar código-fonte]

Exemplo 2[editar | editar código-fonte]

Com , seja tal que e se Como se sabe, esta função é integrável à Riemann e o valor do sua integral é Mostremos que a função também é integrável à McShane, assumindo a integral respetiva, o mesmo valor.

Então dado seja o calibre dado por e se

Considerando uma partição pontilhada podemos decompo-la nas sequências:

, para ,

, onde , e

, com , em que

Deste modo, e por conseguinte,

Assim, se for -fina temos

, para , e

, com .

Atendendo a que estes intervalos não intersetam o seu interior, sendo no máximo justapostos, obtemos

Logo é integrável à McShane e o valor do seu integral é

O exemplo seguinte mostra que existe uma distinção entre a integral de Riemann e a integral de McShane.

Exemplo 3[editar | editar código-fonte]

Seja a conhecida função de Dirichlet dada por

que sabemos não ser integrável à Riemann. Mas mostremos tratar-se de uma função integrável no sentido de McShane.

Para isso comecemos por considerar o conjunto numerável, , dos números racionais do intervalo e para , qualquer, constituamos o calibre

Seja uma partição livremente pontilhada -fina tendo como soma de Riemann .

Tendo em conta que sempre que é irracional, eliminemos da sequência de pares que constituem a partição pontilhada, os pares em que é irracional. O que resta são subsequências do tipo em que cada intervalo , Atendendo a que os diversos subintervalos determinados pela partição são justapostos, cada uma destas subsequências dá origem na soma de Riemann a subsomas do tipo

.

Logo , o que prova que a função de Dirichlet é integrável à McShane sendo o valor da integral respetiva igual a zero.

Relação com derivadas[editar | editar código-fonte]

Qualquer dos três integrais acima definidos verifica as propriedades elementares relativas a funções reais definidas num intervalo que a seguir enumeramos, onde por designamos indistintamente o valor de cada um desses integrais

  1. Se é integrável em então é integrável em cada subintervalo de .
  2. Se é integrável em e então é integrável em e .
  3. Se é contínua em então é integrável em .
  4. Se é monótona em então é integrável em .
  5. Seja uma função diferenciável e estritamente monótona. Então é integrável em se e só se é integrável em , caso em que .
  6. Se é integrável em então é integrável em e , para cada .
  7. Sejam e funções integráveis em . Então:
  • é integrável em e
  • em .

No que respeita aos integrais de Henstock-Kurzweil e de McShane as demonstrações destas propriedades são idênticas excetuando ligeiras variações inerentes às diferenças de definição (ver, por exemplo, Washek Pfefer[8] [Sec. 6.1]). Olhando também o que acima foi referido, se atentarmos na demonstração da unicidade da integral de McShane, ela pode repetir-se verbatim para concluir a unicidade da integral de Henstock-Kurzweil.

Observamos assim inicialmente um certo paralelismo entre estes dois integrais. Porém, surge uma impercetível rutura entre eles quando se analisam outras propriedades, como as que respeitam a integrabilidade absoluta e a integrabilidade das derivadas de funções integráveis.

A este respeito são válidos os seguintes teoremas (ver[8] [Prop.2.2.3 e Th. 6.1.2]).

Teorema 4 (da integrabilidade absoluta da integral de McShane)[editar | editar código-fonte]

Se integrável em , segundo McShane, então também é integrável à McShane em e .

Teorema 5 (fundamental do integral de Henstock-Kurzweil)[editar | editar código-fonte]

Se é diferenciável em , então é integrável em segundo Henstock-Kurzweil e.

Com o objetivo de ilustrar estes teoremas analisemos o seguinte exemplo.

Exemplo 4[editar | editar código-fonte]

Consideremos a seguinte função:

Trata-se de uma função obviamente diferenciável se , igualmente diferenciável em , já que .

Além disso,

Como a função

é contínua e, pelo Teorema 5, a função é, por exemplo, em integrável segundo Henstock-Kurzweil, então, pelas propriedades 6 e 7, o mesmo sucede à função

Ora a função

não é integrável em para nenhuma das integrais mencionadas. Na verdade, se o fosse, designando qualquer dessas integrais por teríamos necessariamente para qualquer . Procedendo à mudança de variável , obtemos de acordo com a propriedade 5:

.

Atendendo a que é arbitrário e , chegamos a uma contradição.

Das situações descritas neste exemplo, podemos então tirar as seguintes consequências:

I) O Teorema 4 não é válido para o integral segundo Henstock-Kurzweil, já que é integrável à Henstock-Kurzweil e não é.

II) O Teorema 5 não é válido para o integral de McShane. Se o fosse então seria integrável à McShane, o mesmo sucedendo a , e pelo Teorema 4 também a , obtendo-se assim um absurdo.

III) pode figurar assim como exemplo de uma função integrável segundo Henstock-Kurzweil que não é integrável à McShane. Isto é, tendo em conta o Teorema 3, a classe das funções integráveis à McShane é mais restrita que a das integráveis segundo Henstock-Kurzweil.

Relação com a integral de Lebesgue[editar | editar código-fonte]

O resultado mais importante e talvez o mais surpreendente da integral de McShane é o que descrevemos no teorema seguinte.

Teorema 6[editar | editar código-fonte]

Seja . Então

é integrável à McShane é integrável à Lebesgue.

As integrais correspondentes coincidem.

A demonstração deste teorema não é imediata. Antes obriga a que se estabeleçam previamente vários resultados para a integral de McShane em relação com resultados já conhecidos da integral de Lebesgue. Neste sentido, chamamos a atenção do leitor para Washek Pfeffer[8] [Ch. 4] e também para os trabalhos de Robert McLeod[3] [Ch. 8], Russel Gordon[9] [Ch. 10] e Douglas Kurtz e Charles Swartz[10].

Constitui-se com ele uma espécie de unificação da teoria da integração em torno das somas de Riemann que praticamente lhe deram origem.

Referências[editar | editar código-fonte]

  1. McShane, E. J. (1973). «A Unified Theory of Integration». American Mathematical Monthly. 80: 349-359. 
  2. Riesz, F. e Sz.-Nagy, B. (1990). Functional Analysis. New York: Dover. ISBN 0-486-66289-6 
  3. a b McLeod, Robert M. (1980). The Generalized Riemann Integral. U. S. A.: The Mathematical Association of America. ISBN 0-88385-000-1 
  4. DePree, John D. e Swartz, Charles W. (1988). Introduction to Real Analysis. New York: John Wiley & Sons, Inc. ISBN 0-471-60273-6 
  5. Bartle, Robert G. (2001). A Modern Theory of Integration. Providence, Rhode Island: American Mathematical Society. ISBN 0-8218-0845-1 
  6. a b Lages de Lima, Elon, (1987). Curso de Análise (vol.1). Rio de Janeiro: IMPA-CNPq. ISBN 9-216-05138-8 
  7. Guedes de Figueiredo, Djairo (1996). Análise I. Rio de Janeiro: LTC. ISBN 85-216-1062-9 
  8. a b c Pfeffer, Washek F. (1993). The Riemann Approach to Integration,. New York: Cambridge University Press. ISBN 0-521-44035-1 
  9. Gordon, Russel A. (1994). The Integrals of Lebesgue, Perron, Denloy and Henstock. Pridence, Rhode Island, U.S.A.: Graduate Studies in Mathematicas, vol. 4, American Mathematical Society. ISBN 0-8218-3805-9 
  10. Kurtz, Douglas S. e Swartz, Charles W. (2012). Theories of Integration. Singapore: World Scientific. ISBN 981-4368-99-7