Usuário(a):Mariane Barbosa da Cruz/Testes

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As memórias dos camponeses do Araguaia[editar | editar código-fonte]

A Guerrilha do Araguaia foi um movimento guerrilheiro que se iniciou a partir de 1966, considerando a data da chegada dos primeiros militantes do PCdoB, o Partido Comunista do Brasil, na região de Marabá, São Domingos do Araguaia e São Geraldo do Araguaia no Estado do Pará e Xambioá no Estado do Tocantins. Foi encerrada no final do ano de 1974, ano da última investida repressiva do exército na região, a Operação Marajoara, na região onde havia a divisa entre os estados do Pará e Tocantins. Chegaram aos poucos nessas regiões e foram se organizando em destacamentos no meio da mata, estabelecendo de forma gradual o contato com os camponeses moradores da região.

Na época ninguém sabia quem era’ diz o camponês Zé da Onça no documentário Camponeses do Araguaia: A Guerrilha vista por dentro(2010) dirigido por Vandré Fernandes, produzido por Oka Comunicações e publicado em 2010.

e finalizado em 11 de maio de 2010. Nunca tinham sido vistos antes. Aos poucos foram estabelecendo contatos fazendo trocas pontuais com alguns dos moradores. Poucas palavras, muita desconfiança. Estudar a Guerrilha do Araguaia, em algum momento nos leva a questionar qual era a visão que o camponês tinha sobre aquelas pessoas, em maioria de classe média, universitários e de regiões urbanas do país, que surgiram por aqueles municípios então localizados no triângulo geográfico entre o que eram os estados do Pará, Maranhão e Tocantins.

Os camponeses e os guerrilheiros[editar | editar código-fonte]

Estamos falando de gente simples, camponesa, voltada à produção quase que de subsistência em suas pequenas terras ameaças pelos conflitos pela terra que vinham desde antes da década de 60. As titulações falsificadas de grileiros significavam uma constante ameaça aos posseiros, sobretudo do sul do Pará, num tempo em que, paralelamente, cresceram  os debates pela reforma agrária dentro do PCdoB.

A escolha da região do Araguaia para iniciar os treinamentos guerrilheiros e os trabalhos de base em muito se deveu aos conflitos agrários existentes na região. Os camponeses, eram posseiros de terra que chegaram à região décadas antes com o objetivo de explorar a terra, e que estavam continuamente reféns dos esforços de latifundiários da região para expropriarem terras, com o auxílio das forças das armas dos jagunços.

Quanto aos guerrilheiros, eram militantes[1] que estavam vivendo nas matas da região desde 1966, orientados e mobilizados pelo PCdoB. Conforme iam sendo conhecidos pelos camponeses, foram apelidados de ‘paulistas’ embora entre eles houvessem pessoas nascidas em outras cidades[2] como Fortaleza, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Bahia, Minas Gerais mas que em maioria viviam no sudeste, sobretudo em Rio de Janeiro e São Paulo.

O partido[editar | editar código-fonte]

O Partido Comunista do Brasil, PCdoB, surge em 1958 a partir de uma cisão interna do Partido Comunista Brasileiro, o PCB. Esse movimento significou um alinhamento do PCdoB à ideia de Guerra Popular Prolongada, e o partido iniciou a transferência de militantes para o campo, com o objetivo de consolidar um exército camponês, em contraponto com as ideias de resistência guerrilheira que se voltavam à guerra de guerrilhas.

Em teoria, o PCdoB divergia do Foquismo inspirado na Revolução Cubana, e se voltaria mais à estratégia de Guerra Popular Prolongada que, por sua vez, se faria com mobilização de camponeses do interior para atuarem como soldados, evitando ao máximo o confronto com militares, até que se tivesse gente suficiente para iniciar a luta nacional junto a outros focos de resistência armada. Porém o que se verificou no caso do Araguaia foi justamente a criação de grupos repartidos com focos de guerrilha rural, cujo objetivos em boa medida acabaram ficando distantes e estranhos do conhecimento das populações camponesas daquelas regiões.

A interação[editar | editar código-fonte]

A interação dos guerrilheiros com os moradores da região aos poucos foi melhorando e relações foram se estabelecendo. Muitos partos de camponesas foram feitos por médicos que haviam entre os guerrilheiros, assim como escolas foram construídas juntamente com os materiais que possuíam. Aquilo que os membros do PCdoB cultivavam nas bases que mantinham dentro das matas servia para manter a sobrevivência do grupo, como também era vendido aos próprios camponeses, e o pagamento aos ‘paulistas’, como eram chamados os militantes, podia ser feito a base de trocas por outros alimentos ou produtos que circulavam na pequena economia das redondezas.

No documentário citado falas interessantes como a do camponês, Eduardo dos Santos, que avalia o que percebeu da proximidade dele e dos demais camponeses com os guerrilheiros: 'Gostamos muito deles, eram pessoas boas, deram muita atenção. Era um pessoal que não entendia de nada daqui, da região. Nós ajudamos muito eles, ajudamos eles a trabalhar de roça, pescar, mariscar, caça com nós.'

Este depoimento, assim como outros, indicam que amizades possivelmente foram sendo construídas à medida que a imagem dos recém chegados ia se revelando amigável. O objetivo final dos militantes ao se  aproximarem dos camponeses era, claro, promover a mobilização desse grupo. As falas também apontam para a existência de curiosidade e simpatia diante dos discursos dos guerrilheiros, ainda que isso não signifique que a maioria dos camponeses tenha aderido aos objetivos da Guerrilha.

Outro camponês tem uma narrativa que exemplifica isto, é a do Seu Fogoió: ‘Eles me convidavam, quem gostava de me convidar era o Osvaldão, eu ia por cortesia mas não ia por intenção nenhuma. Eles dizia ‘bora ali’, fulano de tal, bora ali' na reunião assim mas eu não entendia daquele negócio deles, só que eu chegava lá achava tudo diferente, e era só aquele negócio.. palavra cubana, aí eu ficava com eles. As vezes até que se ele tivessem me explicado mesmo aquele negócio lá eu sei lá se eu não tinha sido morto também.

O que se percebe é que muitos dos camponeses que se aproximaram dos militantes o fizeram sem muitas preocupações de luta além daquelas que envolviam as suas próprias lutas pelo direito à terra. Existiram alguns camponeses que se tornaram militantes como Antônio Alfredo de Lima, morto pelas Forças Armadas no dia 14 de outubro de 1973, em seu pedaço de terra, localizado em São João do Araguaia, e Pedro Carretel, posseiro, preso juntamente com sua cônjuge, desaparecido no início de 1974[3]. Houveram também aqueles que, suspeitos de colaborar com a Guerrilha do Araguaia, foram brutalmente torturados e mortos como foi o caso do barqueiro e lavrador Lourival Moura Paulino encontrado morto na delegacia de polícia de Xambioá, no Estado do Tocantins, em 21 de maio de 1972.

A descoberta da Guerrilha[editar | editar código-fonte]

A convivência não revelava que os ‘paulistas’ eram ‘terroristas’. A pergunta ‘onde estão os terroristas?’, feitas aos camponeses pelos militares que estavam sendo deslocados para a região no início da década de 1970, soava confusa. Embora alguns camponeses tenham dito décadas depois da Guerrilha a respeito das armas que viam com os guerrilheiros, este não parece ter sido um elemento que causou medo e impediu a camaradagem aos guerrilheiros. Quem iria se mostrar mais próximo às práticas terroristas viria a ser o próprio Estado quando, mais tarde, com o início da montagem do cerco aos locais em que os militantes construíram suas bases dentro das matas, chegaram em localidades rurais atuando com extrema truculência, prendendo e tratando com violência os moradores e suas plantações, consideradas benéficas ao movimento da qual se queria desarticular.

Dona Adalgisa, camponesa, conta sobre quando o exército chegou em sua casa. 'Os militares chegaram lá em casa gritando ‘ô de casa’ e eu estava arrumando minhas menina lá dentro, ai eu disse ‘ô de fora’, cadê o marido, eu digo ‘não está’, foi pra São Domingo ontem (São Domingo do Araguaia) e eu estou me arrumando pra ir pra lá. Aí eu saí (da casa). Aí ele disse ‘pois você vai atrás dele?’, ai eu disse ‘vou nada, vou não, nunca andei atrás dele’, aí eles disse ‘vai sim’, aí eles colocaram as arma em mim aí eu disse ‘aí meu deus o que foi que eu fiz que vão me matar e eu tenho minhas filha pra criar’, aí eu peguei a chorar, aí saí com a neném gritando e chorando, aí eles disse ‘cala a boca, povo da mata tá por aí’, aí eu digo ‘eles não tão aqui’, aí eles ‘tá, eles tão por aí, se esse povo atirar em nós a primeira que nós vamos matar é você, a primeira que vai morrer é você, vamos lhe matar’, aí eu digo ‘e meu bebezinho?’, ‘também’.

A repressão e o fim da Guerrilha[editar | editar código-fonte]

Com as operações do Exército para desmantelar a Guerrilha e seus destacamentos militares, que começaram em 1972, a grande maioria dos guerrilheiros foram mortos ainda na região do Araguaia, e seus corpos, quando não largados na própria mata, foram enterrados em covas desconhecidas. O desfecho da Guerrilha para os camponeses significou a queima de suas casas e plantações por parte dos militares, a prisão de outros muitos por serem considerados apoiadores dos guerrilheiros, assim como a mortes e o desaparecimentos em um número que é provavelmente muito maior do que o que é conhecido pelas pesquisas. Documentos militares dizem ter ocorrido a existência de ‘apoios circunstanciais’[4], ou seja, aqueles camponeses que forneciam alimentação ou faziam favores aos guerrilheiros, que somavam 90% dentre os 161 ‘apoios’ presos até o momento da Operação Marajoara em 1973. Já o número de camponeses mortos no Araguaia estaria em torno de 31 pessoas, e este número pode ser ainda maior. Segundo dados da Associação dos Torturados da Guerrilha do Araguaia (ATGA), cerca de 300 camponeses e índios são considerados desaparecidos e cerca de 2.500 pessoas sofreram humilhações, prisões e torturas.

O seguinte trecho da Comissão Nacional da Verdade diz que:

‘os relatos de moradores e guerrilheiros sobreviventes apontam a existência de várias bases militares que funcionavam como centros de triagem e torturas. Entre as citadas, estão a Base do Exército em Xambioá, a Delegacia de Araguaína, ambas situadas, à época, no estado de Goiás, e a Base da Bacaba, em São Domingos, no estado do Pará. Além dessas, destaca-se o Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER), em Marabá, no Pará'.[5]

Seja sob as condições acima descritas ou forçados a guiar os militares na busca pelos membros do PCdoB, o fato é que os camponeses da região do Araguaia, em seu modo simples e pacato de viver e sobreviver frente às investidas dos latifundiários sobre suas parcelas de terra, sofreram duramente a repressão militar. As marcas na memória e nos corpos daqueles que sofreram para além das violências e pressões psicológicas, permanecem amedrontando aqueles que ainda vivem na região. Seu Precatão, camponês, tem uma narrativa vívida sobre sua memória traumática das humilhações e torturas que passou: ‘Me pegaram, me botaram no helicóptero e me desceram lá pra base em Xambioá, aí me deixaram lá, aí lá foram me torturar. Me amarram, era uma base de umas dez horas do dia. Aí me levaram lá pro pé de coco, me botaram com as costa pro pé de coco, me amarram os braço assim pra trás. Aí aquele facão que estava na minha cintura estavam com ele aí meteram o facão nos meus peito batendo, aí quando saía fincava os facão junto de uns toco que tinha lá, aí ia pra lá pras casa lá, aí mais tarde eles vinha e tornava a me bater, aí deu umas dez hora o sol foi esquentando, tinha um formigueiro de fogo assim em volta do coqueiro e o adubo que eles botavam na pro formigueiro era açúcar que era pra juntar muita formiga né. Aí aquelas formiga subia, eu de short, sem camisa, e aí aquelas formiga subia, só não mordia dentro dos meu olhos pq eu fechava, fechava os olhos e a boca pra elas não morder mas no resto no corpo ela mordia tudo, até cinco hora da tarde. Quando foi umas 5 hora da tarde me tiraram e me levaram pra uma barraca aí lá foram de identificar (...) pra mim dizer o que que eu tinha feito e o que que eu tinha visto os outro vizinho fazer, aí eu não, o que eu fiz, nada, aí eles ‘e os vizinho?’ ai eu ‘não, os vizinho eu também não vi fazer nada’ aí o pau quebrava. Aí me botava choque, botava choque na orelha, no beiço, em todo canto do corpo eles colocava choque, de maneira que foi assim até umas seis horas e assim foi cinco dias de taca, choque, afogado em tambor de água.’

                                                                                  Precatão, camponês

Este último testemunho é do Seu Beca. Ele era camponês e chegou no Pará em 1952. Foi preso em 14 de Outubro de 1973, um domingo em que ele havia trabalhado carregando sua colheita de arroz o dia inteiro.‘Terror quem fazia era o exército brasileiro daquele tempo. Acabou comigo, acabou com minha saúde, acabou com meus dentes, acabou com meus braços, ó meus braços só vão até aqui, daqui pra diante não aumenta mais. Passei dias preso,  30 dias de sofrimento foi de sofrimento porque eles estavam me julgando como terrorista né. Foi uma judiaria feia.’

Seu Beca faleceu em fevereiro de 2015. As sequelas da tortura permaneceram durante toda a sua vida. Nunca foi anistiado.

Referências[editar | editar código-fonte]

  1. MARIA DE SOUZA, Deusa (2017). 'Os familiares de desaparecidos políticos do Araguaia e a CNV: a luta por verdade e justiça.' In: A Ditadura Aconteceu Aqui. A história oral e as memórias do regime militar brasileiro. Organizadores: Carolina Dellamore, Gabriel Amato e Natália Batista. São Paulo: Letra e Voz. pp. 261 a 280 
  2. RIDENTI, Marcelo (1993). 'Sonho de guerrilha camponesa numa noite de verão do diabo'. In: O fantasma da revolução brasileira. Marcelo Siqueira Ridenti. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista. pp. 240 e 241 
  3. CARNEIRO, Ana (2011). 'Centro-Oeste e Norte, as terras pioneiras e o sangue das fronteiras’. In: Retrato da Repressão Política no Campo - Brasil 1962-1985 - Camponeses Torturados, mortos e desaparecidos. BRASÍLIA: MDA. pp. 279 e 280 
  4. BRASIL (2014) Relatório / Comissão Nacional da Verdade. BRASÍLIA: CNV. 2014. 700 páginas 
  5. BRASIL (2014) ‘A Guerrilha do Araguaia’. Relatório Comissão Nacional da Verdade. Volume 1. BRASÍLIA: CNV. 2014. pp. 694 e 695