Homem cordial: diferenças entre revisões

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Conteúdo apagado Conteúdo adicionado
m bot: Solicitado em 60642033
Etiquetas: AWB Código wiki errado
Inserção de texto complementar
Linha 1: Linha 1:
[[Imagem:Sérgio Buarque de Holanda (1957).tif|thumb|direita|150px|Sérgio Buarque de Holanda, autor do livro [[Raízes do Brasil]], obra na qual o conceito do "Homem cordial" é definido.]]
[[Imagem:Sérgio Buarque de Holanda (1957).tif|thumb|direita|150px|Sérgio Buarque de Holanda, autor do livro [[Raízes do Brasil]], obra na qual o conceito do "Homem cordial" é definido.]]
'''Homem cordial''' é um conceito desenvolvido pelo historiador brasileiro [[Sérgio Buarque de Holanda]] em seu livro ''[[Raízes do Brasil]]'', cuja primeira edição foi publicada no ano de 1936. A cordialidade descrita por Holanda faz com que o brasileiro sinta, ao mesmo tempo, o desejo de estabelecer intimidade e o horror a qualquer convencionalismo ou formalismo social. Na prática, isto faz com que as relações familiares continuem a ser o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós. Por isso, em geral, os indivíduos não conseguem compreender a distinção fundamental entre as instâncias públicas e privadas, principalmente entre o Estado e a família.<ref name="HOLANDA">{{citar livro |titulo=O Homem Cordial, In: “Raízes do Brasil”. |sobrenome=HOLANDA |nome=Sérgio Buarque de. |editora=Companhia das Letras |ano=1995 |local=São Paulo |acessodata= |edição=26ª |paginas=147}}</ref>
'''Homem cordial''' é um conceito desenvolvido pelo historiador brasileiro [[Sérgio Buarque de Holanda]] em seu livro ''[[Raízes do Brasil]]'', cuja primeira edição foi publicada no ano de 1936. A cordialidade descrita por Holanda faz com que o brasileiro sinta, ao mesmo tempo, o desejo de estabelecer intimidade e o horror a qualquer convencionalismo ou formalismo social. Na prática, isto faz com que as relações familiares continuem a ser o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós. Por isso, em geral, os indivíduos não conseguem compreender a distinção fundamental entre as instâncias públicas e privadas, principalmente entre o Estado e a família.<ref name="HOLANDA">{{citar livro |titulo=O Homem Cordial, In: “Raízes do Brasil”. |sobrenome=HOLANDA |nome=Sérgio Buarque de. |editora=Companhia das Letras |ano=1995 |local=São Paulo |acessodata= |edição=26ª |paginas=147}}</ref>

== Definição ==
O homem cordial seria a contribuição brasileira para a humanidade, na perspectiva de Sérgio Buarque. Tinha como virtudes a hospitalidade, a generosidade e a expansividade emocional, características e legado da vida rural e colonial brasileira.{{sfn |Feldman |2013 |p=123-124}} Para Holanda o verdadeiro caminho a ser seguido pelo Brasil moderno era a erradicação da cordialidade e a manutenção do personalismo, ligado ao caudilhismo, para a fundação de um sistema político orgânico. {{sfn |Mata|2016 |p=80}}
O texto mais acabado sobre sua teoria da cordialidade está no livro ‘’Raízes do Brasil’’. Porém, existe uma diferença em relação à postura de Buarque de Holanda entre o texto da primeira edição, de 1936, e o da segunda, de 1948, quando o livro foi largamente revisado. Se na primeira edição, Sérgio Buarque acreditava na possibilidade de “equilíbrio entre tradição e modernidade ou entre cordialidade – até então, um atenuante da impessoal modernização – e civilidade”, na edição de 1948 existe uma tendência para a balança pender mais para a modernização. Com isso, o homem cordial, a essência do brasileiro, seria uma herança da colonização ibérica que precisava ser relativizada para que o Brasil alcançasse a civilidade moderna.{{sfn |Carvalho |2019 |p=2-4}}

Existe uma grande confusão interpretativa do que seria o “homem cordial” para Holanda, que começou a ser desfeita na década de 1980, que postula que o “homem cordial” seria cordato, submisso e passivo. Ela em nada tem a ver com aquilo que foi esclarecido em Raízes do Brasil, pois “seu conceito de cordialidade procurava exprimir passionalismo, personalismo, irreverência em face de normas institucionais, nunca submissão”.{{sfn |Vainfas |2016 |p=20}}

Na terceira edição de Raízes do Brasil, lançada em 1956, Holanda aprofunda o debate em torno do “homem cordial” ao pontuar que a cordialidade estaria ligada a dominância da esfera privada na vida brasileira. O Estado, assim, era visto pelos brasileiros como uma espécie de segunda casa, povoada por familiares e amigos, resultando em uma sociedade patrimonialista. {{sfn| Jacino |2017 |p=35}}

== Origem ==
A origem da expressão homem cordial desenvolvida por Buarque de Holanda é controversa. Por um lado, salienta-se a ligação com os escritos do diplomata [[Ribeiro Couto|Rui Esteves Ribeiro de Almeida Couto]], que a teria criado para definir o que seria o brasileiro. Em 1931, Couto afirmava ser a disposição do brasileiro diferente da europeia, pois tinha uma inclinação sentimental mesclada à hospitalidade e à credulidade.{{sfn |Feldman |2013 |p=120-121}} Por outro lado, Pedro Meira Monteiro atribui o empréstimo ao poeta Rubén Dario, que utilizou a expressão homem cordial para falar dos poderosos argentinos em 1898. {{sfn| Gonçalves Filho| 2016}} De qualquer forma, segundo [[Antônio Cândido]], Sérgio Buarque teria adicionado o “fundamento sociológico” ao fundo conceitual dessa expressão.{{sfn| Jacino |2017 |p=34}}

== A herança da cordialidade ==
Para Holanda, o brasileiro, por ter sido gerado dentro da mistura das raças do [[Brasil colônia|mundo colonial]], herdou certas características típicas dessa empreitada, em especial dos colonizadores lusos. Por eles já se consideraram uma raça mestiça, por causa da [[invasão ibérica]] que teria produzido a mistura entre a raça europeia e a árabe, gerando um europeu visto como de segunda classe. Além disso, a proximidade de Portugal com o continente africano teria levado a uma espécie de contaminação dos ares. Nesses dois pontos, na interpretação de Sérgio Buarque, reside a indolência portuguesa, sua repulsa ao trabalho e a preferência por uma vida aventureira, e também a forma como a escravidão se desenvolveu no Brasil, vista por ele como branda se comparada a outros locais. Como não tinham nenhum ideal de pureza racial, os portugueses, segundo ele, desenvolveram uma espécie de cumplicidade com os escravos, gerando, inclusive, uma moral frouxa que rotinizava as relações entre escravizadas e senhores. {{sfn| Jacino |2017 |p=37-38}}

A herança colonial portuguesa, que conformava o “homem cordial”, não era um panegírico da colonização já que trazia consigo a ideia de que o trabalho inferiorizava o homem, um estilo de colonizar “feitorial, litorâneo, rural, improvisado, indiferente à transposição ou não de uma “portugalidade” em terra brasílica” e com forte raízes em hierarquias marcadas por uma visão aristocrática de tipo aventureira e personalista.{{sfn |Vainfas |2016 |p=26}} O completo pessimismo em relação ao legado colonial luso, contudo, esteve ausente nas primeiras duas edições de Raízes, acentuando-se a partir da quinta edição em que a herança colonial torna-se uma espécie de maldição que impede a modernização do Brasil.{{sfn |Vainfas |2016 |p=27}}



== Algumas manifestações da cordialidade ==
== Algumas manifestações da cordialidade ==
Linha 25: Linha 42:


== Críticas ao conceito ==
== Críticas ao conceito ==
As críticas ao que seria o homem cordial logo aparecerem. A primeira delas veio em 1948 do ensaísta [[Cassiano Ricardo]], que em seu “Variações sobre o Homem Cordial” argumentava que a característica essencial do brasileiro era a bondade e não a cordialidade.{{sfn| Jacino |2017 |p=35}}

O sociólogo [[Jessé Souza]], em seu livro ''[[A Elite do Atraso]]'', critica o homem cordial de Holanda por pensar o brasileiro genericamente, sem distinção de classe. Em segundo lugar, Holanda desenvolve em sua obra seu homem cordial à noção também desenvolvida por ele de [[patrimonialismo]] brasileiro. No Estado patrimonialista, a elite se juntaria para tirar proveitos privados daquilo que é público. Deste modo, para Jessé, Holanda esconde a atuação do homem cordial do [[mercado]], exaltando este em detrimento do Estado, visto como o centro de toda a corrupção e exploração da elite pelo povo, escondendo, assim, os reais conflitos de classe no Brasil e a origem social dos privilégios individuais.<ref>{{Citar livro|url=https://books.google.com.br/books/about/A_elite_do_atraso.html?id=z_SFDwAAQBAJ&redir_esc=y|título=A elite do atraso: Da escravidão a Bolsonaro (EDIÇÃO REVISTA E AMPLIADA)|ultimo=Souza|primeiro=Jessé|data=2019-01-30|editora=Estação Brasil|ano=2019|local=|página=31; 202-203|páginas=|lingua=}}</ref>
O sociólogo [[Jessé Souza]], em seu livro ''[[A Elite do Atraso]]'', critica o homem cordial de Holanda por pensar o brasileiro genericamente, sem distinção de classe. Em segundo lugar, Holanda desenvolve em sua obra seu homem cordial à noção também desenvolvida por ele de [[patrimonialismo]] brasileiro. No Estado patrimonialista, a elite se juntaria para tirar proveitos privados daquilo que é público. Deste modo, para Jessé, Holanda esconde a atuação do homem cordial do [[mercado]], exaltando este em detrimento do Estado, visto como o centro de toda a corrupção e exploração da elite pelo povo, escondendo, assim, os reais conflitos de classe no Brasil e a origem social dos privilégios individuais.<ref>{{Citar livro|url=https://books.google.com.br/books/about/A_elite_do_atraso.html?id=z_SFDwAAQBAJ&redir_esc=y|título=A elite do atraso: Da escravidão a Bolsonaro (EDIÇÃO REVISTA E AMPLIADA)|ultimo=Souza|primeiro=Jessé|data=2019-01-30|editora=Estação Brasil|ano=2019|local=|página=31; 202-203|páginas=|lingua=}}</ref>


Linha 32: Linha 51:


{{Referências}}
{{Referências}}

== Bibliografia ==
{{inícioRef|1}}
* {{citar periódico |último= Vainfas| primeiro= Ronaldo |data= 2016|título= O imbróglio de Raízes: notas sobre a fortuna crítica da obra de Sérgio Buarque de Holanda |url= http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882016000300019&lng=en&nrm=iso |periódico= Revista Brasileira de História |volume= 36| número=73 |páginas= 19-40|doi= 10.1590/1806-93472016v36n73_003 |acessodata= 6 de abril de 2021|ref=harv}}
* {{citar periódico |último= Jacino| primeiro= Ramatis |data= 2017|título= Que morra o “homem cordial” - Crítica ao livro Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda |url= https://www.revistas.usp.br/sankofa/article/view/137189 |periódico= Sankofa |volume= 10| número=19 |páginas= 19-40|doi= 10.11606/issn.1983-6023.sank.2017.137189 |acessodata= 5 de abril de 2021|ref=harv}}
* {{citar periódico |último= Feldman| primeiro= Luiz |data= 2013|título= Um clássico por amadurecimento: Raízes do Brasil |url= http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69092013000200008&lng=en&nrm=iso |periódico= Revista Brasileira de Ciências Sociais |volume= 28| número=82 |páginas= 119-140|doi= 10.1590/S0102-69092013000200008 |acessodata= 6 de abril de 2021|ref=harv}}
* {{citar periódico |último= Mata| primeiro= Sérgio da |data= 2016|título= Tentativas de desmitologia: a revolução conservadora em Raízes do Brasil |url= http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882016000300063&lng=en&nrm=iso |periódico= Revista Brasileira de História |volume= 36| número=73 |páginas= 63-87|doi= 10.1590/1806-93472016v36n73-005 |acessodata= 6 de abril de 2021|ref=harv}}
* {{citar jornal |ultimo= Gonçalves Filho |primeiro= Antonio |data=3 de agosto de 2016 |titulo= Edição crítica de ‘Raízes do Brasil’ sai nos 80 anos do livro |url= https://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,edicao-critica-de-raizes-do-brasil-sai-nos-80-anos-do-livro,10000066531|jornal= Estadão |local= São Paulo |acessodata= 7 de abril de 2021}}
* {{citar periódico |último= Carvalho| primeiro= Raphael Guilherme de |data= 2019|título= Raízes do Brasil, edição crítica: uma virada na memória da obra |url= http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69092019000200703&lng=en&nrm=iso |periódico= Revista Brasileira de Ciências Sociais |volume= 34| número=100 |páginas= 1-6|doi= 10.1590/3410003/2019.|acessodata= 7 de abril de 2021|ref=harv}}

{{-fim}}


== Leitura adicional ==
== Leitura adicional ==

Revisão das 22h21min de 7 de abril de 2021

Sérgio Buarque de Holanda, autor do livro Raízes do Brasil, obra na qual o conceito do "Homem cordial" é definido.

Homem cordial é um conceito desenvolvido pelo historiador brasileiro Sérgio Buarque de Holanda em seu livro Raízes do Brasil, cuja primeira edição foi publicada no ano de 1936. A cordialidade descrita por Holanda faz com que o brasileiro sinta, ao mesmo tempo, o desejo de estabelecer intimidade e o horror a qualquer convencionalismo ou formalismo social. Na prática, isto faz com que as relações familiares continuem a ser o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós. Por isso, em geral, os indivíduos não conseguem compreender a distinção fundamental entre as instâncias públicas e privadas, principalmente entre o Estado e a família.[1]

Definição

O homem cordial seria a contribuição brasileira para a humanidade, na perspectiva de Sérgio Buarque. Tinha como virtudes a hospitalidade, a generosidade e a expansividade emocional, características e legado da vida rural e colonial brasileira.[2] Para Holanda o verdadeiro caminho a ser seguido pelo Brasil moderno era a erradicação da cordialidade e a manutenção do personalismo, ligado ao caudilhismo, para a fundação de um sistema político orgânico. [3] O texto mais acabado sobre sua teoria da cordialidade está no livro ‘’Raízes do Brasil’’. Porém, existe uma diferença em relação à postura de Buarque de Holanda entre o texto da primeira edição, de 1936, e o da segunda, de 1948, quando o livro foi largamente revisado. Se na primeira edição, Sérgio Buarque acreditava na possibilidade de “equilíbrio entre tradição e modernidade ou entre cordialidade – até então, um atenuante da impessoal modernização – e civilidade”, na edição de 1948 existe uma tendência para a balança pender mais para a modernização. Com isso, o homem cordial, a essência do brasileiro, seria uma herança da colonização ibérica que precisava ser relativizada para que o Brasil alcançasse a civilidade moderna.[4]

Existe uma grande confusão interpretativa do que seria o “homem cordial” para Holanda, que começou a ser desfeita na década de 1980, que postula que o “homem cordial” seria cordato, submisso e passivo. Ela em nada tem a ver com aquilo que foi esclarecido em Raízes do Brasil, pois “seu conceito de cordialidade procurava exprimir passionalismo, personalismo, irreverência em face de normas institucionais, nunca submissão”.[5]

Na terceira edição de Raízes do Brasil, lançada em 1956, Holanda aprofunda o debate em torno do “homem cordial” ao pontuar que a cordialidade estaria ligada a dominância da esfera privada na vida brasileira. O Estado, assim, era visto pelos brasileiros como uma espécie de segunda casa, povoada por familiares e amigos, resultando em uma sociedade patrimonialista. [6]

Origem

A origem da expressão homem cordial desenvolvida por Buarque de Holanda é controversa. Por um lado, salienta-se a ligação com os escritos do diplomata Rui Esteves Ribeiro de Almeida Couto, que a teria criado para definir o que seria o brasileiro. Em 1931, Couto afirmava ser a disposição do brasileiro diferente da europeia, pois tinha uma inclinação sentimental mesclada à hospitalidade e à credulidade.[7] Por outro lado, Pedro Meira Monteiro atribui o empréstimo ao poeta Rubén Dario, que utilizou a expressão homem cordial para falar dos poderosos argentinos em 1898. [8] De qualquer forma, segundo Antônio Cândido, Sérgio Buarque teria adicionado o “fundamento sociológico” ao fundo conceitual dessa expressão.[9]

A herança da cordialidade

Para Holanda, o brasileiro, por ter sido gerado dentro da mistura das raças do mundo colonial, herdou certas características típicas dessa empreitada, em especial dos colonizadores lusos. Por eles já se consideraram uma raça mestiça, por causa da invasão ibérica que teria produzido a mistura entre a raça europeia e a árabe, gerando um europeu visto como de segunda classe. Além disso, a proximidade de Portugal com o continente africano teria levado a uma espécie de contaminação dos ares. Nesses dois pontos, na interpretação de Sérgio Buarque, reside a indolência portuguesa, sua repulsa ao trabalho e a preferência por uma vida aventureira, e também a forma como a escravidão se desenvolveu no Brasil, vista por ele como branda se comparada a outros locais. Como não tinham nenhum ideal de pureza racial, os portugueses, segundo ele, desenvolveram uma espécie de cumplicidade com os escravos, gerando, inclusive, uma moral frouxa que rotinizava as relações entre escravizadas e senhores. [10]

A herança colonial portuguesa, que conformava o “homem cordial”, não era um panegírico da colonização já que trazia consigo a ideia de que o trabalho inferiorizava o homem, um estilo de colonizar “feitorial, litorâneo, rural, improvisado, indiferente à transposição ou não de uma “portugalidade” em terra brasílica” e com forte raízes em hierarquias marcadas por uma visão aristocrática de tipo aventureira e personalista.[11] O completo pessimismo em relação ao legado colonial luso, contudo, esteve ausente nas primeiras duas edições de Raízes, acentuando-se a partir da quinta edição em que a herança colonial torna-se uma espécie de maldição que impede a modernização do Brasil.[12]


Algumas manifestações da cordialidade

Na religiosidade

Holanda afirma que a superficialidade da vida religiosa do brasileiro se deve à aversão ao ritualismo, à irreverência, à cordialidade excessiva. "No Brasil, [...], foi justamente o nosso culto sem obrigações e sem rigor, intimista e familiar,[...] que dispensava no fiel todo esforço, toda diligência, toda tirania sobre si mesmo, o que corrompeu, pela base, o nosso sentimento religioso". É uma religiosidade "de superfície, menos atenta ao sentido íntimo das cerimônias do que ao colorido e à pompa exterior, quase carnal em seu apego ao concreto e em sua rancorosa incompreensão de toda verdadeira espiritualidade". [13]

Holanda cita o relato de Auguste de Saint-Hilaire, que visitou São Paulo na semana santa de 1822:

Ninguém se compenetra do espírito das solenidades. Os homens mais distintos delas participam apenas por hábito, e o povo comparece como se fosse a um folguedo. No ofício de Endoenças, a maioria dos presentes recebeu a comunhão da mão do bispo. Olhavam à direita e à esquerda, conversavam antes desse momento solene e recomeçavam a conversar logo depois.[...] As ruas viviam apinhadas de gente, que corria de igreja a igreja, mas somente para vê-las, sem o menor sinal de fervor.
— Auguste de Saint-Hilaire

Holanda diz ainda que os cultos apelam só ao sentimento e aos sentidos, e não à razão ou à vontade. Para ilustrar esse ponto, do "colorido e a pompa exterior", o autor cita Daniel Parish Kidder, missionário americano que esteve no Brasil no começo do século XIX, que escreve em tom irônico:

Em meio do ruído e da mixórdia, da jovialidade e da ostentação que caracterizam todas essas celebrações gloriosas, pomposas, esplendorosas, quem deseje encontrar, já não digo estímulo, mas ao menos lugar para um culto mais espiritual, precisará ser singularmente fervoroso.
— Daniel Parish Kidder

Na linguagem

O modo de ser cordial, usando o modo de falar brasileiro como exemplo, parece estar refletido no uso frequente de diminutivos de sufixo -inho. Essa terminação...

...serve para nos familiarizar mais com as pessoas ou os objetos e, ao mesmo tempo, para lhes dar relevo. É a maneira de fazê-los mais acessíveis aos sentidos e também de aproximá-los do coração.

Outro exemplo é a tendência a omitir o nome de família como forma de tratamento. Apesar de não ser característica exclusiva do brasileiro, esse hábito busca suprimir distâncias: "O uso do simples prenome importa em abolir psicologicamente as barreiras determinadas pelo fato de existirem famílias diferentes e independentes umas das outras."[13]

Confusão entre homem cordial e homem bom

Tanto Sérgio Buarque de Holanda quanto Ribeiro Couto acreditavam em um “fundo emotivo extremamente rico e transbordante” que caracteriza o homem cordial. Contudo, suas ideias quase não se aproximavam. Pois, enquanto Couto define o homem cordial como um “espírito hospitaleiro” com “tendência à credulidade”, Holanda analisa o tal “fundo emotivo” que é visto por ele como o responsável por conceber a cordialidade brasileira, deixando claro que “a inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, visto que uma e outra nascem do coração, procedem da esfera do íntimo, do familiar, do privado”. Desta forma, “o ibero-americano pleno de disponibilidade sentimental”[14] e bondade, conforme o descreve Ribeiro Couto é exatamente o oposto do brasileiro identificado por Sérgio Buarque de Holanda a partir do momento em que a cordialidade apresentada por este não o é, como o próprio explicou para o principal crítico ao seu conceito, o escritor Cassiano Ricardo: “[...] pela expressão ‘cordialidade’, se eliminam aqui, deliberadamente, os juízos éticos e as intenções apologéticas a que parece inclinar-se o sr. Cassiano Ricardo, quando prefere falar em ‘bondade’ ou em ‘homem bom’”[15] . Por outro lado, como sugere Elvia Bezerra, é possível que ao empregar um sentido pouco usado ou o "sentido exato e estritamente etimológico"[16] da palavra cordial para mostrar o que é “referente ou próprio do coração”, Holanda tenha criado “sucessivos mal-entendidos”[17] ainda que involuntariamente. E mesmo depois de oitenta anos e inúmeras explicações, muitas pessoas insistem em atribuir ao conceito desenvolvido por ele o significado que Ribeiro Couto concedeu ao homem cordial.

Críticas ao conceito

As críticas ao que seria o homem cordial logo aparecerem. A primeira delas veio em 1948 do ensaísta Cassiano Ricardo, que em seu “Variações sobre o Homem Cordial” argumentava que a característica essencial do brasileiro era a bondade e não a cordialidade.[6]

O sociólogo Jessé Souza, em seu livro A Elite do Atraso, critica o homem cordial de Holanda por pensar o brasileiro genericamente, sem distinção de classe. Em segundo lugar, Holanda desenvolve em sua obra seu homem cordial à noção também desenvolvida por ele de patrimonialismo brasileiro. No Estado patrimonialista, a elite se juntaria para tirar proveitos privados daquilo que é público. Deste modo, para Jessé, Holanda esconde a atuação do homem cordial do mercado, exaltando este em detrimento do Estado, visto como o centro de toda a corrupção e exploração da elite pelo povo, escondendo, assim, os reais conflitos de classe no Brasil e a origem social dos privilégios individuais.[18]

Ver também

Referências

  1. HOLANDA, Sérgio Buarque de. (1995). O Homem Cordial, In: “Raízes do Brasil”. 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras. 147 páginas 
  2. Feldman 2013, p. 123-124.
  3. Mata 2016, p. 80.
  4. Carvalho 2019, p. 2-4.
  5. Vainfas 2016, p. 20.
  6. a b Jacino 2017, p. 35.
  7. Feldman 2013, p. 120-121.
  8. Gonçalves Filho 2016.
  9. Jacino 2017, p. 34.
  10. Jacino 2017, p. 37-38.
  11. Vainfas 2016, p. 26.
  12. Vainfas 2016, p. 27.
  13. a b Holanda, Sérgio Buarque de (2016). «O homem cordial». Raízes do Brasil. [S.l.]: Companhia das Letras 
  14. BEZERRA, Elvia. «"Ribeiro Couto e o homem cordial"» (PDF). p. 127. Consultado em 28 de julho de 2016 
  15. Holanda, Sérgio Buarque de (1995). "O Homem Cordial". In: Raízes do Brasil. 26ªed. São Paulo: Companhia das Letras. 205 páginas 
  16. HOLANDA, Sérgio Buarque de (1995). “O Homem Cordial”. In: “Raízes do Brasil” 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras. 204 páginas 
  17. BEZERRA, Elvia. «"Ribeiro Couto e o homem cordial"» (PDF). p. 130. Consultado em 28 de julho de 2016 
  18. Souza, Jessé (30 de janeiro de 2019). A elite do atraso: Da escravidão a Bolsonaro (EDIÇÃO REVISTA E AMPLIADA). [S.l.]: Estação Brasil. p. 31; 202-203 

Bibliografia

Leitura adicional

  • HOLANDA, Sérgio Buarque. O Homem Cordial. São Paulo: Cia. das Letras, 2012. 112p ISBN 9788563560445

Ligações externas