Discussão:Erving Goffman

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Artigo escrito por José Roberto Malufe em 1982 [1], para a Folha de S.Paulo, em razão da morte de Erving Goffman.

Erving Goffman (1922 – 1982)

O que existe de comum entre vigaristas a enganar otários, espiões a driblar contra-espiões, mutilados e estigmatizados a conversar com “normais”, freqüentadores de cassinos às voltas com máquinas caça-níqueis, internos de hospital psiquiátrico a burlar a vigilância de atendentes, desconhecidos que trocam um olhar furtivo no meio do trânsito ordeiro de pedestres, alguém que fala sozinho, o modo como os homens e mulheres ao retratados em fotografias de publicidade, a fala dos locutores de rádio, médicos fazendo piada durante uma cirurgia e crianças divertindo-se num carrossel?

Simples: todos foram analisados, com uma atenção obsessiva nos detalhes descritivos, por Erving Goffman, sociólogo de origem canadense, falecido na semana passada em Filadélfia (Pensilvânia, EUA), aos sessenta anos de idade.

É raro encontrar um sociólogo que não tenha lido pelo menos uma das quase cinqüenta publicações feitas por Goffman, desde 1949, ano de sua dissertação de mestrado, na Universidade de Chicago, até o ano passado, quando aparece Phorms or Talk (Philadélphia: University of Pensylvania Press, 1981), reunindo seus últimos trabalhos, mais próximos da sociolingüística.

Por exemplo, o livro A Representação do eu na Vida Cotidiana (Petrópolis, Vozes, 1975) já vendeu mais de meio milhão de exemplares, em dez línguas diferentes, inclusive chinês e húngaro; Estigma (Rio de Janeiro: Zahar, 1975) está na 27ª edição, nos Estados Unidos, e Manicômios, Prisões e Conventos (São Paulo, Perspectiva, 1974) foi, em parte, responsável por muita coisa do que já aconteceu nos últimos vinte anos, em termos de reformulação, nos hospitais psiquiátricos de diversos países. Além disso, Goffman é um caso raro de sociólogo que tem audiência fora dos quadros profissionais da sociologia, sendo lido por administradores de empresa, psicólogos, juristas, antropólogos, e assim por diante.

Para os que gostam de Goffman, há algo de herói no personagem representado por ele. Por exemplo, a coragem de internar-se num grande hospital psiquiátrico, para ver como é “realmente” ser tratado como um louco; ou empregar-se como funcionário de um cassino, em Nevada, para ver “por dentro” o jogo e os seus jogadores.

Além dessa face mais “popular”, muitos estudiosos têm encontrado razões para distinguir uma face mais “erudita” em Goffman, situando-o como continuador de clássicos como Durkheim, Radcliffe-Brown, Simmel, Cooley, Freud, Satre, Kennet Burke, Wittgenstein, Aunstin e Alfred Schutz.

Para os que não gostam de Goffman, uma das peças de combate mais importantes foi a crítica feita por Alvin Gouldner, segundo a qual a sociologia de Goffman ignora o conflito de classes e o fenômeno do poder, não passando de um reflexo da “experiência recente da classe média culta”. Em contraposição, outros autores, como Mary Rogers, tentaram demonstrar que essa omissão é mais aparente que real, afirmando que a crítica de Gouldner foi inadequada e superficial, e que o mundo internacional documentado por Goffman depende precisamente da compreensão da questão do poder. Também alguns representantes da “sociologia radical” saíram em defesa de Goffman, afirmando que toda uma geração de sociólogos, durante os anos cinqüenta e sessenta, foi influenciada pelos seus trabalhos, assumindo uma atitude mais crítica em relação aos estabelecimentos sociais nos quais realizavam suas pesquisas. Na mesma linha, George Gonos tentou demonstrar que a sociologia de Goffman só pode ser compreendida como refletindo o ponto de vista de classe do “lumpenproletariado” e que a burguesia ocupa, nos seus escritos, a posição metafórica do “otário” do conto-do-vigário.

Para os que se ocupam profissionalmente de enquadrar autores em categorias. Goffman é um pesadelo. Lofland, em 62, considerou-o como uma “sociologia existencialista”; Dreitzel, em 70, como “interacionista simbólico”; Denzin, em 72, como representante da “sociologia formal”; Gonos, em 77, como “uma variante norte-americana do estruturalismo contemporâneo”; Young, em 71, como um “sociólogo radical praticante”; Geertz, em 80, como o representante de um estilo de interpretação nas ciências sociais baseado numa concepção da vida social como um jogo; e por aí vai, pois, segundo outros, Goffman é fenomenólogo, etnomenólogo, etc.

Essa pequena amostra das respostas críticas à obra de Goffman já basta para mostrar o quanto se afastou de qualquer tipo de ortodoxia. Embora sempre se declarasse preocupado com restituir à sociologia um prestígio acadêmico que ele julgava estar em declínio e talvez exatamente por causa disso, Goffman demonstrou pouco respeito pelos procedimentos tradicionais de pesquisa, apresentados nos manuais como “a” metodologia científica. Usou profusamente, com funções ilustrativas, o teatro e a literatura, recortes de jornal e relatos informais feitos por gente interessante. Sobretudo, fez uso da liberdade de olhar e ver tudo o que se passava à sua volta. Creio não haver dúvidas de que deve ser considerado como um dos verdadeiros criadores do estudo da vida cotidiana.

A questão do significado político da obra de Goffman permanece sujeita a uma grande ambigüidade. Já foi notado, por diversos autores, que Goffman escreve sempre com um olho voltado para a literatura. Não é raro que o leitor se sinta distante do discurso habitual da “ciência”, frente a um texto que faz lembrar as realizações as realizações mais altas da arte narrativa ficcional. Ao fazer a etnografia da fraude na vida cotidiana, uma fina ironia se substitui ao comentário moralizante explícito: “como atuantes, nós somos mercadores da moralidade”. Pouco habituados à ironia dramática, à retórica, da ficção em escritos supostamente “científicos”, nós então perguntamos: de que lado ele está? Nos momentos em que o texto se demora, num excesso de detalhes, para tornar visível um submundo atroz, que viceja onde quer que se imponha um mundo, não teríamos o direito de exigir do autor pelo menos uma palavra de consideração moral? Talvez esse “silêncio do autor” explique, em parte, uma leitura como a de Gouldner, para quem Goffman estaria endossando um estado de coisas, e não apenas mostrando-o. Existem razões, entretanto, para se encarar a leitura de Couldner como demasiadamente literal e ingênua. O “silêncio do autor” pode ser apenas uma manobra, parte do arsenal de um mestre do disfarce, e uma manobra que pode funcionar bem, se considerarmos, por exemplo, o efeito devastador de Manicômios, Prisões e Conventos sobre a imagem oficial de tantas instituições totalitárias, como os hospitais psiquiátrico se prisões.

Diversos autores têm reconhecido a importância da obra de Goffman: para Geertz, trata-se do “mais celebrado sociólogo norte-americano do momento, e certamente o mais engenhoso”,: segundo Berman, “o Kafka do nosso tempo”; Harré menciona a opinião de que Goffman seria “o Copérnico das ciências sociais”; para Collins, trata-se do “mais importante teórico da sociologia desde a Segunda Guerra; mesmo um crítico de Goffman, como Sennett, reconhece nele “um observador da interação humana extremamente sensível e agudo”.

Agora, o ator já não está em cena, e não mais pode informar sobre as suas intenções. Seu desaparecimento na finitude terá acrescentado um caráter de permanência às ambigüidades, às dúvidas e às inquietações que nos legou com sua obra.



[1] José Roberto Malufe é professor de Pós-graduação na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e elabora atualmente (1982) tese de doutorado sobre a sociologia de erving Goffman.