Igreja invisível

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Igreja invisível ou igreja mística, é um conceito teológico cristão de uma Igreja cristã "invisível" de eleitos, que são conhecidos apenas por Deus, em contraste com a "igreja visível" - isto é, o corpo institucional na terra que prega o evangelho e administra os sacramentos. Cada membro da igreja invisível é "salvo"; embora a igreja visível contenha todos os indivíduos que são salvos, também contém alguns que são "não salvos".[1] De acordo com esta visão, passagens bíblicas como Mateus 7:21–27,[2] Mateus 13:24–30,[3] e Mateus 24:29–51,[4] falam sobre esta distinção.

Histórico[editar | editar código-fonte]

O conceito teológico de igreja invisível surge sobretudo no contexto de movimentos cristãos anti-institucionais que, em vários momentos da história, contestam a formalização e a rigidificação organizacional das estruturas eclesiásticas. Com efeito, não só são vistos como sufocantes da espiritualidade e da espontaneidade da experiência cristã, mas, na lógica das instituições, estas favorecem frequentemente o aspecto quantitativo em detrimento do qualitativo. As instituições têm, portanto, a tendência de atrair, para o seu âmbito, personalidades servis e ambiciosas de poder, alheias à uma experiência genuína de fé. Por outro lado, porém, os movimentos anti-institucionais têm tendência, nas suas aspirações à pureza da fé e da Igreja, a tornarem-se puritanos e sectários, revelando-se assim igualmente opressivos.

É assim que surge entre os donatistas o conceito de igreja invisível, a quem responde Agostinho de Hipona que, na verdade, contesta a legitimidade da sua postura anti-institucional. Segundo os donatistas, de facto, a igreja tem uma dupla dimensão, a igreja visível, inferior e hierarquicamente constituída e a igreja invisível, composta pelos santos fiéis e governada pelo Espírito Santo. O próprio Agostinho, porém, distingue entre o verdadeiro corpo de Cristo, que consiste nos filhos escolhidos de Deus desde a eternidade, e o corpo místico de Cristo, que inclui todos os batizados.[5]

O mesmo se encontra no arianismo, no movimento cátaro, no profetismo de Joaquim de Fiore transposto pela corrente espiritual do franciscanismo, no reformismo de John Wyclif e Jan Hus,[6] em Marsílio de Pádua, chegando ao dualismo eclesiológico entre ecclesia abscondita (espiritualis) e ecclesia universalis.

Este conceito foi posteriormente adotado pela Reforma Protestante como forma de distinguir entre a Igreja Católica "visível" que, segundo os Reformadores, era em grande parte corrupta, e aqueles dentre os quais eram crentes autênticos. Os Reformadores não pretendem que haja duas igrejas separadas, mas duas classes de cristãos na mesma comunhão exterior. A "igreja invisível" está na "igreja visível" como a alma está no corpo ou como a ostra na concha, mas só Deus sabe com certeza quem pertence à igreja invisível e será finalmente salvo. Neste sentido, os seus verdadeiros filhos são invisíveis, isto é, não reconhecíveis com certeza.

Lutero, que adotou abertamente a concepção de Jan Hus na Disputa de Leipzig, aplicou pela primeira vez o termo "invisível" à igreja mencionada no Credo dos Apóstolos.[7] A Confissão de Augsburgo define a Igreja como: "A assembleia de santos (ou crentes) na qual o evangelho é puramente ensinado e os sacramentos são devidamente administrados" (excluindo assim os batistas e os quacres).

A respeito da eclesiologia luterana, Roberta Saracino escreve:[8]

Para compreender a organização eclesiástica luterana é necessário aprofundar a relação entre o ius divinum e o ius humanum. Para isso devemos recorrer ao ensinamento da Reforma, marcado por “uma profunda reflexão jurídica”, expressa pelas 95 teses de Martinho Lutero. A teologia luterana manteve-se nos passos da tradição judaico-cristã, também no que diz respeito à linguagem que utilizou; portanto, o crente, como justificado, faz parte do concilium iustorum, que nem a razão nem a autoridade eclesiástica podem circunscrever, e que constitui a ecclesia abscondita dos verdadeiros fiéis, dependente do poder da palavra divina. É a palavra pregada, viva voce, que se torna o Evangelho que cria a Igreja como criatura Verbi. Nesta ação da Palavra encontram-se duas Igrejas: a verdadeira, invisível dos verdadeiros fiéis e a ainda mista de justos e injustos, corpus permixtum, nas suas igrejas particulares, que falta estruturar de tal forma que a única ação iure divino, a Palavra, possa funcionar. Todo o resto, as estruturas necessárias, a liturgia, o culto, são ius humanum, portanto o campo do direito positivo, que deve materializar-se como lex caritati.

O sistema teológico reformado, no entanto, estende o domínio da igreja invisível ou verdadeira (e a própria possibilidade de salvação) para além dos limites da Igreja visível, sustentando que o Espírito Santo não está ligado aos meios ordinários da graça, mas pode trabalhar e salvar "quando, onde e como ele quiser".

Foi Zwingli quem primeiro introduziu o termo "igreja invisível", significando "visível" a comunidade de todos aqueles que levam o nome de cristãos e "invisíveis", a totalidade dos verdadeiros crentes de cada época. Ele inclui na igreja invisível os pagãos piedosos, todas as crianças que morreram na infância, sejam elas batizadas ou não.[nota 1] Nesta ideia ele antecipa as concepções do liberalismo teológico moderno. Calvino define a distinção mais claramente do que os outros reformadores e ela passa para a Segunda Confissão Helvética, a de Westminster e outras.[9]

Mais tarde foi o pietismo que desenvolveu ainda mais este conceito, distinguindo, no contexto sociológico da igreja, uma "ecclesiola in ecclesia", isto é, fazendo uma distinção entre aqueles que pertencem à igreja apenas por razões sociológicas e formais (igreja visível) e aqueles que foram regenerados espiritualmente pelo Espírito Santo, passaram por uma experiência de conversão e demonstram fé viva e compromisso no caminho do discipulado cristão. Esta mesma distinção é particularmente sentida hoje no movimento evangélico, em oposição às igrejas institucionais ("históricas") que eles vêem como "contaminadas pelo espírito deste mundo" e, portanto, num estado de apostasia.[10]

Exposição do conceito[editar | editar código-fonte]

O teólogo J. I. Packer escreve:

"[Igreja] invisível não significa que não podemos ver sinais de sua presença, mas que não podemos conhecê-la como Deus a conhece (ver 2 Timóteo 2:19), isto é, qual dos membros batizados e professos da igreja como uma instituição organizada, são regenerados internamente e portanto pertencem à igreja como uma comunhão espiritual de pecadores que amam o seu Salvador. Jesus ensina que na igreja organizada sempre haveria pessoas que se acham cristãs e se fazem passar por cristãs, algumas até tornando-se ministros de culto, mas que nunca foram verdadeiramente renovados em seus corações e que serão, portanto, expostos e rejeitados no dia do julgamento (...) Não é que existam duas igrejas, mas que a comunidade visível sempre contém imitações de cristãos que só Deus sabe que não são autênticos (e que eles próprios saberiam se quisessem)".[11]

A Confissão de Fé de Westminster declara que a igreja "... tem sido ora mais, ora menos visível, e as igrejas particulares, membros dela, são mais ou menos puras de acordo com a extensão em que a doutrina do evangelho é ensinada e aceita, as ordenanças administradas e o culto público celebrado com mais ou menos pureza. As igrejas mais puras debaixo do céu estão sujeitas à contaminação e ao erro, algumas degeneraram a ponto de não serem mais igrejas de Cristo, mas sinagogas de Satanás". Apesar de tudo, porém, "haverá sempre na terra uma igreja para adorar a Deus segundo a sua vontade" (XXV, 4-5).[12]

Isto é, nas ambiguidades e contradições das realidades históricas humanas, sempre existirão cristãos autênticos que, regenerados espiritualmente pelo Espírito Santo, experimentaram uma conversão autêntica a Cristo, acreditam nele, amam-no e obedecem-lhe de bom grado. Estes são aqueles que formam a verdadeira igreja, pessoas de todos os tempos e países, aqueles que Deus escolheu para a salvação desde antes da fundação do mundo. Como a Confissão de Westminster sempre afirma: "A Igreja Católica ou Universal, que é invisível, consta do número total dos eleitos que já foram, dos que agora são e dos que ainda serão reunidos em um só corpo sob Cristo, seu cabeça; ela é a esposa, o corpo, a plenitude daquele que cumpre tudo em todas as coisas. A Igreja Visível, que também é católica ou universal sob o Evangelho (não sendo restrita a uma nação, como antes sob a Lei) consta de todos aqueles que pelo mundo inteiro professam a verdadeira religião, juntamente com seus filhos; é o Reino do Senhor Jesus, a casa e família de Deus, fora da qual não há possibilidade ordinária de salvação" (XXV, 1-2).[13]

Portanto, segundo a teologia protestante, a "igreja perfeita" não existe: sempre haverá pessoas dentro da igreja que professam ser cristãs ou que até ocupam cargos de responsabilidade na igreja mas que, na verdade, o são por motivos espúrios ou pelas razões erradas. Sempre haverá pessoas que afirmam ser cristãs, que acreditam e amam a Cristo, quando na verdade os seus corações estão longe dele. Muitas vezes acontece, que alguns fazem parte da igreja apenas por conveniência social.[14]

O próprio Jesus afirma que no dia do julgamento: "...Nem todo aquele que me diz: 'Senhor, Senhor', entrará no Reino dos céus, mas apenas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus. Muitos me dirão naquele dia: 'Senhor, Senhor, não profetizamos nós em teu nome? Em teu nome não expulsamos demônios e não realizamos muitos milagres? Então eu lhes direi claramente: 'Nunca os conheci. Afastem-se de mim vocês, que praticam o mal!" (Mateus 7:21-23).[15] ​​​​A real condição de seus corações, embora a igreja exerça o discernimento e a disciplina necessária entre seus membros, pode ser muito elusiva e, sem dúvida, invisível. Contudo, não é invisível a Deus, e só ele pode conhecer o cristão autêntico.

Não sabendo com certeza quem são os eleitos, a igreja cristã, segundo o entendimento protestante, deve ser tolerante e generosa no seu discernimento, evitando os extremos do rigorismo disciplinar típico dos grupos sectários, bem como o inclusivismo liberal generalizado que tudo admite e tolera, pensando em "não julgar" e deixar esse julgamento para Deus. Qualquer um desses extremos não estaria em conformidade com o espírito de Cristo e com os ensinamentos do Novo Testamento.

A Segunda Confissão Helvética afirma:

"Por outro lado, nem todos os que são contados no número da Igreja são santos ou membros vivos e verdadeiros da Igreja. Pois há muitos hipócritas que externamente ouvem a palavra de Deus e publicamente recebem os sacramentos, e parecem invocar a Deus somente por meio de Cristo, confessar que Cristo é a sua única justiça, e adorar a Deus e exercer os deveres de caridade e por algum tempo suportar com paciência as desgraças. E, não obstante, interiormente, estão completamente destituídos da verdadeira iluminação do Espírito, de fé e de sinceridade de coração, e de perseverança até o fim. Mas finalmente o caráter destes homens, em sua maior parte, será manifestado. O apóstolo São João diz: “Eles saíram de nosso meio, mas não eram dos nossos; porque, se tivessem sido dos nossos, teriam permanecido conosco” (I João 2.19). Todavia, conquanto simulem piedade, não são da Igreja, ainda que sejam considerados estarem na Igreja, exatamente como os traidores numa república estão incluídos no número de seus cidadãos, antes que sejam descobertos; e, como o joio e a palha se encontram no trigo, e como inchaços e tumores se acham no corpo sadio, quando ao contrário são doenças e deformidades e não genuínos membros do corpo. E assim a Igreja de Deus é muito adequadamente comparada a uma rede que retira peixes de todas as espécies, e a um campo no qual se encontram joio e trigo (Mat 13.24 ss, 47 ss). Consequentemente, devemos ser muito cuidadosos, não julgando antes da hora, nem tentando excluir e rejeitar ou separar aqueles aos quais o Senhor não quer excluídos nem rejeitados, e nem aqueles que não podemos eliminar sem prejuízo para a Igreja. Por outro lado, devemos estar vigilantes para que, enquanto os piedosos ressonam, os ímpios não ganhem terreno e causem mal à Igreja."[16]

Ver também[editar | editar código-fonte]

Referências[editar | editar código-fonte]

  • Este artigo foi inicialmente traduzido, total ou parcialmente, do artigo da Wikipédia em italiano cujo título é «Chiesa invisibile».
  1. Weaver, Jonathan (1900). Christian Theology: A Concise and Practical View of the Cardinal Doctrines and Institutions of Christianity (em inglês). [S.l.]: United Brethren Publishing House. p. 245. Há distinções entre a igreja geral invisível e a igreja geral visível, que não é necessário levar a cabo até à última análise. Em certo sentido, ambas são visíveis. Todos os que são membros da igreja geral invisível são membros da igreja geral visível. Mas todos os que são membros da igreja geral visível não são membros da igreja geral invisível. Uma diferença clara e distinta entre a igreja visível e a invisível pode ser declarada assim: (1) A igreja geral invisível inclui todos de toda tribo, língua, povo e nação que são verdadeiramente salvos. Nenhuma denominação tem em sua comunhão todos os que pertencem à igreja invisível. (2) A igreja visível inclui todos os que são reconhecidos como membros de uma igreja cristã. Nenhuma denominação pode reivindicar com justiça ser a igreja geral visível. 
  2. «Mateus 7:21–27». bibliaonline.com.br. Consultado em 7 de abril de 2024 
  3. «Mateus 13:24–30». bibliaonline.com.br. Consultado em 7 de abril de 2024 
  4. «Mateus 24:29–51». bibliaonline.com.br. Consultado em 7 de abril de 2024 
  5. Corpus Christi merum, and corpus Christi mixtum. De Doctr. Christ. III. 32; De Baptismo contra Donatistas, IV. 5. O donatista Ticônio usa a expressão "o duplo corpo de Cristo" (corpus Christi bipartitum)
  6. Wyclif, John (1886). De Ecclesia (em inglês). Londres: The Wyclif Society 
  7. Ele fala de ecclesia invisibilis em seu segundo comentário sobre Gálatas, vol. III, pág. 38. Erlangen
  8. Roberta Saracino. «La Chiesa Evangelica luterana in Italia» (PDF). Consultado em 10 de abril de 2024. Arquivado do original (PDF) em 30 de julho de 2016 
  9. «Confissão de Fé de Westminster». Consultado em 13 de abril de 2024 
  10. Marciel A. Delfino (11 de julho de 2021). «A APOSTASIA DOS ÚLTIMOS TEMPOS». Instituto Teológico Adonai. Consultado em 13 de abril de 2024 
  11. Packer, J.I. (1993). Concise Theology: A Guide to Historic Christian Beliefs (em inglês). Wheaton, IL: Tyndale House Publishers, Inc. p. 202 
  12. «Confissão de Fé de Westminster». monergismo.com. XXV, 4-5. Consultado em 21 de abril de 2024 
  13. «Confissão de Fé de Westminster». monergismo.com. XXV, 1-2. Consultado em 22 de abril de 2024 
  14. «A salvação para católicos e protestantes». Veritatis Splendor. 15 de junho de 2004. Consultado em 22 de abril de 2024 
  15. Mateus 7:21-23
  16. «Segunda Confissão Helvética» (PDF). monergismo.com. 1566. 17. Consultado em 23 de abril de 2024 

Notas

  1. Expos. Christ. Fidei (escrito em 1531 e publicado por Bullinger, 1536): "Credimus et unam sanctam esse, h.e. universalem ecclesiam. Eam autem esse aut visibilem aut invisibilem. Invisibilis est, juxta Pauli verbum, quae coelo descendit, hoc est, qua Spiritu Sancto illustrante Deum cognoscit et amplectitur. De ista ecclesia sunt quotquot per universum orbem credunt. Vocatur autem invisibilis non quasi qui credunt sint invisibiles, sed quod humanis oculis non patet quinam credant; sunt enim fideles soli Deo et sibi perspecti. Visibilis autem ecclesia non est Pontifex Romanus cum reliquis cidarim gestantibus, sed quotquot per universum orbem Christo nomen dederunt." Opera, IV. 58. Niemeyer, Coll. Confess., p. 53.

Ligações externas[editar | editar código-fonte]