Mito da escravidão de irlandeses

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O mito da escravidão de irlandeses é uma pseudo-história que falsamente confunde o desterro penal e a servidão civil do povo irlandês durante os séculos XVII e XVIII com a experiência de escravidão hereditária dos africanos.

Alguns nacionalistas brancos, e outros que querem minimizar os efeitos da escravidão hereditária sobre africanos e seus descendentes, usaram essa falsa equivalência para promover o racismo contra afro-americanos[1] ou para alegar que os afro-americanos exageram na sua busca de justiça.[2]

O mito dos escravos irlandeses também foi invocado por alguns ativistas irlandeses para destacar a opressão britânica do povo irlandês e suprimir a história do envolvimento irlandês no comércio transatlântico de escravos.[3]

O mito está em circulação desde pelo menos os anos 1990, e foi disseminado em memes online e debates nas mídias sociais.[4]

Em 2016, acadêmicos mundiais e historiadores irlandeses escreveram uma carta aberta aos sites de notícias para condenar essa crença que definiram como “propaganda racista não-histórica”.[5]

Pressupostos históricos: servidão "por contrato"[editar | editar código-fonte]

A ideia de que os irlandeses foram escravizados não é nova. Segundo o historiador Liam Kennedy, esse conceito foi popular entre os membros do movimento Jovem Irlanda, do século XIX. Como exemplo disso o líder John Mitchel foi particularmente sincero quando afirmou que os irlandeses foram escravizados, mas foi um grande defensor do comércio transatlântico de escravos africanos.[6]

Alguns livros usaram o termo "escravos" para reportar aos irlandeses que perderam sua liberdade e foram forçados a partir de suas casas na Irlanda em navios, contra sua vontade, para o Novo Mundo,[7] especialmente as colônias britânicas.[8]

O termo "escravo" ou "escravo por contrato" ("bond slaves", no original) era utilizado para designar o sistema de servidão por "tempo determinado", e não era perpétuo. O período habitual de servidão nesses contratos variava de quatro a nove anos, após os quais o servo voltava a ser livre - podendo então viajar sem empecilhos, possuir imóveis, trabalhar sob salário e até acumular riqueza; podia se casar com quem escolhesse e seus filhos nasciam livres.[7] O termo jurídico britânico para essa situação era "indentured servants" ("servos por contrato", em livre tradução) e tanto valia para aqueles que aderiram voluntariamente ao período de servidão quanto para aqueles que foram sequestrados e forçados a embarcar num navio para trabalhar. Apesar dessa clara distinção com o sistema escravocrata, o folclore e até livros irlandeses se referiram a esses servos temporários como "escravos" até o século XX.[8][1]

Durante o século XVII dezenas de milhares de "servos por contrato" tanto ingleses quanto irlandeses imigraram para a América Britânica. A maioria deles o fez voluntariamente e de bom grado, como modo de atravessarem o Atlântico - mas cerca de dez mil deles foram transportados como punição por se rebelarem contra o domínio inglês sobre a Irlanda, ou em degredo por outros crimes, sendo depois subordinados a trabalhos forçados durante certo período como sentença.[9][10]

Nesse mesmo período o tráfico de escravos africanos vitimou milhões de pessoas, levando-as para as Américas, inclusive as colônia britânicas, onde eram forçados ao trabalho. Seja na Irlanda, na África ou no Caribe, cidadãos irlandeses se beneficiaram do tráfico negreiro, como comerciantes de escravos, agentes, investidores e proprietários. Segundo o historiador Nini Rodgers "todo grupo na Irlanda tinha comerciantes que se beneficiavam do comércio de escravos e da expansão das colônias escravocratas".[11]

Ao contrário dos servos irlandeses contratados os africanos escravizados o eram por toda a vida, bem como a situação de cativo era imposta aos seus filhos que nascessem a partir de então.[4] De forma sistemática e legal os africanos foram submetidos a uma escravidão hereditária, algo que os irlandeses nunca passaram.[7] Os descendentes dos escravos africanos se tornavam propriedade, ao contrário do que se dava com os irlandeses "contratados".[2]

Origem e propagação do mito[editar | editar código-fonte]

O mito é particularmente popular entre os defensores dos Estados Confederados da América, estados escravistas do sul dos Estados Unidos durante a Guerra de Secessão.[12] Segundo o pesquisador independente Liam Hogan, o livro mais influente nesse meio é They Were White And They Were Slaves: The Untold History of The Enslavement of Whites In Early America, auto-publicação de 1993 do teórico da conspiração e negador do Holocausto[13] Michael A. Hoffman II (que culpava os judeus pelo tráfico de escravos na África).[14]

Em 2000 essa ideia foi seguida na Irlanda pelo jornalista Sean O'Callaghan com o livro To Hell Or Barbados: The Ethnic Cleansing of Ireland.[15][4] Essa obra seguiu os temas de Hoffman e introduziu o conceito de que mulheres irlandesas foram colocadas à força com homens africanos para assim produzirem mulatos, que seriam mais valorizados do que os escravos de pura ascendência irlandesa.[16] Ele não deixou claro de qual motivo isso teria ocorrido dessa forma, e por que não foi possível alcançar o mesmo resultado com a união física de homens europeus com mulheres africanas, que era uma união muito mais frequente. Outros autores repetiram essas descrições obscuras de mulheres irlandesas sendo obrigadas a fazer sexo com homens africanos,[17][18] mesmo sem o menor embasamento em registros históricos.[19] Alguns historiadores como Liam Hogan descrevem esse livro como uma pesquisa de má qualidade.[4]

Em artigo no Dublin Review of Books, o professor Bryan Fanning afirma: "A popularidade do meme dos 'escravos irlandeses' não pode ser simplesmente atribuída à propaganda on-line de grupos supremacistas brancos. Existem vários elementos em jogo além da deliberada falsificação do passado. A aceitação on-line de uma equivalência falsa entre a escravidão e o tratamento dos imigrantes irlandeses parece estar enraizada nas narrativas irlandesas de vitimização, que continuam articuladas nas correntes políticas e culturais da Irlanda ".[1] A história do povo irlandês adotou um legado de identificação com os oprimidos e elementos de racismo, a serviço do nacionalismo irlandês, segundo Fanning.[1]

De acordo com o The New York Times, "Na América, o livro [de O'Callaghan] ligou a narrativa de escravos brancos a um influente grupo étnico de mais de 34 milhões de pessoas, muitas das quais foram levantadas em histórias de rebelião irlandesa contra a Grã-Bretanha e fábulas de preconceito anti-irlandês na América da virada do século XX. A partir daí, se espalhou".[4] As alegações de O'Callaghan foram repetidas em sites de genealogia irlandeses, no site da teoria da conspiração canadense Globalresearch.ca, no IrishCentral, na Scientific American e em The Daily Kos. Artigo de 2008 no Globalresearch.ca tem sido uma fonte on-line significativa para o mito, tendo sido compartilhado quase um milhão de vezes em março de 2016.[20] A mentira foi espalhada em plataformas de debates de nacionalistas brancos, sites neo-nazistas, no site de extrema-direita conspiracionista InfoWars, e foi compartilhado milhões de vezes no Facebook.[4]

O mito é um tópico comum no site supremacista branco Stormfront desde 2003.[12][21][22] Começou a circular inicialmente nos Estados Unidos e a seguir se tornou comum na Irlanda depois que o meme "escravos irlandeses" se tornou viral nas mídias sociais em 2013.[23][16] Após o surgimento do movimento Black Lives Matter em 2014 o mito foi frequentemente citado por membros brancos da direita estadunidense, como tentativa de miná-lo[24] e também quanto a outras questões dos direitos civis dos afro-americanos, de acordo com o diretor do Anti-Slavery International, Aidan McQuade.[25]

Em agosto de 2015 foi mencionado no contexto dos debates sobre a manutenção da bandeira dos Estados Confederados, havido após o massacre da igreja de Charleston.[26][27] Em maio de 2016 voltou a ser citado por membros proeminentes do partido republicano irlandês Sinn Féin, depois que seu líder Gerry Adams se envolveu numa controvérsia sobre o uso da palavra "negro".[3] Donald Clarke, colunista do Irish Times, descreve o meme como racista, declarando: "Mais comumente vemos racistas usando o mito para menosprezar o sofrimento vivenciado por escravos negros e para atrair alguma simpatia ao seu próprio clã".[28] Para o jornal New York Times o mito é "muitas vezes politicamente motivado", e tem sido usado para criar "farpas racistas" contra os afro-americanos.[4]

Elementos frequentes em postagens[editar | editar código-fonte]

"Mercado escravo na Roma Antiga", de Gérôme. Fragmento do quadro ilustra muitas postagens do mito.[4]

As postagens sobre o mito guardam elementos que são comuns entre elas, que são:[4][5][29]

  • A teoria da conspiração de que historiadores e mídia escondem a escravidão irlandesa.[4]
  • O povo irlandês foi feito escravo depois da invasão da Irlanda por Cromwell, em 1649.[4]
  • Os escravos irlandeses eram tratados de modo pior do que os escravos africanos.[4]
  • Mulheres irlandesas eram obrigadas a procriar com homens africanos.[4]
  • Manifestam a clara intenção de diminuir a discriminação que os descendentes de africanos historicamente sofrem, as postagens sugerem a falácia: "Os irlandeses também foram escravos. Superamos isso, então por que vocês não fazem o mesmo?"[4]
  • São usadas fotografias de vítimas do Holocausto ou de crianças trabalhadoras no século XX, alegando que são imagens de escravos irlandeses.[4]
  • Fazem menção a uma suposta declaração feita em 1625 pelo rei Jaime II de Inglaterra para enviar milhares de prisioneiros irlandeses para as Índias Ocidentais; Jaime II nem era nascido, naquele ano, o que ocorreu somente em 1633, tendo iniciado seu reinado em 1685. Em 1625 teve fim o governo de Jaime I e a subida de Carlos I ao trono.[4]
  • Substituição das vítimas das atrocidades que verdadeiramente foram cometidas contra escravos africanos, tendo irlandeses como vítimas. O site de conspiração de extrema direita InfoWars, por exemplo, substituiu as 132 vítimas africanas do Massacre do Zong de 1781 por irlandeses. Vários artigos on-line sobre "escravos irlandeses" aumentaram o número de 132 para 1 302 vítimas. O historiador Liam Hogan rastreou que a primeira justaposição das vítimas africanas reais do Massacre do Zong como uma tragédia com irlandeses se deu a partir de 2002, quando James Mullin, presidente do Irish Famine Curriculum Committee and Education Fund, sediado em Nova Jersey, escreveu um artigo onde confundia os eventos da linha histórica da escravidão africana na América Inglesa com a história da servidão por contrato irlandesa no período colonial.[4][30][31]

Referências

  1. a b c d Fanning, Bryan (1 de novembro de 2017). «Slaves to a Myth». Irish Review of Books (article). 102. Consultado em 11 de novembro de 2018 
  2. a b O'Carroll, Eoin (16 de março de 2018). «No, the Irish were not slaves in the Americas». Christian Science Monitor (em inglês). ISSN 0882-7729. Consultado em 19 de março de 2018 
  3. a b Linehan, Hugh (11 de maio de 2016). «Sinn Féin Not Allowing Facts Derail Good 'Irish Slaves' Yarn». The Irish Times (em inglês). Consultado em 18 de fevereiro de 2017 
  4. a b c d e f g h i j k l m n o p q Stack, Liam (17 de março de 2017). «Debunking a Myth: The Irish Were Not Slaves, Too». The New York Times (em inglês). ISSN 0362-4331. Consultado em 20 de março de 2017 
  5. a b Pogachnik, Shawn (16 de março de 2017). «AP FACT CHECK: Irish "slavery" a St. Patrick's Day myth». Dublin. The Seattle Times (em inglês). Associated Press. Consultado em 14 de abril de 2017 
  6. Kennedy, Liam (2015). Unhappy the Land: The Most Oppressed People Ever, the Irish? (em inglês). Dublin: Irish Academic Press. p. 19. ISBN 9781785370472 
  7. a b c Donaghue, John (2017). «The curse of Cromwell: revisiting the Irish slavery debate» julho-agosto ed. History Ireland. 25 (4). Consultado em 11 de novembro de 2018 
  8. a b Michael Davitt (1904). «CHAPTER II. Section I. TORIES AND OUTLAWS». The Fall of Feudalism in Ireland. archive.org. [S.l.: s.n.] Consultado em 11 de novembro de 2018 
  9. Bartlett, Thomas. "'This famous island set in a Virginian sea': Ireland in the British Empire, 1690–1801." In The Oxford History of the British Empire. Volume II: The Eighteenth Century, by Marshall, P.J., Alaine Low, and Wm. Roger Louis, edited by P.J. Marshall and Alaine Low. Oxford: Oxford University Press, 1998. p. 256.
  10. Handler, Jerome S.; Reilly, Matthew C. (1 de janeiro de 2017). «Contesting "White Slavery" in the Caribbean». New West Indian Guide (em inglês). 91 (1–2): 30–55. doi:10.1163/22134360-09101056. Consultado em 29 de maio de 2017. Cópia arquivada em 25 de junho de 2020 
  11. Rodgers, Nini. «The Irish and the Atlantic slave trade». Dublin: History Publications, Ltd. History Ireland. 15 (3: May/June 2007) 
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  13. Barkun, Michael (2003). «Millennialism, Conspiracy, and Stigmatized Knowledge». A Culture of Conspiracy: Apocalyptic Visions in Contemporary America. [S.l.]: University of California Press. p. 34. ISBN 9780520238053. Consultado em 15 de março de 2013. Michael A. Hoffman II, a Holocaust denier and exponent of multiple conspiracy theories 
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  16. a b Alex Amend. «How the Myth of the "Irish slaves" Became a Favorite Meme of Racists Online». Southern Poverty Law Center - Hatewatch (blog). Consultado em 18 de fevereiro de 2017 
  17. Kelleher, Lawrence R. (15 de janeiro de 2001). To Shed a Tear: A Story of Irish Slavery in the British West Indies. [S.l.]: Writers Club Press. p. 73. ISBN 0595169260 
  18. Nixon, Guy (2011). Slavery in the West: The Untold Story of the Slavery of Native Americans in the West. [S.l.: s.n.] p. 12. ISBN 9781462865253. This African would serve as a stud for the inexpensive Irish women slaves…[these breeding programs were stopped] because it was reducing the profits of the Royal African Company…[but] due to the profitability of these breeding programs the practice continued until well after the end of Ireland's 'Potato Famine' 
  19. Liam Hogan (23 de outubro de 2015). «The "Forced Breeding" Myth in the "Irish Slaves" Meme». medium.com. Consultado em 18 de fevereiro de 2017 
  20. Costello, Norma (17 de março de 2016). «Black Lives Matter and the 'Irish slave' Myth». aljazeera.com. Consultado em 18 de fevereiro de 2017 
  21. Riley, Ricky (18 de março de 2016). «Myth Busted: Scholars Fire Back Against Memes Pushing Narrative of Irish Slaves in the Americas». atlantablackstar.com. Consultado em 18 de fevereiro de 2017 
  22. Deignan, Tom (7 de maio de 2016). «Racial Tensions of 2016 and the Myth of Irish Slavery - Opinion». nj.com. Consultado em 18 de fevereiro de 2017 
  23. Hogan, Liam (12 de janeiro de 2015). «'Irish Slaves': The Convenient Myth». opendemocracy.net. Consultado em 18 de fevereiro de 2017 
  24. Kireini, Douglas (8 de março de 2018). «Any attempts to rewrite history must be rebuffed». Business Daily (em inglês). Consultado em 19 de março de 2018 
  25. Ferguson, Amanda (2 de maio de 2016). «Adams Comparing US Slavery With Nationalist Plight 'Overblown'». The Irish Times. Consultado em 18 de fevereiro de 2017 
  26. Tucker, Neely (18 de agosto de 2015). «In Mississippi, Defenders of State's Confederate-Themed Flag Dig In». The Washington Post. Consultado em 17 de fevereiro de 2017 
  27. Hogan, Liam; McAtackney, Laura; Reilly, Matthew Connor (6 de outubro de 2015). «The Unfree Irish in the Caribbean Were Indentured Servants, Not Slaves». Yahoo News. Consultado em 17 de fevereiro de 2017. Inevitably the myth gained prominence in the wake of Dylann Roof's terrorist attack in Charleston and the subsequent debate about the Confederate flag. 
  28. Clarke, Donald (30 de julho de 2016). «Free Us From Myth of US Irish Slavery». The Irish Times. Consultado em 16 de fevereiro de 2017 
  29. Varner, Natasha (16 de abril de 2017). «The curious origins of the 'Irish slaves' myth» (em inglês). Public Radio International. Consultado em 20 de março de 2017 
  30. Hogan, Liam. «How the African victims of the Zong Massacre were replaced with "Irish slaves"». Medium. Consultado em 30 de janeiro de 2018 
  31. Mullin, James. «Out of Africa, Out of Ireland». Arquivado do original em 27 de outubro de 2002 
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