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Usuário(a):Jorge alo/Rascunho-de-Cúria-Régia

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
  • Resumo de Mattoso, José. "A consolidação da monarquia e a unidade política". História de Portugal II. Editorial Estampa. Páginas 269-280. ISBN 972330919X


MONARQUIA

Questão prévia à análise do funcionamento da monarquia portuguesa nos seus primeiros séculos. É uma monarquia «feudal», um poder régio em que não há uma distinção clara entre as esferas de acção pública e privada, tal como nos restantes países europeus desta época. o Estado da época moderna, tal como o concebemos, apenas está em formação. No entanto não será incorrecto caracterizar como «Estado» o poder monárquico anterior ao século XIV. Ele é um poder político superior e englobante, reconhecido na sua autoridade pelos outros detentores de poderes públicos e/ou privados. Porém, se por um lado podemos destrinçar o poder régio do poder senhorial, por outro, é tarefa árdua estabelecer as prerrogativas que exclusivamente cabem ao primeiro. Muitas das funções que mais tarde serão exclusivas do rei ou do Estado agora exercem-nas os senhores, e, inversamente, o rei compreende o seu poder como o de um «senhor», como uma prerrogativa pessoal não sujeita a outra lei senão a divina.

Dominus Rex chamam os inquiridores de 1258 a Afonso III. As inquirições visam fazer o cadastro dos seus rendimentos senhoriais, e mesmo os rendimentos que têm uma origem pública, como os derivados de antigas prestações de ordem fiscal, se equiparam aos reclamados em virtude da autoridade feudal. Ao rei, assim, há que considerá-lo como um «senhor». Não é exclusivo do rei exigir serviços em trabalho, a voz e coima, a fossadeira, a anúduva ou a jugada, apresentar o pároco de certas freguesias ou nomear juiz. E muito menos o é cobrar as prestações da pousadia, da eirádiga, as portagens, os foros incidentes sobre coelheiros, almocreves, pescadores, viúvas ou cabaneiros, as imposições sobre moinhos, fornos lagares, azenhas ou açougues. Os senhores podem ainda dispor de cavaleiros armados, presidir ao tribunal, tomar conta dos baldios, criar multas e expulsar os detentores das terras. Alguns deles também cedem a um vassalo a autoridade sobre um senhorio, obrigando-se este à fidelidade, conselho e ajuda ao seu senhor.

O rei distingue-se de todos os outros senhores pela amplitude dos domínios régios, e é ele a única autoridade sobre as comunidades e proprietários que não dependem de nenhum senhor. Como tal confirma-lhes os párocos e os juízes eleitos que, até ao século XII, apenas teriam respondido perante as próprias comunidades, e exige-lhes as prestações públicas judiciais, militares e fiscais cuja memória já remonta à Antiguidade. Contudo o exame das inquirições de 1220 e de 1258 mostra que o rei já não cobra a estes cultivadores apenas prestações de natureza pública, quando até então eles (os herdadores) só pagavam essas, impondo-lhes ademais encargos de ordem senhorial. As inquirições de 1220 e 1258 parecem indiciar que essa alteração fora recente, remontando ao final do século XII e inícios do XIII. O processo de eliminação dos alódios nesta altura acelera-se. No reinado de Afonso II, as inquirições de 1220 ainda separam o cadastro dos foros do das prestações dos reguengos. Os primeiros são geralmente fixos enquanto as segundas representam uma proporção da colheita, aqueles são mais ligeiros que estas e incluem a fossadeira, um imposto de origem pública, enquanto nas segundas estão contidas as miunças pagas pela ocupação da casa e quintal. Segundo Mattoso, os foros recenseados em 1220 não teriam assim um carácter dominial (senhorial)[1]. A ser verdadeira esta tese, a raiz da distinção entre reguengos (património fundiário pessoal do rei) e bens da coroa (fundo de terras de que o rei gozaria as rendas mas às quais não teria o direito de alienar por doação ou por venda) não resultaria de o rei possuir sobre os reguengos o domínio directo e útil e sobre os forosapenas o directo, como defendeu Gama Barros, mas sim de os bens da coroa, na sua maioria, provirem da relativamente recente apropriação de alódios, enquanto os reguengos eram de há muito domínios da casa régia, adquiridos ao longo da Reconquista[2]. Portanto, os foros seriam consequência da senhorialização de terras devida ao poder político do rei, ao passo que os reguengos constituiriam os seus domínios patrimoniais (pessoais e que já lhe haviam sido transmitidos por herança, na sua maioria[3]). Por isso, em 1220, os inquiridores considerariam que o rei possui tão-só os foros (as rendas e restantes direitos feudais), mas não a terra foreira, enquanto que no segundo caso, para além das prestações que lhe são entregues, possui também a terra reguenga. Mas depressa veremos o rei a considerar-se tão senhor dos foreiros quanto dos reguengueiros e respectivas terras.

Uma lei de 1265 ainda faz a distinção entre terras reguengas e foreiras, contudo, nas suas prescrições, já as trata em conjunto. Um pouco antes, nas inquirições de 1258, abandonara-se a separação entre o cadastro dos foros e o dos reguengos, mas, por exemplo, também em alguns lugares da Beira se mantinha a divisão das terras sujeitas ao rei em reguengueiras, de jugada e de cavalaria (fim 270), tudo levando a crer que estas terras de jugada corresponderiam às foreiras de além Douro. Mas nesta época a designação já não se refere apenas aos tributos devidos ao rei, pois engloba a própria terra, como se o rei, que em 1220 somente teria o direito de cobrar certos foros, passasse agora a possuir também a terra de quem os pagava. As diferentes situações da terra tendem a ser cada vez mais assimiladas e, em 1311, uma lei de D. Dinis que estatui em relação às terras sujeitas ao rei fala apenas de reguengos, não referindo a situação própria dos prédios foreiros.

À época, em termos jurisdicionais e da perspectiva dos bens régios, a distinção essencial fazia-se entre as terras do rei e as dos senhores e dos concelhos. A antiga designação de herdador perdeu o significado e foi caindo em desuso, pois já não havia cultivadores independentes. Diferencia-os, caso a caso, o montante das prestações que pagam, e esta diferenciação tanto se dá nas terras reais como nas dos senhores particulares ou nas dos concelhos, mas todos eles estão igualmente na dependência de um senhor (rei ou senhor privado) ou de um concelho.

Não era o rei o único a procurar estender o seu poder senhorial sobre os homens livres. Já antes dele, muito provavelmente, o mesmo haviam feito senhores leigos e eclesiásticos. Estes apossam-se não só de terras foreiras mas também realengas, provocando como reacção as inquirições de 1220, 1258, 1284, etc. Elas deram-se sobretudo nas regiões onde o regime senhorial desde há muito se desenvolvera. Para sul do Mondego, onde predominavam os concelhos, que combatiam a formação de jurisdições dos senhores, conhecem-se apenas alguns inquéritos pontuais. Todavia, também aqui os documentos referem as tentativas de alguns particulares de se apropriar de terras reguengueiras, como as lezírias da Estremadura e do Ribatejo.

Mas se as inquirições gerais combateram a apropriação por outros senhores das terras do rei, foram identicamente um instrumento essencial no processo de senhorialização régia[4]. O último passo parece ter sido a apropriação real de matas e maninhos na época de D. Afonso III e de D. Dinis. Tais áreas, até então, seriam consideradas terras de ninguém, nem sequer os concelhos as reivindicando. Muitas foram transformadas em coutadas para a caça, sendo vigiadas pelos monteiros do rei.

Diversamente da maioria dos outros senhorios, o domínio senhorial régio comportava muitos bens urbanos. Logo no foral de Santarém-Coimbra-Lisboa se vê que o rei detinha nas três cidades tendas e casas. E não só bens urbanos, pois Sancho I refere nos seus testamentos possuir grandes quantidades de gado, e tanto ele como o pai eram senhores de um grande tesouro em moeda que guardavam nos mosteiros de Santa Cruz e de Alcobaça e em castelos dos templários e hospitalários. Sancho II faz cumprir legados pios com os proventos alcançados pelos seus moedeiros e refere deter tendas, casas e adegas em vários lugares[5]. Afonso III possuía um número imenso de prédios do mesmo género, mas, para além do seu interesse pela moeda e por bens urbanos, como tendas e banhos públicos, acumula todo o género de equipamentos de produção: fornos, moinhos, salinas, pesca de baleia, pisões, azenhas e, inclusive, dos mesteres, ferrarias, taracenas (arsenais), estaleiros de construção naval. A propriedade urbana do rei concentra-se essencialmente em Lisboa e Santarém, mas também se distribui por Elvas, Évora, Guarda, Porto e outras cidades e vilas. Também nesta vertente urbana do domínio régio podemos incluir os tributos especiais que lhe prestam os mouros forros e judeus, mas aqui está-se perante uma prerrogativa especial, pois nenhum outro senhor a exerce e, por isso, Mattoso considera que ela não resulta do poder senhorial do rei (o poder que ele exerce tal como qualquer outro senhor ou dominus).

Gerir tudo isto exigia uma grande organização administrativa, que no entanto só difere da administração senhorial típica, que lhe está na base (fim 271), pela sua dimensão e complexidade. Distinguimos nela, como agentes locais, os chamados mordomos (mordomos das eiras, mordomos das terras, etc.) ou vigários, e, a nível regional, os recebedores ou almoxarifes, que recolhiam dos celeiros e entrepostos do rei as rendas em géneros arrecadadas pelos mordomos. Todavia, tanto uns como outros por vezes eram designados pelos mesmo termo, o de mordomo ou vigário, se bem que os agentes locais, em particular em Trás-os-Montes, pudessem ser eleitos pelos moradores do lugar, ao passo que os agentes regionais eram sempre nomeados pelo rei, ou por alguém em quem ele delegava tal poder.

Afonso III determinou que algumas rendas passassem a ser pagas em dinheiro, em vez de em géneros, como anteriormente, e dividiu-as em três prestações a ser solvidas em determinadas datas. Além disso, entregou em larga escala a cobrança regional das rendas a concessionários, mediante a prévio pagamento por estes de uma dada soma em dinheiro. Quer ele quer o seu filho, D. Dinis, agravaram em grande medida as rendas de alguns lugares. Por exemplo, em Caminha, elas aumentaram 42,9% entre 1258 e 1275 e 500% entre 1275 e 1284[6]. D. Dinis, por seu turno, desenvolveu o sistema de contratos de emprazamento, criou uma grande quantidade de aforamentos colectivos, concedeu muitos forais novos e promoveu o povoamento em regiões fronteiriças e em zonas da costa.

Nas cidades, a cobrança das rendas havia de ser mais complexa. Em Santarém, por exemplo, os mordomos régios eram coadjuvados por auxiliares permanentes quer na administração quer na cobrança. Podiam ter ainda sob o seu comando porteiros e saiões[7], executores, respectivamente, de ordens e de sentenças. Quando aqueles estavam encarregados de determinadas zonas ou funções eram chamados ovençais.[8]

Tal como os senhores o faziam nas suas terras, o rei administra a justiça nos reguengos e terras da coroa (foreiras). Nos casos menores, fá-lo por intermédio dos mordomos, que acumulam, assim, funções administrativas e judiciais. Mas em alguns locais já há mordomo e juiz, e em outros ainda, se bem que haja mordomo do rei, a justiça está nas mãos dos homens-bons do lugar. É possível que nos concelhos, o alcaide, como representante do rei e responsável por funções policiais, controlasse a actividade dos mordomos.

À medida que se vão tornando mais comuns as prestações em dinheiro e surgem novos encargos de tipo fiscal, esta estrutura de natureza senhorial vai dando lugar a uma outra. A função dos almoxarifes desenvolve-se e ganha relevo. Antes de 1250, poucas são as referências que os documentos lhes fazem, mas eram eles que certamente então cobravam, a igrejas e mosteiros, a colheita autorizada por bula de 1220. Com Afonso III tornam-se os oficiais especializados do fisco, numa estrutura já de carácter estatal que se sobrepõe à dos mordomos.

Regalias. As concepções feudais, no exercício pelo rei dos seus poderes, imperam até aos finais do século XII. A sucessão no trono é garantida pela sua transmissão ao filho através de testamento, como um bem pessoal. As terras foreiras são senhorializadas. A nobres e eclesiásticos são cedidos, a título pessoal, poderes militares, judiciais e fiscais. Ao próprio nível das funções administrativas de representação régia, as tenências são concedidas mediante a homenagem, e os seus detentores podem, em parte, concedê-las a prestameiros. A organização da cúria régia tem um carácter doméstico (fim 272).

Como é concebida, então, a superioridade do rei? Ele tem a obrigação de defender a ordem estabelecida, de lutar contra os abusos e as violências, e dispõe do direito de julgar os nobres e os outros detentores de poder. E, na Península Ibérica, tem a particular incumbência de conduzir a guerra contra os muçulmanos, para lhes tomar território. É provável que sobrevivesse ainda o conceito, legado pela época tardo-romana e visigótica, de que o rei, como efectivo detentor do poder público, gozava de uma especial autoridade sobre todos os homens livres, a qual se traduzia, na prática, na cobrança de tributos de origem fiscal como a jugada, a fossadeira e a voz e coima.

Mas não existe à época uma teoria sobre a função régia, tão-só a ideia de que o rei exerce os seus especiais poderes pessoais quer porque pertence a uma determinada linhagem, escolhida por Deus (o que está implícito na noção de nobilitas), quer porque se distingue como chefe de guerra, dotado de qualidades especiais (o que se exprime na sua strenuitas pessoal). O nascimento dá-lhe o direito de ser rei e o carisma pessoal confirma-lhe esse direito. Assim, os documentos relativos a Afonso Henriques recordam que ele é neto do magnus rex, do inclitus Afonso VI, e os anais redigidos a seguir à sua morte exalçam-lhe a valentia (strenuitas, potentia), sublinhando o carácter guerreiro da autoridade régia.

Notas[editar | editar código-fonte]

Referências

  1. Armando de Castro (1964), I, tem uma visão algo diferente
  2. Em rigor, em parte até anteriores à existência da monarquia portuguesa, datando dos tempos da asturiano-leonesa, depois transmitidos a Dona Teresa e ao Conde D. Henrique
  3. A reconquista do território português só terminou com Afonso III
  4. Um outro meio, bem mais directo, é referido em Castro, Armando de (1964). A Evolução Económica de Portugal dos Séculos XII a XV, I. Lisboa: Portugália Editora. Páginas 122/23.
  5. Curiosamente não se refere no texto Afonso II
  6. Tentar confirmar tais dados
  7. Funcionário medieval executor das sentenças judiciais. A origem do termo é incerta. Segundo Du Cange, talvez se relacionasse com a localidade de Saiago, perto de Zamora, onde os habitantes se vestiam com um pano grosseiro, o saial. A partir do século XV, a palavra desaparece do vocabulário judicial, sendo substituída pelos termos algoz, verdugo, etc. Serrão, Joel, ed. (1968), «Saião», Dicionário de História de Portugal, ISBN 9726611601, III (Me-Sin), Lisboa: Iniciativas Editoriais, pp. Página 716 
  8. Ovençal no sentido genérico


Pequenos verbetes criados e melhorados[editar | editar código-fonte]

Criados:

A criar: Eirádiga


Melhorados:

A melhorar: Homem bom; Alcaide; Tenência; Homenagem


Campo para redacção:


Serrão, Joel, ed. (1971), «Eirádiga», Dicionário de História de Portugal, ISBN 9726611601, Lisboa: Iniciativas Editoriais, pp. Página