Fluxo de consciência

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
 Nota: Para conceito psicológico, veja Fluxo de consciência (psicologia).

Na literatura, fluxo de consciência é uma técnica literária, usada primeiramente por Édouard Dujardin em 1888, em que se procura transcrever o complexo processo de pensamento de um personagem, com o raciocínio lógico entremeado com impressões pessoais momentâneas e exibindo os processos de associação de ideias. A característica não-linear deste processo de pensamento leva frequentemente a rupturas na sintaxe e na pontuação.[1] O termo aparece pela primeira vez em seu uso na psicologia pelo filósofo e psicólogo Alexander Bain em 1855,[2] mas é também frequentemente considerado como tendo sido cunhado pelo filósofo e psicólogo William James, em 1892.[3]

Com o uso desta técnica, mostra-se o ponto de vista de um personagem através do exame profundo de seus processos mentais, esbatendo-se as distinções entre consciente e inconsciente, realidade e desejo, as lembranças da personagem e a situação presentemente narrada, etc. A profundidade e a abrangência desse exame é que diferenciam o fluxo de consciência de um monólogo interior, já empregado anteriormente por autores como Fiódor Dostoiévski e Liev Tolstói.

Definição[editar | editar código-fonte]

Carlos Ceia em seu E-dicionário de Termos Literários distingue que o monólogo interior é a representação de movimentos dentro da consciência e que o fluxo de consciência é a representação literária de todo o pensamento no seu estado corrente.[4] Assim, seguindo a metáfora proposta por William James, se tomarmos a corrente de consciência como o fluxo de um rio, o monólogo interior "poderá ser uma represa onde a água remoinha durante algum tempo para depois voltar à corrente". O fluxo de consciência é um rio impetuoso ou uma corrente de palavras e imagens indistintas tão próximas quanto possível da variedade contraditória de elementos que atravessam constantemente a mente humana, um fluir desenfreado das sensações e pensamentos das personagens, da consciência, da vida subjetiva.[5]

Em A consciência de Zeno (Italo Svevo, 1923) o personagem registra suas impressões em um diário, conforme ordenado pelo seu psicanalista. Entretanto, isto também não deve ser considerado fluxo de consciência. A técnica também não deve ser confundida com a escrita automática dos surrealistas.[1][6]

Diversos autores notáveis do século XX, como Marcel Proust, Virginia Woolf, James Joyce, Samuel Beckett, John dos Passos e William Faulkner utilizaram extensivamente essa técnica. Na literatura brasileira, merecem destaque a obra de Guimarães Rosa, Telmo Vergara, Graciliano Ramos, de Hilda Hilst e principalmente a de Clarice Lispector, sendo ela a desenvolvedora e a inovadora de tal estilo literário no país.[7]

Exemplos de fluxo de consciência[editar | editar código-fonte]

Virginia Woolf[editar | editar código-fonte]

Such fools we are, she thought, crossing Victoria Street. For Heaven only knows why one loves it so, how one sees it so, making it up, building it round one, tumbling it, creating it every moment afresh; but the veriest frumps, the most dejected of miseries sitting on doorsteps (drink their downfall) do the same; can't be dealt with, she felt positive, by Acts of Parliament for that very reason: they love life. In people's eyes, in the swing, tramp, and trudge; in the bellow and the uproar; the carriages, motor cars, omnibuses, vans, sandwich men shuffling and swinging; brass bands; barrel organs; in the triumph and the jingle and the strange high singing of some airplane overhead was what she loved; life; London; this moment of June. (Projeto Gutemberg Austrália, 1925 pay 1. acesso em 26 abril 2013)

Como a humanidade é louca, pensou ela ao atravessar Victoria Street. Porque só Deus sabe porque amamos tanto isto, o concebemos assim , elevando‑o, construindo‑o à nossa volta, derrubando‑o, criando‑o novamente a cada instante, mas até as próprias megeras, as mendigas mais repelentes sentadas às portas (a beberem a sua ruína) fazem o mesmo; não se podia resolver o seu caso, ela tinha a certeza, com leis parlamentares por esta simples razão: porque amam a vida. Nos olhos das pessoas, no movimento, no bulício e nos passos arrastados; no burburinho e na vozearia; os carros, os automóveis, os ónibus, os camiões, homens‑sanduíches aos encontrões, bamboleantes; bandas de música; realejos, no estrondo e no tinido e na estranha melodia de algum aeroplano por cima das nossas cabeças, era o que ela amava, a vida, Londres; este momento de Junho. Porque era em meados de Junho.

Mrs. Dalloway, Virginia Woolf, 1925, páginas 5-6, trad. port. Lisboa, Ulisseia, 1982.

Patrick McCabe[editar | editar código-fonte]

Quando eu era moleque uns vinte ou trinta ou quarenta anos atrás todo mundo tava atrás de mim pelo que eu tinha feito com a dona Nugent. Eu tava escondido num buraco perto do rio atrás da moita. Era um esconderijo que eu e Joe fizemos. Que morram todos os cachorros que entrarem aqui!, a gente gritou. Todos menos nós obvio.

Butcher Boy: Infância Sangrenta, Patrick McCabe, 1992, Darkside Books, 2021, pp. 13

Ver também[editar | editar código-fonte]

Referências

  1. a b The International Society for the Study of Narrative. «Stream of consciousness» (em inglês). Consultado em 1 de janeiro de 2011 
  2. William C. Waterhouse, "The Source of the Stream". NY Times Review of Books, 22 November 2007.
  3. William James (1892). «The Stream of Consciousness» (em inglês). Consultado em 1 de janeiro de 2011. Psychology, Chapter XI []
  4. (cf. Leon Edel: The Modern Psychological Novel, 1964)
  5. (Ceia E-dicionário, verbete stream of consciousness).
  6. Carlos Ceia. «Stream of Consciousness». Consultado em 1 de janeiro de 2011. e-Dicionário de Termos Literários 
  7. Steyer 2006, p. 98.

Bibliografia[editar | editar código-fonte]

  • (em inglês) Stream of consciousness, verbete da International Society for the Study of Narrative
  • (em inglês) Barbara Lynn James:« Flux in context: The Cultural Difference Between Stream of Consciousness and Interior Monologue», Tese de Doutoramento, Universidade de Colorado (1993)
  • (em inglês) Clifford Douglas King, Édouard Dujardin, inner monologue and the stream of consciousness, Blackwell, Oxford, 1953, 116-128 p.
  • (em inglês) Leon Edel: The Modern Psychological Novel (1954); Erwin R. Steinberg: The Stream of Consciousness Technique in the Modern Novel (1979)
  • (em inglês) Erwin R. Steinberg (dir.), The Stream-of-consciousness technique in the modern novel, Kennikat Press, Port Washington, N.Y., 1979, 198 p. ISBN 978-0-8046-9225-0
  • (em inglês) Haim Callev, The stream of consciousness in the films of Alain Resnais, McGruer Pub, New York, 1997, 250 p. ISBN 9659016204
  • (em inglês) Melvin Friedman, Stream of Consciousness : a Study in Literary Method, Yale University Press, New Haven, 1955, 279 p.
  • (em inglês) Robert Humphrey: Stream of Consciousness in the Modern Novel (1954)
  • (em inglês) Shiv K. Kumar, Bergson and the stream of consciousness novel, Blackie, London, 1962, 174 p.
  • (em inglês) Thomas Laborie Burns: «Stream of Consciousness: Joycean Technique», Estudos Anglo-Americanos, nº12-13 (1988-89)
  • (em alemão) Manfred Smuda: «”Stream of Consciousness” and “Duree”: Das Problem ihrer Realisation und Wirkung im modernen englischen Roman», Poetica, nº13/3-4 (1981)
  • Steyer, Fábio Augusto (2006). A "Estrada Perdida" de Telmo Vergara (PDF) (Tese de Doutorado). Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul .

Ver também[editar | editar código-fonte]