Tratado sobre a Amizade

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O Tratado sobre a Amizade foi um livro escrito pelo padre jesuíta Matteo Ricci na cidade de Nanchang, na China, no ano de 1595, tendo sido a primeira obra escrita por um ocidental em chinês.[1]

Edição em inglês do Tratado sobre a Amizade, com o nome On Friendship (Na Amizade), de 2009.

O Tratado serviu para sedimentar uma concepção positiva para os jesuítas, qualificando-os como eruditos dignos de atenção - e superando o preconceito associado a inerente natureza estrangeira. Também solidificou o modelo missionário na China, pautado pelo uso da escrita como principal meio para a difusão do cristianismo no Império chinês.[2]

Contexto[editar | editar código-fonte]

O século XVI foi importante para os europeus, pois à medida em que se intensificavam as relações comerciais com o Império do Meio, crescia também o interesse da Igreja pelas atividades missionárias naquela região. Contudo, a China imperial estava longe de ser um terreno fértil para a atividade missionária.[3]

Diferentemente dos franciscanos e dominicanos, os jesuítas dedicaram-se ao método acomodativo,[4] que baseava-se no aprendizado do idioma, bem como a total familiarização com os códigos de conduta da sociedade chinesa.

Assim, a partir da década de 1590, os jesuítas conquistaram seu espaço na China.[5] Nesta época, os missionários conseguiram estabelecer as primeiras casas de missão, saindo da esfera de Macau - principal sede no Oriente - e entrando no interior do Império chinês, no qual Ricci tivera um papel fundamental devido a suas habilidades e relações para com os funcionários da corte.[6]

Durante este período, os inacianos optaram por abandonar o estilo e as vestes dos monges budistas, pois os eruditos chineses desprezavam-nos. Passaram a adotar vestimentas, hábitos e costumes dos confucianos, que representava, majoritariamente, a elite intelectual e administrativa do Império chinês. O método utilizado pelos jesuítas permitiu “um olhar positivo sobre o Outro, reconhecendo as diferenças, buscando as semelhanças, mas mantendo-se essencialmente europeus”.[7]

Matteo Ricci com as vestes de um letrado chinês confuciano.

Matteo Ricci, além de emular o costume e a aparência dos eruditos chineses, começou a participar ativamente das reuniões dos confucionistas. Em uma dessas reuniões, o jesuíta, em Nanchang, conseguiu relacionar-se com membros da família imperial, entre eles o príncipe de Jian’an, Zhu Duojie.

De acordo com Ricci, o príncipe o havia questionado sobre as características da amizade na Europa. O questionamento do príncipe Zhu Duojie não foi à toa. O historiador Martin Huang definiu a China do período Ming tardio como a “era de ouro da amizade”.[8] Por conseguinte, os eruditos chineses tinham debates e teorias sofisticadas sobre o tema. Ricci, com sua participação nas reuniões, pôde perceber a ênfase pela temática e apropriou-se desta para melhor se integrar na sociedade chinesa.

Já familiarizado com a doutrina confuciana e com a escrita em mandarim, este questionamento levou o inaciano a escrever o Tratado sobre a Amizade, simultaneamente nas línguas chinesa e italiana, em 1595.

Na Introdução da obra, Ricci escreve que:

[O príncipe de Jian’an] me recebeu de boa vontade, me autorizando a saudá-lo longamente com as mãos juntas. [...] O príncipe, em seguida, se aproximou e disse: “Cada vez que um cavalheiro virtuoso se digna a passar por minhas terras eu não deixo de convidá-lo e de lhe dar testemunho de minha amizade e de meu respeito. As nações do Extremo Oriente são países de grande moral. Eu ficaria feliz de ouvir algumas considerações sobre a amizade, o que o senhor acha?” Deixando-o, eu comecei a redigir o que eu sabia deste assunto desde a minha infância. Eu escrevi o opúsculo que apresento aqui com grande humildade.[9]

Objetivo da obra[editar | editar código-fonte]

O principal objetivo de Matteo Ricci ao escrever o Tratado sobre a Amizade era enfatizar a consonância entre as culturas europeia e oriental.[10]

O Tratado tinha o objetivo de elaborar o conceito de Amizade e refletia o esforço do jesuíta para que os leitores chineses pudessem conhecer melhor a sabedoria dos filósofos antigos do Ocidente, através de passagens e aforismos simples traduzidos ou parafraseados dos clássicos europeus.

A Amizade, para Ricci, é um sentimento precioso para o indivíduo e para a sociedade. Na obra, o jesuíta apresenta a Amizade como um sentimento benéfico e virtuoso que, fundada na igualdade, seria dotada de propriedades enriquecedoras, tanto em termos espirituais quanto em materiais.[11]

Influências[editar | editar código-fonte]

A principal base para escrever o Tratado foi a compilação Sententiae & Exempla, de André de Resende, servindo para ordenar a sequência de máximas da obra.[12] Além do dominicano português, destaca-se os Adágios de Erasmo de Rotterdão, no qual a primeira máxima teve influência direta nas máximas 29 e 95 [13] da obra do jesuíta, como pode-se ver a seguir:

Primeira máxima dos Adágios de Erasmo:

Os amigos devem partilhar seus bens.

29

Os bens dos amigos devem ser de posse em comum.

95

Em tempos antigos existiam dois homens que andavam juntos, um extremamente pobre e outro extremamente rico. Alguém comentou: “Aqueles dois homens se tornaram amigos muito próximos”. Ao ouvir isso, um sábio retorquiu: “Se isto fosse verdade, por que um deles é rico e o outro é pobre?

No Tratado de Ricci, pode-se

identificar entre os autores gregos citados Plutarco, seguido de Aristóteles e Diógenes Laércio; entre os latinos, Cícero, vindo depois Sêneca e outros mais; dos cristãos, são principalmente Santo Agostinho e Santo Ambrósio. Pode dizer-se que é toda a sabedoria clássica ocidental que transparece nesta obra. Também o eco da literatura bíblica ressoa ao longo do livro.[12]

Sendo um dos objetivos do jesuíta enfatizar as semelhanças entre os pensamentos europeu e oriental, Ricci considerava ser o confucionismo uma filosofia baseada no direito natural, contendo a ideia do Deus cristão.

De acordo com o diretor do Centro de Estudos Chineses da Companhia de Jesus em Pequim, Roberto Mesquita Ribeiro, a estratégia de Ricci funda-se em uma teologia da Criação que reconhece a possibilidade de manifestação do Dom de Deus em todas as manifestações culturais da humanidade.[14]

O inaciano chega a conclusão de que os chineses podem se converter ao cristianismo sem abandonar a cultura e a tradição confuciana. De acordo com o próprio Ricci, o cristianismo não destrói nem abole o confucionismo, mas reforça e aperfeiçoa-o.

Apesar disso, tanto Confúcio quanto Ricci davam especial enfoque na igualdade de virtude como fundamento da Amizade. Querendo alinhar o pensamento europeu com o pensamento dos letrados chineses, o jesuíta comparou Confúcio como um outro Sêneca e os confucionistas como “uma seita epicurista, não no nome, mas nas suas leis e pareceres”.[15]

Estrutura da obra[editar | editar código-fonte]

Cópia de um trecho do Tratado sobre a Amizade, na qual observa-se a transcrição nas línguas italiana (à esquerda) e mandarim (à direita).

O Tratado sobre a Amizade tinha formato e estilo similares aos livros de tradição confucionista e, por tratar-se de uma obra de fundo meditativo e não argumentativo, seguiu uma estrutura similar ao Enchiridion de Erasmo, aos Analectos de Confúcio e aos Exercícios Espirituais de Inácio de Loyola.[16]

O Tratado estrutura-se em 100 máximas que podem ser analisadas quantitativamente,[17] classificando-as em:

  • Máximas abordando Amizade e Igualdade: 10
  • Máximas abordando Relações Familiares: 03
  • Máximas envolvendo explicitamente referências religiosas: 02
  • Máximas que explicam como a Amizade é concebida e tratada em seu tempo: 52
  • Máximas que tratam da relação entre Amizade e Virtude: 15
  • Máximas que tratam da relação entre Amizade e Materialidade: 18

As máximas não apresentam nenhum ordenamento objetivo, podendo ser lidas em qualquer sequência, pois carregam em si um ensinamento autoexplicativo.

Crítica ao Confucionismo[editar | editar código-fonte]

O confucionismo prega o conceito do wu lun, no qual representa as cinco relações cardeais e hierárquicas na cultura chinesa: as relações entre súdito e soberano, pais e filhos, irmão mais velho e irmão mais novo, marido e mulher, e entre amigos.

As máximas 36 e 50, ao contrário da perspectiva do wu lun, exaltam as relações de amizade em detrimento das relações familiares. Não se sabe se a abordagem crítica de Ricci foi uma ação deliberada, mas as máximas serviram para que filósofos chineses da época discutirem o sistema organizacional da sociedade.

As sentenças podem ser vistas a seguir:

36

Amigos são mais próximos que irmãos porque os amigos chamam uns aos outros de “irmãos”, enquanto que os melhores irmãos tornam-se amigos.

50

Amigos superam os membros familiares em apenas um ponto: é possível para os membros familiares não amarem uns aos outros, mas não é possível entre amigos. Se um membro familiar não ama o outro, a relação de parentesco ainda permanece. Contudo, ao menos que exista amor entre amigos, o princípio essencial de amizade existe?   

Omissão de Deus e de Jesus Cristo[editar | editar código-fonte]

O método acomodativo adotado pelos jesuítas recebeu muitas críticas, principalmente por parte dos franciscanos.[18] A polêmica sobre o método de evangelização foi tão intensa que ficou conhecida como Querela dos Ritos.

Retrato do Papa Clemente XI. No dia 19 de Março de 1715, o Papa emitiu a bula papal Ex illa die, condenando os ritos chineses. Zangado pela decisão papal, o imperador chinês Kangxi emitiu um decreto imperial em 1717 determinando a proibição da prática do cristianismo na China e a expulsão de todos os missionários.

Uma acusação frequente, tanto de franciscanos quanto de dominicanos, ao método dos jesuítas era a de que estes não enfatizavam firmemente a imagem de Jesus Cristo crucificado.[19] Os padres da Companhia de Jesus situados no Império chinês perceberam que a cultura chinesa buscava equilíbrio e beleza nas representações, sem nenhuma evocação de sofrimentos físicos, por isso escolheram não enfatizar a imagem dolorosa de Cristo.

Outro ponto importante para a omissão de Jesus Cristo foi que os inacianos perceberam a força da hierarquia social e do respeito entre as classes. Desse modo, a história de Jesus tornou-se problemática no contexto chinês, pois Cristo era um marginal que desafiava os valores do Império Romano e que acabou sendo torturado e morto. A imagem de Jesus poderia ser vista como uma figura subversiva aos olhos dos chineses e como um ser inferior por ter-se sujeitado à tortura física, reservada apenas às classes mais baixas da sociedade do Império do Meio.[20]

O Tratado de Ricci também passou por algumas críticas em relação a frequência do teor religioso e a questão da terminologia de Deus.

Apenas as máximas 16 e 56 referenciam diretamente Deus. Nestas sentenças, Ricci coloca a Amizade como uma bênção divina, criada para que os homens se ajudassem.

16

Cada pessoa não pode completar absolutamente sozinha uma tarefa. Por esta razão o Senhor do Céu (Tianzhu) ordenou que existisse a Amizade, para que possamos ajudar uns aos outros. Se esta doutrina fosse erradicada do mundo, a humanidade certamente iria desintegrar-se em ruína.

56

O Senhor do Céu (Tianzhu) deu às pessoas dois olhos, duas orelhas, duas bocas e dois pés para que dois amigos pudessem ajudar um ao outro. Apenas desta forma os feitos podem ser completados com sucesso.

Ao utilizar o termo Senhor do Céu, Ricci buscava defender que a divindade ancestral dos chineses e o deus hebraico eram essencialmente o mesmo. Contudo, a principal preocupação entre os outros missionários era de que a terminologia Senhor do Céu poderia causar ambiguidade entre os eruditos chineses sobre a verdadeira natureza de Deus.[21]

Impacto na China imperial[editar | editar código-fonte]

O Tratado possibilitou a criação de uma imagem positiva a respeito dos jesuítas para os eruditos chineses. Em uma carta enviada para os jesuítas da Europa, em 1599, Matteo Ricci, relata o impacto positivo:

Este Tratado tem ganhado mais crédito para mim e para nossa Europa do que qualquer coisa que nós tenhamos feito, porque as outras nos dão crédito pelas coisas mecânicas e artificiais de nossas mãos e instrumentos; mas [o Tratado] nos dá crédito pela nossa literatura, astúcia e virtude.[22]

A obra fora bem aceita pelos letrados chineses, sendo incluída em coletâneas imperiais, reeditada, interpretada e apropriada de diversas maneiras, mesmo após a morte de Ricci.[23]

Li Zhi e Xu Bo, filósofos da época conhecidos por questionarem a ordem vigente, utilizaram o escrito do jesuíta para discutirem a respeito de como a ideia da partilha de bens materiais entre amigos era um ideal frequentemente não realizado pela sociedade chinesa.[24]

Na organização de uma coletânea filosófica de 1782, o editor Zhu Xi comenta sobre a obra de Ricci de maneira negativa, afirmando que a condição igualitária da Amizade proposta no Tratado, contraria as tradições ancestrais.[24] O editor escreve:

Ele [Ricci] diz: “Se duas pessoas se tornam amigas, uma não deve ser rica e a outra pobre”. Isto demonstra que ele entende “o direito de partilhar riqueza”, mas não entende os ritos ancestrais: somente aqueles que estão de luto dividem sua riqueza; isto não se aplica a todos os amigos. Dividir sua riqueza assim que se tornam amigos um do outro faria o rico amar sem distinções, e os pobres se unirem por lucro. Como isto poderia ser o ensinamento da Doutrina do Meio?[25]

Referências[editar | editar código-fonte]

  1. GODINHO, 2017, p. 5 apud RONG, Hengying. O Tratado de Amizade de Matteo Ricci: Da amizade universal à amizade no Céu. In: Comunnio. Revista Internacional Católica , ano XXX, n.3, 2013, p.313-324.
  2. REGO, 2012, p. 139.
  3. PALAZZO, 2017, p. 2.
  4. Na sociologia, o termo acomodação designa um processo social (e psicológico) associativo que tem como objetivo diminuir o conflito entre diferentes indivíduos ou grupos ou encontrando um novo modus vivendi.
  5. REGO, 2012, p. 112.
  6. PALAZZO, 2017, p.2
  7. PALAZZO, 2017, p. 3.
  8. REGO, 2012, p. 124.
  9. PALAZZO, 2017, p. 9-10.
  10. REGO, 2012, p. 137.
  11. REGO, 2012, p. 123-124.
  12. a b GODINHO, 2017, p. 16.
  13. REGO, 2012, p. 122.
  14. RIBEIRO, 2010, p. 31.
  15. GODINHO, 2017, p. 20.
  16. REGO, 2012, p. 123.
  17. REGO, 2012, p. 122-123.
  18. PALAZZO, 2017, p. 5.
  19. PALAZZO, 2017, p. 6.
  20. REGO, 2012, p. 143.
  21. ALMEIDA, 2017, p. 206.
  22. REGO, 2012, p. 116.
  23. REGO, 2012, p. 114.
  24. a b REGO, 2012, p. 126-127.
  25. REGO, 2012, p. 128.

Bibliografia[editar | editar código-fonte]

  • ALMEIDA, Anna Luisa Souza de. O encontro entre a cruz e o dragão: a missão jesuítica na China Imperial (1579-1773). Cadernos de História UFPE, Pernambuco, v. 12, n. 12, 2017.
  • GODINHO, Paulo Reis. O Tratado da Amizade de Mateo Ricci: modelo de missionação inculturada. Lisboa: Universidade Aberta, 2017. Disponível em: https://www.academia.edu/35290044/O_TRATADO_DA_AMIZADE_DE_MATEO_RICCI_MODELO_DE_MISSIONA%C3%87%C3%83O_INCULTURADA.
  • MIGNINI, Filippo. Introduzione In: RICCI, Matteo. Dell’amicizia . A cura di Filippo Mignini. Quodlibet, 2009.
  • PALAZZO, Carmen Lícia. Matteo Ricci: um jesuíta ao encontro de Confúcio. In: Anais XXIX Simpósio Nacional de História, 2017, Brasília.
  • REGO, Luiz Felipe Urbieta. A China dos Jesuítas: o Tratado da Amizade de Matteo Ricci e sua contribuição para o diálogo cultural entre Oriente e Ocidente. 2012. Dissertação (Mestrado em História) - Departamento de História, PUC-Rio. Rio de Janeiro.
  • RIBEIRO, Roberto Mesquita. Uma missão sob o signo da amizade. Revista do Instituto Humanitas Unisinos, São Leopoldo, ed. 347, 2010. p. 31-33.