O Cavaleiro, a Morte e o Diabo (Dürer)

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O Cavaleiro, a Morte e o Diabo
O Cavaleiro, a Morte e o Diabo (Dürer)
Autor Albrecht Dürer
Data 1513
Técnica calcogravura
Dimensões 24,5 cm × 19,1 cm 
Localização Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque

O Cavaleiro, a Morte e o Diabo (em alemão: Ritter, Tod und Teufel), originalmente intitulado Cavaleiro (Reiter), é uma calcogravura datada de 1513 do mestre alemão Albrecht Dürer e cuja melhor cópia existente se encontra no Metropolitan Museum of Art, em Nova Iorque.

É uma das três Meisterstiche (gravuras principais), juntamente com São Jerónimo no estúdio e Melancolia I, estas de 1514, concluídas num período em que Dürer quase deixou de trabalhar em pintura ou xilogravura para se concentrar em calcogravuras.[1] A gravura está impregnada de iconografia e simbologia complexas cujo significado preciso vem sendo discutido há séculos.

Ainda que não apresente simbologia cristã explicitamente, a gravura parece invocar o Salmo 23 da Bíblia (Salmos 23:4): "Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, Não recearei mal algum, porque tu és comigo: O teu cajado e o teu bordão, eles me confortam.[1]

Um cavaleiro de armadura montado num garboso cavalo avança acompanhado por um cão no fundo de um desfiladeiro sendo ladeado por um demónio com cabeça de bode e pela figura da morte que monta um cavalo cansado. O corpo apodrecido da morte segura uma ampulheta para lembrar ao cavaleiro a finitude da vida. O cavaleiro avança ignorando ou desviando o olhar das criaturas que espreitam em volta dele, parecendo desdenhar das ameaças, o que é tido com frequência como um símbolo de coragem.[2]

A gravura foi mencionada por Giorgio Vasari como uma das "várias folhas de tal excelência que nada mais fino pode ser alcançado".[3] Foi amplamente copiado e teve uma grande influência sobre escritores alemães posteriores. O filósofo Friedrich Nietzsche referiu-se à gravura na sua obra sobre a teoria dramática O Nascimento da Tragédia (1872) para exemplificar o pessimismo.[4]

Detalhe

Descrição[editar | editar código-fonte]

Tal como acontece nas outras duas Meisterstiche, sendo as três idênticas em tamanho, esta gravura contém um crânio, um cão e uma ampulheta. A gravura deve muito ao estilo gótico. Muitas das formas entrecruzam-se. O contorno do cavalo é construído a partir de uma série de curvas interligadas, enquanto o queixo do cavaleiro é entrelaçado com a linha do capacete. Estas duas figuras centrais estão rodeadas por uma massa emaranhada de ramos, arreios e cabelos que, segundo o historiador de arte Raymond Stites, contrastam com a figura relativamente sólida do cavaleiro e do seu cavalo para os definir como uma "ideia tangível num mundo de formas mutáveis".[5] O homem é apresentado a olhar fixamente em frente, não permitindo que a sua linha de visão seja cortada ou desviada pelos demónios à volta dele.[6]

De acordo com Elizabeth Lunday, a "figura esquelética da morte surge fantasmagoricamente pálida contra a negrura de um penhasco sombrio, enquanto o diabo, uma criatura parecida com um bode de múltiplos chifres, espreita por baixo das raízes entrelaçadas de árvores".[7] A morte é representada com o seu cavalo no lado esquerdo sem nariz ou lábios em tons mais claros do que as outras figuras.[5] Um crânio está em primeiro plano, em frente do trilho do Cavaleiro, enquanto um cão corre entre os dois cavalos.

A armadura do cavaleiro, o cavalo que se sobrepõe em imponência às figuras bestiais, as folhas de carvalho e a fortaleza no topo da montanha simbolizam a resiliência da fé, enquanto que as ameaças sobre o cavaleiro podem representar a jornada terrena dos cristãos rumo ao Reino dos céus.[8]

A Morte, o Diabo e a paisagem são representados sombriamente em estilo nórdico. As personagens circundantes ameaçam o Cavaleiro, que parece protegido literal e figurativamente pela Armadura de Deus/ armadura da fé. Alguns historiadores de arte associam a gravura à publicação de Enchiridion militis Christiani (Manual de um Cavaleiro Cristão) do humanista e teólogo holandês Erasmo de Roterdão.[9]

O cavalo está habilmente reproduzido em formas geométricas que evocam Leonardo da Vinci e reflectem o interesse renascentista nas ciências naturais e anatomia.[10]

A gravura está datada e assinada pelo artista na placa da parte inferior esquerda onde se vê 1513 e o monograma de Dürer.[10]

Estudo de cavaleiro (1498), de Albrecht Dürer

Interpretação[editar | editar código-fonte]

A gravura foi criada quando Dürer estava ao serviço do imperador Maximiliano I, mas não foi resultante de uma encomenda e não contém uma mensagem abertamente política. Ao invés, regressa a um ideal medieval de moralidade e está repleto do imaginário gótico.[5][11]

A gravura tem semelhanças no temperamento e tom com Melancolia I, uma das outras grandes gravuras de Dürer. O cavaleiro parece resignado e os seus traços fisionómicos são de abatimento. A sua postura sombria está em contraste com o aspecto robusto do seu cavalo. Enquanto a armadura parece protegê-lo contra os demónios que o circundam, o crânio assente num cepo em frente do cavalo e a queda da areia na ampulheta segura pela morte diante do cavaleiro são ameaças inultrapassáveis. De acordo com a escritora Dorothy Getlein, "há uma sensação de obsolescência sobre o cavaleiro que é acompanhado pela Morte e pelo Diabo".[12] Holland Cotter, crítico de arte no The New York Times, assinalou que esta gravura foi criada pouco depois de a mãe querida de Dürer ter morrido com muito sofrimento.[13]

O historiador de arte austríaco Moritz Thausing sugeriu que Dürer havia criado O Cavaleiro, a Morte e o Diabo como parte de um projetado ciclo de quatro obras para ilustrar cada um dos quatro temperamentos. De acordo com Thausing, esta gravura pretendia representar o temperamento sanguíneo e daí o "S" gravado junto à data.[14]

Em geral considera-se que a imagem é uma celebração literal, embora cortante, da fé cristã do cavaleiro, e também dos ideais do humanismo. Uma interpretação alternativa foi apresentada em 1970 pelo escritor Sten Karling, que sugeriu que a obra não pretendia glorificar o cavaleiro, mas em vez disso representar um "barão ladrão". Karling aponta para a falta de simbolismo cristão ou religioso na gravura e para a cauda da raposa envolta do topo da lança do cavaleiro.[15] De acordo com a lenda grega, a cauda da raposa era um símbolo de ganância, astúcia e traição, bem como luxúria e prostituição.[10]

Também a artista norte-americana Ursula Meyer considera que o cavaleiro da gravura não é um cavaleiro cristão, mas um "cavaleiro saqueador" ("raubritter"). Ela insiste que a iconografia da cauda de raposa simboliza a ganância do cavaleiro, e que a Morte e o Diabo são apenas os companheiros de jornada do cavaleiro e não presságios do que pode vir a acontecer.[16]

Cavaleiro a cavalo, um estudo de c. 1512–13, na Pinacoteca Ambrosiana de Milão

No entanto, os cavaleiros eram vulgarmente representados na arte contemporânea de Dürer com uma cauda de raposa amarrada à ponta da lança, sendo a cauda de raposa um amuleto de proteção vulgar.[17]

Influência[editar | editar código-fonte]

Em 1870, Friedrich Nietzsche deu uma impressão da gravura a Richard Wagner. A gravura significava para Nietzsche uma representação de um "futuro corajoso" e, como tal, presenteou também com uma cópia a sua irmã Elisabeth Förster-Nietzsche na véspera da emigração dela para Paraguai.[18]

Após a Primeira Guerra Mundial, os escritores Thomas Mann e Ernst Bertram descreveram a gravura como muito próxima do que Nietzsche ensinava sobre o destino da Alemanha, a corporização de ideais da Renascença e dos ensinamentos de Martinho Lutero e, como descrito por Gary Shapiro, eles reconheciam que a gravura era "invocada a fim de intensificar o sentido de determinação resoluta na ausência de qualquer esperança".[19]

Dürer foi idealisticamente invocado a partir da década de 1920 pelos ideólogos do partido nazista como "o mais alemão dos artistas alemães". Num comício nazi, em 1927, o filósofo e mais tarde condenado como criminoso de guerra Alfred Rosenberg comparou os Stosstruppen reunidos ao cavaleiro de O Cavaleiro, a Morte e o Diabo, exclamando que "em tudo o que fizerem lembrem-se que para os Nacional-Socialistas apenas conta uma coisa: gritar ao mundo; e mesmo que o mundo esteja cheio de demónios, devemos vencer de qualquer maneira!"[20]

O escritor e poeta argentino Jorge Luis Borges escreveu dois poemas baseados na gravura intitulados Ritter, Tod, und Teufel (I) e Ritter, Tod und Teufel (II). No primeiro ele elogia a coragem do cavaleiro, escrevendo: "Sendo/ valente, Teutão, tu certamente serás/ digno do Diabo e da Morte".[21] No segundo, ele compara o seu próprio estado ao cavaleiro, escrevendo: "É a mim, e não ao Cavaleiro, a quem o velho homem de cara pálida, cabeça coroada de serpentes contorcendo-se, exorta."[22]

A maioria das salas de impressão com uma colecção significativa de gravuras tem uma cópia de O Cavaleiro, a Morte e o Diabo, havendo muitas impressões, com frequência gastas, em colecções particulares.

Ver também[editar | editar código-fonte]

Referências[editar | editar código-fonte]

  1. a b British Museum, ed. (8 de Novembro de 2014). «Albrecht Dürer, Knight, Death and the Devil, a copperplate engraving». Consultado em 10 de Abril de 2018 
  2. Bailey, 15
  3. O'Neill, J. The Renaissance in the North, Nova Iorque: The Metropolitan Museum of Art, 1987, pag. 99
  4. Woodward, Ashley. Understanding Nietzscheanism. Routledge, 105-6. ISBN 978-1-3175-4780-8
  5. a b c Stites, 465
  6. Shaw, Daniel. "Epilogue". Journal of Psychoanalytic Inquiry, Volume 27, 2007.
  7. Lunday, Elizabeth. "Secret Lives of Great Artists". Quirk Books, 2014.
  8. "Albrecht Dürer: The Master Prints". Herbert F. Johnson Museum of Art, Cornell University. Acesso em 8 de Abril de 2018.
  9. "Knight, Death, and the Devil, 1513–14". MoMA. Consultado em 10 de Abril de 2018
  10. a b c Nürnberg, 74
  11. Getlein & Getlein, 68
  12. Getlein & Getlein, 72
  13. Holland Cotter, "The Renaissance Followed Him North", The New York Times, March 22, 2013, [1]
  14. Masters in art: a series of illustrated monographs, Volume 5. Bates and Guild Co., 1904. 122–123
  15. Segundo o texto de Physiologus; veja-se Nürnberg, 74.
  16. Meyer, 27–41
  17. Douglas Miller, The Landsknechts, Osprey Publishing, 1994, pag. 10–11.
  18. Bertram, 39
  19. Shapiro, 118
  20. Brockmann, Stephen. Nuremberg: The Imaginary Capital. Londres: Camden House, 2006. 144. ISBN 978-1-5711-3345-8
  21. Borges, 98
  22. Borges, 100

Fontes[editar | editar código-fonte]

  • Bailey, Martin. Dürer. Londres: Phidon Press, 1995. ISBN 0-7148-3334-7
  • Borges, Jorges Luis. In Praise of Darkness (Elogio de la sombra). E.P. Dutton, 1974
  • Brion, Marcel. Dürer. Londres: Thames and Hudson, 1960.
  • Dennis, David. Inhumanities: Nazi Interpretations of Western Culture. Cambridge University Press, 2012. ISBN 978-1-1070-2049-8
  • Getlein, Dorothy & Getlein, Dorothy V. The Bite of the Print: Satire and Irony in Woodcuts, Engravings, Etchings, Lithographs and Serigraphs. Nova Iorque: C. N. Potter, 1963
  • Meyer, Ursula. "Political implications of Dürer's 'Knight, Death, and Devil'." Print Collector's Newsletter 16, no. 5, 1976
  • Mende, Matthias, Dürer in Dublin: Engravings and woodcuts of Albrecht Dürer. Verlag Hans Carl., Nuremberga, 1983
  • Panofsky, Erwin. The life and art of Albrecht Durer. Princeton University Press, 1945
  • Sander, Jochen (ed). Dürer: His Art in Context. Frankfurt: Städel Museum & Prestel, 2013. ISBN 3-7913-5317-9
  • Shapiro, Gary. Archaeologies of Vision: Foucault and Nietzsche on Seeing and Saying. University of Chicago Press, 2003. ISBN 978-0-2267-5047-7
  • Stites, Raymond. The Arts and Man. Nova Iorque; Londres: Whittlesey House, McGraw-hill Book Company, Inc., 1940
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Ligações externas[editar | editar código-fonte]