Usuário(a):Joao0Paulo/Incelença

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Numa das várias crenças intríssecas ao tema, atribui-se às Incelenças a faculdade de facilitar a morte dos agonizantes, de modo minimizar seu sofrimento. De forma similar, embora raramente, são entoadas em meio a orações contra males perniciosos, tempestades e inundações, bem como em rogativas para abrandar as estiagens. Na foto, o velório do comediante chileno Eduardo Tompson.

As Incelenças, também denominadas Incelências (em língua portuguesa: Excelência, por corruptela), Cantigas de Guarda ou Cantigas de Sentinela, constituem uma forma de expressão musical típica da Região Nordeste do Brasil e cidades do Vale do Paraíba. Geralmente atrelado a costumes fúnebres, o termo Incelença remete a uma ampla coleção de pequenos cânticos executados em virtude do falecimento, missas de sétimo dia e festividades relacionadas ao Dia de Finados. De outro modo, as Incelenças podem ser entoadas sob a cabeceira dos enfermos terminais, de forma a substituir a extrema unção na ausência de um sacerdote específico. Neste âmbito, credita-se às Incelenças a propriedade de despertar nos agonizantes o remorso sobre os pecados, incitando-os ao arrependimento.[1] Não obstante amplamente associadas aos ritos mortuários, há registros de sua utilização em meio a preces contra males infecciosos, inundações e até mesmo para amenizar as duras estiagens que castigam a região do semi-árido. Em outras acepções, porém, a utilização destas cantigas fora dos contextos fúnebres, é considerada um agouro de morte.

Estas cantigas podem ser agrupadas em diversas classificações conforme a finalidade e o contexto de sua utilização. Podem-se citar as Incelenças da Hora (imendiatamente entoadas após o anúncio da morte), da Mortalha (ao pôr-se a vestimenta fúnebre), do Falecido (cantadas no decorrer da celebração do velório) e da Despedida, bem como as Incelenças de chuva que constituem uma expressão musical à parte. Cada estrofe da Incelença é repetida por doze vezes, exceto a da Mortalha, a qual cantam por tempo suficiente para vestir o cadáver.

Marcadas pela perpetuação de sua oralidade (estendendo-se de pai para filho e de benzedores para jovens através da memória), as Incelenças apresentam uma estrutura rítmica bastante simples, aliada a uma composição saturada de corruptelas e termos em latim deturpado. A execução de tais hinos é feita sem acompanhamento instrumental, iniciados por uma ou mais vozes femininas a qual se segue um coro em uníssono[2].

Embora, no passado, tenham sido amplamente praticadas por uma maioria massiva da população nordestina, a severa repressão policial[2], em parceria com o descaso das autoridades católicas, tornou a utilização das Incelenças restrita às zonas rurais menos abastadas e distantes das grandes aglomerações urbanas.[2]

Devido às suas características francamente distintas às Incelenças Nordestinas, as Incelenças praticadas na região Vale do Paraíba não serão tratadas neste artigo.

Origem[editar | editar código-fonte]

Derivada da fusão entre os rituais fúnebres lusitanos e as tradições litorâneas preexistentes, o uso das Incelenças remonta aos primórdios da colonização brasileira, período no qual eram amplamente utilizadas indistintamente à classe social ou grupo étnico. Suas matrizes portuguesas remontam uma forma similar de expressão oral denominada Excelência[3], que, por sua vez, provém de antigas tradições mouriscas, adaptadas à realidade católica[4]. Usada em propósitos correspondentes nas regiões de Douro, Beira e Minho, as Excelências seguem uma ordem numérica rígida, que se inicia com um e prossegue até doze, repetindo os versos conforme a quantidade anunciada no início da canção[5]. Acerca do fato, o filólogo e folclorista português Augusto César Pires de Lima exemplifica com a Excelência conhecida como Doze Excelências que deu o Senhor à Senhora da Graça [6], aqui representada de forma a facilitar a compreensão.

Uma excelência que deu o Senhor à Senhora da Graça
Duas excelências que deu o Senhor à Senhora da Graça
Duas excelências que deu o Senhor à Senhora da Graça
Três excelências que deu o Senhor à Senhora da Graça
Três excelências que deu o Senhor à Senhora da Graça
Três excelências que deu o Senhor à Senhora da Graça
[...]
Doze excelências que deu o Senhor à Senhora da Graça (12 vezes)

Segundo a crença, a interrupção da Excelência antes de seu término comprometeria a salvação da alma do defunto e traria diversos infortúnios à sua parentela[5]. Uma forma ritualística semelhante é encontrada em Marrocos, onde são entoados certos romances bíblicos que não podem ser interrompidos[7].

Rituais associados[editar | editar código-fonte]

Ver artigo principal: Sentinela

No Nordeste brasileiro, a utilização fúnebre das Incelenças insere-se num amplo contexto músico-ritualístico, usualmente conhecido como Sentinela, Guarda ou Guardamento. Nessa forma tradicional de velório, que se estende por toda a noite anterior ao sepultamento, atribui-se às Incelenças a propriedade de invocar as entidades angelicais e dúlicas, que, segundo a crença, acompanhariam a alma do desfalecido até o destino conveniente. As sentinelas englobam uma vasta gama de rituais e superstições que variam conforme a localização geográfica na qual estejam incluídas. O objetivo principal desta tradição seria o de "convecer" a alma do falecido - que permaneceria entre os convivas até o fim da celebração - a seguir ao destino que lhe é reservado, para que, assim, não se tornasse um encantado ou assombração e passasse a atormentar seus familiares. Praticamente extinta nas imediações das grandes áreas urbanas, a utilização das Sentinelas sobrevive numa área cada vez mais restrita do semi-árido Nordestino. Este ritual, que, segundo a crença marca a cisão denifitiva entre o corpo e a alma do falecido, tem como ápice o canto da Incelença de Despedida, onde os familiares despedem-se de seu ente querido desejando-lhe um bom destino. Na ocasião, usa-se servir bebidas alcoólicas e certos petiscos aos convidados, que devem assistir a totalidade da Sentinela sob o risco de sofrer algum infortúnio ou contrair a enfermidade que vitimou o falecido. Segundo crê-se, a salvação do falecido será menos dispendiosa quanto maior for o grupo de convivas presentes à Sentinela. Por isso, a participação nestes rituais é tida como um ato de e caridade, que deve ser respeitado mesmo pelos que não conheciam o falecido.

Em tais celebrações, costuma haver uma amálgama entre práticas oficiais da Igreja Católica com passagens típicas da religiosidade popular e até mesmo manifestações profanas ou satíricas. Em certos casos, especialmente tratando-se do falecimento de crianças, estribilos cômicos, Incelenças parodiadas e trechos de cordel sem qualquer conotação mística são utilizados para consolar os parentes do falecido, conferindo à Sentinela um ar menos tétrico. Um caso notório deste uso ocorre com as "Incelenças de Joaquim do Ouro"[8]: uma espécie de Incelença parodiada que tenta, de forma leve e cheia de ambiguidades, denegrir a imagem dos convidados à celebração.

Apesar de estarem presentes nas Sentinelas como um de seus elementos essenciais, as Incelenças não constituem a única forma de expressão mística do rito. Inicialmente, costuma-se rezar uma forma específica de Rosário, onde se substituem os pronomes de primeira pessoa nas preces por outros de terceira pessoa do singular, numa clara alusão ao falecido [nota 1] Em seguida, são entoados os benditos, loas e ladainhas, até meados do fim da madrugada, quando se iniciam as Incelenças. Em casos específicos, como quando o defunto foi vitimado por uma doença infecciosa ou morte acidental, os responsáveis pelo rito musical se portam de maneira específica, sendo conhecidos como Encomendadores de Almas. Este conjunto homogeneamente feminino (de modo mais raro, porém, pode apresentar uma composição mista) trajam uma espécie de mortalha alva, a qual se amarra uma fita azul ou amarela na cintura em oposição à vestimenta do falecido que é inteiramente branca. O diferencial mais notável entre a Sentinela familiar e a realizada pelos Encomendadores, reside na utilização de certos objetos litúrgicos, tais como a cruz e uma espécie de chocalho, o qual utilizam para demarcar o início de cada nova estrofe das Incelenças. O grupo de Encomendadores é, em geral, fixo, sendo convidado a participar de diversas festividades relacionadas ao passamento, como as procissões da Sexta-feira da Paixão, Missas de Sétimo Dia e Romarias de Finados, nas quais reúne as funções de orar pelas almas do Purgatório, de forma a amenizar-lhes a pena. No decorrer de toda a Sentinela, em especial durante a consumação da Incelença de Despedida, é comum que haja a apresentação das Carpideiras: mulheres especialmente contratadas para chorar o defunto e ressaltar suas virtudes.

Qualidades[editar | editar código-fonte]

Incelenças da Hora[editar | editar código-fonte]

Esta variedade de Incelença objetiva, dentre outros, comunicar aos parentes do falecido sobre sua morte. Como crê-se, a presença da família durante o período que antecede o passamento retardaria o processo, estendendo, assim, a agonia. Por isso, no contexto da Sentinela é usual que os últimos rituais pré-morte sejam realizados, quando não por um sarcedote, por uma benzendeira desvinculada da família.

Deu uma hora, não posso esperar [nota 2]
Irmãos da capela, eu venho beijar
Venho be, venho be
Venho beijar
Então se ajoelhe e venha beijar
(...)
Deu doze horas, não posso esperar
Irmãos da capela, eu venho beijar
Venho be, venho be
Venho beijar
Então se ajoelhe e venha beijar

Incelenças da Mortalha[editar | editar código-fonte]

Imediatamente após o falecimento, é usual que se ponha a mortalha no defunto, evitando, assim, que este se torne inflexível e impossibilite o trabalho. Nesta etapa, como na anterior, a presença dos familiares é pouco recomendada.

Uma Incelença
De Nosso Sinhô <Senhor>
Veste esta mortalha
Foi Deus quem mandô <mandou>

Incelenças do Falecido[editar | editar código-fonte]

Uma lavandeira, uma beija fulô <beija-flor> [info 1]
Lavando os paninhos de Nosso Sinhô
Quanto mais lavava, mais sangue corria
Mãe de Deus chorava; os judeus sorria
(...)
Doze lavandeiras, uma beija-flô
Lavando os paninhos de Nosso Sinhô
Quanto mais lavava, mais sangue corria
Mãe de Deus chorava; os judeus sorria

Incelença de Despedida[editar | editar código-fonte]

Ajunta os carregador
O defunto quer ir-se embora
Ajunta os carregador
O defunto quer ir-se embora
Eu venho pedir licença,
Licença p'ra cantar agora
Ó, alma; ó alma. Porque estás aqui chorando
Se é por uma Incelença, já estamos cantando
(...)
Ajunta os carregador
O defunto quer ir-se embora
Ajunta os carregadores
O defunto quer ir-se embora
Eu venho pedir licença,
Licença p'ra cantar agora
Ó, alma; ó alma. Porque estás aqui chorando
Se é por doze Incelenças, já estamos cantando

Incelenças de Chuva[editar | editar código-fonte]

No âmbito das Incelenças de Chuva, o vocábulo Incelença remete não somente à composição musical intrísseca ao termo, senão a um complexo ritual em que as Incelenças desempenham um papel de suma importância. Neste rito, realizado, especialmente, na região do semi-árido Nordestino, há um ágil cortejo de ícones religiosos por uma curta distância, no qual podem se ouvir uma forma de Incelença de melodia e composição mais rebuscadas[nota 3], que, porém, segue a mesma organização em doze versos. As festividades em honra a São Pedro, tido como guardião das chuvas, podem se prolongar por vários dias e se processam em torno de um Cruzeiro de Pedra, o qual é previamente decorado com fitas, flores e velas. Neste espaço, se realizam uma vasta série de reverências e orações, que visam amenizar os efeitos das estiagens.

Uma Incelença, 'tá na rua vai andando
Senhora da Piedade também vai acompanhando
Respondeu, Nossa Senhora, eu também vou ajudar
Esta reza é muito santa, e este sol há de abrandar

Características[editar | editar código-fonte]

Linguagem utilizada[editar | editar código-fonte]

Melodia[editar | editar código-fonte]

Notas[editar | editar código-fonte]

  1. Tal fenômeno pode ser nitidamente observado neste trecho da oração católica Ave Maria:
    Santa Maria, mãe de Deus
    Rogai por ele(a), pecador(a)
    Agora que foi a hora de sua morte
    Amém
  2. No intuito de preservar os aspectos rítmicos da composição, a letra foi transcrita respeitando as singularidades do dialeto nordestino
  3. No contexto das Incelenças de Chuva, nota-se uma composição mais assemelhada ao Canto gregoriano.

Informações adicionais[editar | editar código-fonte]

  1. Segundo a crença popular, a ave conhecida como Lavandeira (Motacila lugens; fig. 1) teria lavado os panos utilizados no parto de Jesus, tornando-se, deste modo, serva de Nossa Senhora. Assim, atribui-se a estas aves propriedades excepcionais.


Referências

  1. Aluísio Alves (Angicos, 320)
  2. a b c Fonseca e Barbosa (1993), pg. 37
  3. Dias (1929),pg. 59
  4. Lima (1948), pg. 183
  5. a b Lima (1948), pg. 185
  6. Lima (1948), pg. 189
  7. Pidal (1924), pg. 120
  8. Fonseca e Barbosa (1993), pg. 227

Notas[editar | editar código-fonte]

Bibliografia[editar | editar código-fonte]

  • FONSECA, Idelette Muzart; BARBOSA, Maria das Graças (1993). Cancioneiro da Paraíba 1a ed. João Pessoa: Grafset 
  • FERNANDES, Gonçalves (Rio de Janeiro). Folclore mágico do nordeste 1a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira  Verifique data em: |ano= (ajuda)
  • LIMA, Augusto César Pires de (1948). Estudos etnográficos, filológicos e históricos 3º ed. Porto: Junta de Província 
  • PIDAL, Ramon Menéndez (1924). El Romancero sd ed. Madrid: [s.n.] 
  • CÉSAR, Getúlio (1941). El Romancero 1º ed. Rio de Janeiro: Irmãos Pongett 
  • DIAS, Jaime Lopes (1929). Etnografia da Beira 3º ed. Lisboa: Emprêsa Nacional de Publicidade 

Categoria:Música do Brasil