Rebuço

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 Nota: Este artigo é sobre o tipo de vestuário tradicional em Portugal. Se procura a ilha na Guiné Equatorial, veja Bioko.
Desenho de uma mulher algarvia usando o biôco, elaborado por José de Saavedra em 1917.

O Rebuço[1][2] ou embuço[3], igualmente conhecido como Bioco[4][5] (também grafado histórica e regionalmente como Biôco ou Biúco), era uma peça de vestuário, utilizada tradicionalmente pelas mulheres em Portugal.

Descrição[editar | editar código-fonte]

O rebuço consistia numa espécie de capote comprido com um cabeção,[6] geralmente de cor negra, que cobria quase totalmente o corpo, desde a cabeça aos pés.[7] A única abertura era uma estreita rótula em bico para os olhos, que podia ser rodada com as mãos, de forma a mudar o sentido da visão.[6] Embora o rebuço fosse normalmente confundido com o biôco, conhecido igualmente no Algarve como biúco, este era ligeiramente diferente, sendo formado por um lenço de grandes dimensões, em tecido rijo, e que era segurado por um xaile que mais grosso e pesado na parte dos ombros e do pescoço.[6] Na obra A Ruiva, publicada em 1881 por Fialho de Almeida, surge uma referência ao uso do embuço em Lisboa: «Dum lado e outro, a fileira de transeuntes seguia, gente de todas as castas, mulheres embuçadas em mantas...».[8]

As palavras rebuço e bioco ficaram ambas com um significado figurativo de simulação ou disfarce, enquanto que o termo sem rebuço passou a ser utilizado para indicar que uma afirmação ou decisão foi feita com franqueza, ou sem rodeios.[9] A palavra rebuço também poderá ser a origem do doce conhecido como rebuçado.[10]

Desenho de uma Burka islâmica, de onde terá derivado o rebuço.

História[editar | editar código-fonte]

Séculos XVI e XVII[editar | editar código-fonte]

O rebuço e as suas variantes foram provavelmente inspirados na tradição islâmica, que forçava as mulheres a cobrir a face.[11] Foram utilizados um pouco por toda a Europa até ao século XIX,[7] incluindo em Portugal, onde o seu uso perdurou durante vários séculos.[6] A primeira tentativa do governo de o proibir terá sido através de uma carta régia de 1626, que impediu as mulheres de andarem embuçadas pelas ruas,[6][12] e ordenava «que se lancem pregões, que toda a mulher de qualquer qualidade, que for achada rebuçada, seja presa na cadeia, e condenada em perdimento do manto, e em cem cruzados de pena».[10] Porém, esta medida não teve resultado, pelo que em 11 de Agosto de 1649 D. João IV emitiu uma nova carta régia: «que vendo eu os grandes danos, que se seguião do costume, que a comunicação com Castela havia introduzido neste Reino, de andarem as mulheres tapadas pelas ruas, e trazerem chapéu; procurando prover em tudo, como cumpre ao serviço de Deus e meu, e honestidade, que nele sempre houve, que tanto sou obrigado a desejar vá com as mais virtudes em crescimento, atalhando o que pode ser ocasião de se encontrar; fui servido resolver, e mandar se fixassem Editais, e lançar pregões nesta cidade de Lisboa, que nenhuma mulher pudesse andar a pé pelas ruas embuçada, com chapeo, ou sem êle, nem assistir nas Igrejas, com pena de que os Ministros e Oficiais de Justiça as poderão desembuçar no lugar, em que assim forem achadas; e sendo mulher nobre, a faria recolher a casa segura, e dar conta ao Julgador do Bairro, para que a mandasse a sua casa com a decência devida à sua qualidade; e pagará cinquenta cruzados...; e sendo mulher ordinária, pagará vinte cruzados da cadeia...».[10] Porém, eram previstas algumas excepções a esta regra: «as regateiras que no lugar aonde vendem, poderão ter o dito chapéu; e sòmente usarão dele as mulheres que trouxerem mantilhas; e de nenhum modo haverão manto com chapéu, salvo as parteiras, que andarem em mula.».[10] O rebuço foi gradualmente desaparecendo da sociedade portuguesa devido às sucessivas regras que levavam à sua proibição,[10] às novas exigências da moda e à sua má reputação, uma vez que alegadamente facilitava os roubos e a prostituição, além que por vezes era trajado por homens, de forma a poder criticar ou insultar outras pessoas sem serem reconhecidos.[7] A conotação entre o rebuço e a prostituição também foi relatada pelo historiador Duarte Nunes de Leão no século XVI: «E as que em Portugal se vem ir embuçadas, são estrangeiras & essas meretrices. E isto he tanto, que as mesmas rameiras Portuguezas se não embuçam por não parecerem o que são».[10]

Séculos XIX e XX[editar | editar código-fonte]

Apesar da sua interdição a nível nacional, o uso do bioco e do rebuço permaneceu no Sul do país, tendo uma revista O Ocidente de 1889 descrito o costume de utilizar o biôco em Monforte, no Alentejo: «A monfortense não falta a uma festa religiosa, e, como o chapeu é ali ainda uma nota discordante, encafúa a cabeça dentro do biôco o traje mais horroroso que se ha visto. Imagine-se uma mantilha avançando por de sobre a testa uma pala de comprimento não inferior a um palmo, forrada de preto; e temos o repulsivo biôco. Comtudo este terrivel adorno não impede que suas donas sejam muito affaveis para os que se arriscam a affrontar o incommodo biôco.».[13] No Algarve, o bioco foi proibido pelo Governador Civil do Algarve, Júlio Lourenço Pinto, por um edital de 28 de Setembro de 1892,[6] alegando que podia ser utilizado com fins impróprios, como a infidelidade conjugal.[14] Com efeito, o bioco nessa altura ainda estava ligado à prática da prostituição, tendo o jornal O Districto de Faro de 8 de Junho de 1876 noticado que tinha terminado o uso dos biôcos em Tavira, devido a um edital da administração do concelho, que limitou o seu uso apenas às prostitutas.[15] Graças a estas medidas, o rebuço e o biôco começaram a desaparecer da região nos princípios do século XX,[14] embora tenham continuado a ser utilizados em várias localidades, principalmente na vila de Olhão, onde na década de 1930 ainda eram por vezes empregues durante a missa de Domingo.[6] Também houve registo de mulheres que foram multadas e presas em Faro, por continuarem a utilizar aquela peça de vestuário.[14] Em 1922, o escritor Raul Brandão visitou a vila de Olhão durante os estudos para a elaboração da sua obra Os Pescadores, tendo anotado uma descrição do biôco: «É um traje misterioso e atraente. Quando saem, de negro, envoltas nos biocos, parecem fantasmas. Passam, olham-nos e não as vemos. Mas o lume do olhar, mais vivo no rebuço tem outro realce. Desaparecem e deixam-nos cismáticos. Ao longe, no lagedo da rua ouve-se ainda o cloque-cloque do calçado - e já o fantasma se esvaiu, deixando-nos uma impressão de mistério e sonho.».[14]

O rebuço e as suas variantes ficaram associados à cultura do Algarve, uma vez que foi o ponto em território nacional onde foram utilizados até mais tarde.[6] Com efeito, o rebuço foi considerado pelo director do Museu do Trajo de São Brás de Alportel como «uma das peças mais carismáticas do Algarve», tendo uma réplica do antigo traje sido guardada naquela instituição.[7] Começou finalmente a desaparecer nas décadas de 1920 e 1930, devido à proibição por parte das forças policiais, e às fortes críticas dos jornalistas e escritores modernistas, que o viam como um símbolo do subdesenvolvimento da região.[7] Por outro lado, o rebuço foi defendido pela feminista Maria Veleda num artigo de 1901, que o associou à liberdade feminina, uma vez que permitia que as mulheres saíssem de casa sem estarem acompanhadas.[7]

Em Portugal, o rebuço não foi utilizado apenas no continente, sendo uma variante desta peça ainda parte do vestuário comum no Arquipélago dos Açores, durante a década de 1930.[6] Com efeito, um artigo de 1931 na revista Ilustração relatou que «Nos Açores mantêm-se, como no Algarve, os capotes com bioco, modelos aperfeiçoados, que derivarão talvez de um resguardo primitivo, a cobrir o corpo inteiro e pendente da cabeça também nele protegida, no qual da forma de mais rude aspecto e contextura, acaso a mais directa, derivarão também as capuchas.».[16]

Influência cultural[editar | editar código-fonte]

Nos princípios de 2015, a empresária Lurdes Silva lançou a linha de roupa Bioco Tradition, baseada no antigo rebuço, com a colaboração do Museu do Traje, no sentido de «recriar peças do passado aliando o design. Peças com identidade, com história, com tradição».[7] De acordo com Lurdes Silva, «Todas as peças contam a história em português e em inglês, ou no forro ou na parte exterior, como é o caso da peça de verão».[7]

Ver também[editar | editar código-fonte]

Referências

  1. «Dicionário Online - Dicionário Caldas Aulete - Significado de rebuço». aulete.com.br. Consultado em 5 de dezembro de 2020 
  2. S.A, Priberam Informática. «Consulte o significado / definição de rebuço no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, o dicionário online de português contemporâneo.». dicionario.priberam.org. Consultado em 5 de dezembro de 2020 
  3. S.A, Priberam Informática. «Consulte o significado / definição de EMBUÇO no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, o dicionário online de português contemporâneo.». dicionario.priberam.org. Consultado em 5 de dezembro de 2020 
  4. S.A, Priberam Informática. «Consulte o significado / definição de bioco no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, o dicionário online de português contemporâneo.». dicionario.priberam.org. Consultado em 5 de dezembro de 2020 
  5. «Dicionário Online - Dicionário Caldas Aulete - Significado de bioco». aulete.com.br. Consultado em 5 de dezembro de 2020 
  6. a b c d e f g h i «Album Algarvio: O Rebuço» (PDF). Costa de Oiro. Lagos: Sociedade de Propaganda Costa de Oiro. Outubro de 1939. p. 3. Consultado em 9 de Novembro de 2020 – via Hemeroteca Digital do Algarve 
  7. a b c d e f g h «Antiga capa algarvia banida no século XIX recriada para voltar à moda». Sapo. 10 de Agosto de 2015. Consultado em 9 de Novembro de 2020 
  8. ALMEIDA, 1881:71
  9. Dicionário Enciclopédico Koogan Larousse Seleções. Léxico Comum. Volume 1 de 3 5.ª ed. Lisboa: Selecções do Reader's Digest, S. A. 1981 [1979]. p. 137, 737. 934 páginas 
  10. a b c d e f SILVA, J. A. de S. (Outubro de 1948). «A Rua e a Horta da Mancebia» (PDF). Olisipo. Ano XI (44). Lisboa: Grupo «Amigos de Lisboa». p. 185-186. Consultado em 19 de Novembro de 2020 – via Hemeroteca Digital de Lisboa 
  11. ROCHA, 1910:21
  12. Neves, António Amaro (2001). Filhos das Ervas - A ilegitimidade no Norte de Guimarães (séculos XVI-XVIII). Guimarães: Núcleo de Estudos de População e Sociedade Instituto de Ciências Sociais Universidade do Minho. 253 páginas  «toda a mulher de qualquer qualidade, que for achada rebuçada, seja presa na cadeia, e condenada em perdimento do manto, e em cem cruzados de pena.»
  13. «Monforte do Alemtejo» (PDF). O Ocidente. Lisboa: Empreza do Occidente. 11 de Maio de 1889. p. 107. Consultado em 9 de Novembro de 2020 – via Hemeroteca Digital de Lisboa 
  14. a b c d BRANDÃO, Veralisa (Setembro de 2016). «O Bioco». Juventude, Artes e Ideias (suplemento do jornal O Olhanense). Olhão. p. 2. Consultado em 10 de Novembro de 2020 – via Issuu 
  15. «Há 44 Anos: D' «O Districto de Faro» de 8 de junho de 1876» (PDF). O Algarve. Ano 13. Faro. 13 de Junho de 1920. p. 2. Consultado em 19 de Novembro de 2020 – via Hemerotega Digital do Algarve 
  16. CHAVES, Luís (11 de Maio de 1889). «A Côr e o Trajo quando vem o Inverno» (PDF). Ilustração. Lisboa: Empreza do Occidente. p. 10-11. Consultado em 9 de Novembro de 2020 – via Hemeroteca Digital de Lisboa 

Bibliografia[editar | editar código-fonte]

  • ALMEIDA, Fialho de (2010) [1881]. A Ruiva. Matosinhos: Quidnovi. 488 páginas. ISBN 978-989-554-757-9 
  • ROCHA, Manoel João Paulo (1991) [1910]. Monografia de Lagos [Monographia: As Forças Militares de Lagos nas Guerras da Restauração e Peninsular e nas Pugnas pela Liberdade]. Faro: Algarve em Foco Editora (publicado originalmente pela Typographia Universal, no Porto). 488 páginas 

Ligações externas[editar | editar código-fonte]


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