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Usuário(a):Guilherme de Baskerville/Problema da demarcação

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Na filosofia da ciência, problema da demarcação (ou, mais raramente ou problema de fronteira ou problema de contorno)[1] refere-se à grande dificuldade outrora existente na distinção entre teorias científicas e teorias não-científicas, à dificuldade em definir as linhas em torno do que seja ciência. Refere-se à natureza e propriedades das fronteiras que promovem a distinção entre ciência e não-ciência, entre ciência e pseudociência, entre ciência e filosofia, entre ciência e religião. Uma forma desse problema, conhecido como o problema generalizado de demarcação engloba todos os três casos simultaneamente.

Depois de mais de um século de diálogo entre filósofos da ciência e cientistas em variados campos, e apesar de um amplo acordo sobre os princípios do método científico,[2] que, se tomado à risca, define precisamente o que vem ou não a ser ciência (teoria científica), as fronteiras limítrofes entre a ciência e a não-ciência continuam a ser debatidas.[3]

A demarcação entre ciência e pseudociência não é um mero problema de debates intelectuais infrutíferos, é de importância social e política.[4]

Antiguidade[editar | editar código-fonte]

Uma tentativa de demarcação pode ser vista nos trabalhos dos filósofos naturais e praticantes de medicina gregos para distinguir os seus métodos e observações da natureza das tentativas de explicação mitológicas ou místicas de seus predecessores e contemporâneos.[5]

Aristóteles descreveu o que ter conhecimento científico de algo envolve. Ele disse que, para algo ser científico, deve-se lidar com causas, usar demonstração lógica, e identificar os universais que são 'inerentes' aos particulares do sentido. Mas, acima de tudo, para haver ciência, deve-se ter certeza apodítica. É a última característica que, para Aristóteles, mais claramente distingue o modo de conhecer científico.[6][nota 1] — Larry Laudan, "The Demise of the Demarcation Problem" (1983)

G. E. R. Lloyd observou que, de certo modo, os grupos faziam várias formas de inquirição sobre a natureza para "legitimar as suas posições",[5] assumindo "uma nova forma de sabedoria (...) cujo propósito era criar um conhecimento, ou até mesmo efetividade prática, superior".[7] Escritores médicos da tradição de Hipócrates defendiam que suas discussões eram baseadas em demonstrações necessárias, um tema desenvolvido por Aristóteles em seu Analíticos Posteriores.[7] Um elemento dessa polêmica na ciência era a insistência em uma apresentação clara e inequívoca de argumentos, rejeitando as imagens, analogias e mitos da sabedoria antiga.[7] Algumas de suas explicações naturalistas de fenômenos são imaginativos, com pouco suporte em observações de fato.[8]

Na Roma antiga, Cicero escreveu De Divinatione, uma rica fonte histórica para entender a concepção de cientificidade na antiguidade romana clássica, onde ele usou, implicitamente, cinco critérios de demarcação científica que também são usados por filósofos da ciência modernos.[9]

Positivismo Lógico[editar | editar código-fonte]

O positivismo lógico, formulado em meados de 1920, defendia que apenas enunciados sobre fatos ou relações lógicas entre conceitos têm significado. Todas os outros enunciados não têm sentido e são chamadas "metafísicos".[carece de fontes?]

De acordo com Alfred Jules Ayer, metafísicos fazem afirmações que dizem conter "conhecimento de uma realidade que [transcende] o mundo fenomênico".[10] Ayer, membro do Círculo de Viena e respeitado positivista lógico inglês, argumentava que fazer quaisquer afirmações sobre o mundo além da própria percepção sensorial imediata é impossível.[11] Isto porque até mesmo as primeiras premissas de metafísicos necessariamente vão começar com observações pela percepção sensorial.[11]

Ayer sugeriu que a linha de demarcação é caracterizada como o lugar a partir de onde enunciados se tornam "factualmente significativos".[11] Para ser "factualmente significativo", um enunciado tem de ser verificável.[11] Para que seja verificável, o enunciado deve ser verificável no mundo observável, ou em fatos que podem ser induzidos de "experiência derivada".[11] Isso é chamado de critério de verificabilidade.[11]

Esta distinção entre ciência, que, de acordo com a perspectiva do Círculo de Viena, possuía enunciados empiricamente verificáveis, e o que eles chamavam pejorativamente de "metafísica", à qual faltavam tais enunciados, pode ser compreendida como uma forma de representar outro aspecto do problema da demarcação.[12] O positivismo lógico é geralmente discutido no contexto da demarcação entre ciência e não-ciência ou pseudociência. No entanto, "As propostas verificacionistas tinham o objetivo de resolver um problema de demarcação distinto, aquele entre ciência e metafísica".[13]

Karl Popper[editar | editar código-fonte]

Karl Popper via a demarcação como um problema central na filosofia da ciência e a articulou como:

Denomino problema de demarcação o problema de estabelecer um critério que nos habilite a distinguir entre as ciências empíricas, de uma parte, e a Matemática e a Lógica, bem como os sistemas “metafísicos”, de outra.[14]

Falseabilidade[editar | editar código-fonte]

Ele defende que a atividade científica baseia-se na falseabilidade: cientistas primeiro elaboram uma teoria para depois buscar uma refutação para a mesma. Se houver um único exemplo contrário à teoria, então ela é falsa. Assim, segundo ele, afirmações científicas não são dependentes do método indutivo, já que "nenhum número de exemplos favoráveis constituirá uma prova conclusiva".[15]

A falseabilidade é o critério de demarcação proposto em oposição ao verificacionismo: "enunciados ou sistemas de enunciados, para que sejam classificados como científicos, devem ser capazes de conflitar com observações possíveis ou concebíveis".[16]

A sua condição é a de que as teorias sejam formuladas em termos precisos e definitivos que não conduzam a afirmações vagas. O problema da pseudociência, segundo ele, é ser suficientemente vaga para que resultados que a contradizem sejam impossíveis de ser obtidos.[15] Tais teorias não seriam teorias científicas ruins em tratar com seus objetos; na verdade, elas nem mesmo seriam teorias científicas.[17]

Nas produções mais tardias de Popper, ele afirma que a falseabilidade é um critério necessário e suficiente para a demarcação. Ele descreveu a falseabilidade como uma propriedade da "estrutura lógica de enunciados e categorias de enunciados", tal que o status científico ou não-científico de um enunciado não mude com o tempo. Isso foi resumido como um enunciado (teórico) ser falsificável "se e somente se ele contradiz logicamente algum enunciado (empírico) que descreva um evento logicamente possível que seja logicamente possível de se observar".[16]

Contra a verificabilidade[editar | editar código-fonte]

Como Popper rejeitava soluções para o problema da demarcação que estivessem baseados em raciocínio indutivo, rejeitava, portanto, a resposta dos positivistas lógicos para o problema da demarcação.[18] Ele argumentava que os positivistas lógicos queriam criar uma demarcação entre o metafísico e o empírico porque acreditavam que as afirmações empíricas eram significativas e as metafísicas não o eram. Diferentemente do Círculo de Viena, ele afirmava que sua proposta não era um critério de "significação".[19]

Popper argumentava que o problema da indução da tradição de Hume mostra que não há maneira de fazer afirmações universais significativas baseando-se em nenhuma quantidade de observações empíricas.[20] Por causa disso, enunciados empíricos não são mais "verificáveis" que enunciados metafísicos.

Isso cria um problema para a linha de demarcação que os positivistas queriam traçar entre o empírico e o metafísico. Por seu próprio "critério de verificabilidade", argumenta Popper, o empírico é sujeito ao metafísico, e a linha de demarcação entre os dois se torna inexistente.[carece de fontes?]

Críticas ao fasificacionismo[editar | editar código-fonte]

Alguns autores, como Sven Ove Hansson, criticaram esse conceito como critério de demarcação:

O critério de demarcação de Popper foi criticado tanto por excluir atividade científica legítima (...) quanto por dar àlgumas pseudociências o status de científicas. (...) De acordo com Lerry Laudam (1983, 121), isso teve a consequência imprópria de aparentar como 'científico' todo enunciado absurdo que faz afirmações constatavelmente falsas". Astrologia, corretamente considerado por Popper como um exemplo incomumente claro de pseudociência, foi testada e minuciosamente refutada (...) Similarmente, as maiores ameaças ao status científico da psicanálise, outro de seus principais alvos, não vêm de afirmações de que não é testável, mas de que foi testada e falhou nos testes.[16]

Pós-positivismo de Kuhn[editar | editar código-fonte]

Thomas Kuhn, um historiador e filósofo da ciência estadunidense, geralmente é ligado ao que veio a se chamar pós-positivismo ou pós-empiricismo. Em seu livro de 1962, A Estrutura das Revoluções Científicas, Kuhn dividiu o processo de fazer ciência em duas frentes diferentes, que chamou de ciência normal e ciência extraordinária (que também chamou, às vezes, de "ciência revolucionária"), e disse que "nós não devemos, creio eu, buscar uma divisão absoluta ou decisiva" em um critério de demarcação. Na visão de Kuhn, "é a ciência normal, em que o tipo de teste do sr. Karl não ocorre, ao invés da ciência extraordinária, que mais distingue a ciência de outras atividades".[16] Isto é, a utilidade de um paradigma científico para a resolução de problemas está em que sugere soluções a novos problemas enquanto continua a satisfazer todos os problemas resolvidos pelo paradigma que ele substitui.[16]

Finalmente, e isto por enquanto é o meu ponto principal, um olhar cuidadoso à empresa científica sugere que ela é a ciência normal, em que o tipo de teste do sr. Karl não ocorre, ao invés da ciência extraordinária, que mais aproximadamente distingue a ciência de outras atividades. Se um critério de demarcação existe (nós não devemos, creio eu, buscar uma divisão absoluta ou decisiva), ela pode estar justamente na parte da ciência que o sr. Karl ignora.[nota 2] — Thomas S. Kuhn, "Logic of Discovery or Psychology of Research?", in Criticism and the Growth of Knowledge (1970), edited by Imre Lakatos and Alan Musgrave

A visão de Kuhn de demarcação é expressa mais claramente em sua comparação da astronomia com astrologia. A astronomia tem sido, desde a antiguidade, uma atividade de resolução de problemas, e portanto uma ciência. Se a previsão de um astrônomo falha, então este seria um problema que ele esperaria resolver, por exemplo, com mais medições ou com ajustes na teoria. Em contraste, o astrólogo não tinha tais problemas, já que, naquela disciplina, "falhas em particular não levavam a problemas de pesquisa, pois nenhum homem, por mais habilidoso que fosse, poderia usá-las em uma tentativa construtiva de revisar a tradição astrológica" (...) Portanto, de acordo com Kuhn, astrologia nunca foi uma ciência.[16] — Sven Ove Hansson, "Science and Pseudo-Science", in the Stanford Encyclopedia of Philosophy

Popper criticou o critério de demarcação de Kuhn, dizendo que astrólogos se envolvem em resolução de problemas, e que portanto o critério de Kuhn reconhecia a astrologia como uma ciência. Ele afirmou que o critério de Kuhn leva a um "desastre imenso (...) [a] substituição de um critério racional de ciência por um [critério] sociológico".[16]

Feyerabend e Lakatos[editar | editar código-fonte]

As publicações de Kuhn contestaram amplamente a demarcação de Popper, e enfatizaram a qualidade humana e subjetiva da transformação científica. Paul Feyerabend estava preocupado com a própria questão da demarcação ser enganosa: a ciência em si não tem necessidade de um critério de demarcação mas, ao invés disso, alguns filósofos estavam tentando justificar uma posição especial de autoridade em que a ciência poderia dominar o discurso público.[21] Feyerabend argumentou que a ciência, na realidade, não ocupa um lugar especial nem em termos de lógica nem de método, e que nenhuma afirmação de autoridade especial feita por cientistas pode ser mantida. Ele argumentou que, dentro da história da prática científica, nenhuma regra ou método pode ser encontrada que não tenha sido violada ou eludida para avançar o conhecimento científico. Tanto Imre Lakatos quanto Feyerabend sugerem que a ciência não é uma forma autônoma de raciocínio, mas é inseparável do corpo mais amplo de pensamento e questionamento humano.[carece de fontes?]

Thagard[editar | editar código-fonte]

Paul Richard Thagard, ao tratar especificamente do problema da pseudociência, propõe um complexo sistema lógico e histórico para resolver o que ele julga que os filósofos anteriores não foram capazes de resolver. [22]

Usando o exemplo da astrologia, o autor sugere que, utilizando-se de análise estatística, ela é ao menos verificável, não sendo este um bom critério para decidir se ela é pseudocientífica. Também diz que não há observação que possa garantir que ela seja falsificada, pois hipóteses auxiliares sempre podem ser levantadas para que a original seja mantida. Portanto não são suficientes para a demarcação.

E introduz um segundo âmbito para o problema, o histórico-social, dividido em três matrizes: a teoria, a comunidade e o contexto histórico.

A primeira, teórica, refere-se às questões relativas à "estrutura, predição, explicação e resolução de problemas".

A segunda matriz, comunidade, levanta três perguntas diferentes: "Primeiro, os praticantes estão em consenso sobre os princípios da teoria e sobre como resolver os problemas que ela enfrenta? Segundo, eles se importam, isto é, estão preocupados em explicar anomalias e comparar o sucesso da teoria ao desenvolvimento de outras teorias? Terceiro, os praticantes estão ativamente envolvidos em tentativas de confirmar positiva ou negativamente sua teoria?"

A terceira, histórica, é evocada a partir desta última pergunta. Segundo Thagard, Kuhn mostrou que uma teoria só é rejeitada quando: "1. ela teve de lidar com anomalias por um longo período de tempo e 2. ela foi contestada por outra teoria."

Thagard então propõe os seguintes princípios de demarcação:[22]

Uma teoria ou disciplina que se propõe científica é pseudocientífica se e somente se:

  1. ela é menos progressiva que teorias alternativas por um longo período de tempo e enfrenta muitos problemas não resolvidos; mas
  2. a comunidade de proponentes esforça-se pouco em desenvolver a teoria em direção a soluções dos problemas, não se mostra preocupada em avaliar a teoria em relação a outras e é seletiva ao levar em conta confirmações positivas e negativas.[nota 3]

A capacidade de progredir seria, então, o que distingue uma teoria científica de uma pseudocientífica. Uma consequência desse critério seria a de que uma teoria poderia ter um status diferente a depender do contexto histórico: a astrologia não seria pseudocientífica no período clássico ou renascentista, mas sim uma atividade científica da época.[22]

Sua definição é prática, e geralmente procura distinguir pseudociência como áreas de pesquisa que estão estagnadas e sem investigação científica ativa.[carece de fontes?]

As perspectivas de alguns historiadores[editar | editar código-fonte]

Muitos historiadores da ciência se preocupam com o desenvolvimento da ciência a partir de suas origens mais antigas; consequentemente, eles definem "ciência" em termos amplos o suficiente para que sejam incluídas formas antigas de conhecimento natural. No artigo sobre ciência da edição nº 11 da Encyclopædia Britannica, o cientista e historiador William Cecil Dampier Whetham definiu ciência como "conhecimento organizado de fenômenos naturais e suas relações".[23] Em seu estudo sobre ciência grega, Marshall Clagett definiu ciência como "em primeiro lugar, a compreensão, descrição e/ou explicação organizada e sistemática de fenômenos naturais e, em segundo lugar, as ferramentas [matemáticas e lógicas] necessárias para esta empresa".[24] Mais recentemente, uma definição parecida apareceu no estudo sobre ciência antiga de David Pingree: "Ciência é uma explicação sistemática de fenômenos percebidos ou imaginados, ou então é baseada em tal explicação. A matemática encontra um lugar na ciência apenas como uma das linguagens simbólicas em que as explicações científicas podem ser expressas."[25] Essas definições costumam focar mais no conteúdo temático da ciência que no seu método e, dessas perspectivas, a preocupação filosófica de estabelecer uma linha de demarcação entre ciência e não-ciência se torna "problemática, senão fútil".[26]

Laudan[editar | editar código-fonte]

Larry Laudan concluiu, depois de examinar várias tentativas históricas de estabelecer um critério de demarcação, que "a filosofia falhou em mostrar o que prometeu" em suas tentativas de distinguir ciência de não-ciência; de distinguir ciência de pseudociência. Nenhuma das tentativas anteriores seria aceita pela maioria dos filósofos nem, segundo ele, deveria ser aceita por eles ou por qualquer outra pessoa. Ele afirmou que muitas crenças bem fundamentadas não são científicas e que, em contrapartida, muitas conjecturas científicas não são bem fundamentadas. Também afirmou que o critério de demarcação foi usado historicamente como arma pesada em disputas polêmicas entre "cientistas" e "pseudo-cientistas". Apresentando uma variedade de exemplos, desde a prática cotidiana do esporte e da carpintaria e ramos de pesquisa não-científica como crítica literária e filosofia, ele vê o problema de se saber se uma crença é bem fundamentada ou não como prática e filosoficamente mais significativo do que se ela é científica ou não. Segundo Laudan, a demarcação entre ciência e não-ciência é um pseudo-problema que seria melhor substituir pelo foco na distinção entre conhecimento confiável ou não confiável, sem a necessidade de se perguntar se aquele conhecimento é científico ou não. Ele confina termos como "pseudociência" ou "não-científico" à retórica de políticos ou sociólogos.[27]

Depois de Laudan[editar | editar código-fonte]

Outros autores discordaram de Laudan. Sebastian Lutz, por exemplo, argumentou que a demarcação não precisa ter uma condição necessária e suficiente única como Laudan implicou.[6] Ao invés disso, o raciocínio de Laudan estabelece, no máximo, que deve-se haver um critério necessário e um critério suficiente possivelmente diferente.[28]

Várias tipologias ou taxonomias de ciências versus não-ciências e conhecimento confiável versus ilusório, foram propostas.[29] Ian Hacking, Massimo Pigliucci e outros observaram que as ciências, em geral, se adequam ao conceito de semelhança de famílias de Ludwig Wittgenstein.[30][31]

Outros críticos argumentaram por mais de um critério de demarcação,[32] alguns sugerindo que deveria haver um conjunto de critérios para as ciências naturais, outro para as ciências sociais, e afirmações envolvendo o sobrenatural tendo um conjunto de critérios para a pseudociência.[31]

Hansson[editar | editar código-fonte]

Sven Ove Hansson publicou um artigo em 2013 sobre a definição de pseudociência e ciência, onde propõe outro critério de demarcação tanto para pseudociência como para não ciência:[33]

Ele defende que a falta de consenso até aquele momento se deve aos filósofos procurarem por um critério no nível errado de especifidade epistêmica, e observa o que o termo "pseudociência" significa para além de "não-científico".

Ciência no sentido amplo[editar | editar código-fonte]

Apesar de, segundo as convenções da língua portuguesa atuais, algumas disciplinas das chamadas humanidades não serem consideradas ciência, ciências e humanidades têm o elemento em comum de que "seu propósito é nos fornecer as afirmações mais epistemicamente justificadas que podem ser feitas, no presente momento, sobre o objeto de estudo de seus respectivos domínios". Tais disciplinas respeitam mutuamente seus resultados e métodos utilizados. A esse corpo de disciplinas ele chama de "ciência(s) no sentido ampliado".

Dessa forma, ele chama de "pseudociência" também às disciplinas e teorias que negligenciam o conhecimento das humanidades.

Ciência e pseudociência[editar | editar código-fonte]

Negando uma classificação binária de "ciência" e "pseudociência" que exclua outras opções para áreas menos nítidas, como a religião ou a ética, diz ele que "a pseudociência é caracterizada não apenas por não ser ciência, mas também, importantemente, por se desviar consideravelmente dos critérios de qualidade da ciência."

Três aspectos de maior importância sobre tais critérios de qualidade são o de confiabilidade, fecundidade científica e utilidade prática. Ele propõe que o critério de confiabilidade, sem o qual os outros não podem existir, é o único dentre eles envolvido na distinção entre ciência e pseudociência.

Ele utiliza-se de alguns exemplos para dizer que, embora um historiador passe cinco anos estudando um assunto já explorado e não chegue a nenhuma conclusão nova, ou um químico realize medições meticulosas em um grande número de minerais e não obtenha nenhum conhecimento novo sobre suas propriedades nem haja nenhuma aplicação prática para sua pesquisa, violando os critérios de fecundidade científica e de utilidade prática, seria incorreto chamar tais investigações de pseudocientíficas, havendo a necessidade de que seus resultados não sejam confiáveis.

Além disso, embora a falta de confiabilidade seja necessária, um pesquisador poderia realizar erros de mensuração ou metodologia, ou praticar fraude, comprometendo a confiabilidade de seus resultados, sem no entanto isso ser suficiente para que tais afirmações ou teorias sejam chamadas pseudocientíficas. É, adicionalmente, ao desviarem-se do conhecimento mais confiável em sua época daquele objeto de estudo, ignorando resultados ou passando a impressão de terem legitimidade científica - mesmo quando classificam-se como forma alternativa não científica, mas igualmente válida, de conhecimento - que tornam-se pseudocientíficas. Esse critério novo foi chamado de princípio da doutrina desviante.

Definições[editar | editar código-fonte]

Ele sumariza sua definição de ciência como:

Ciência (no sentido ampliado) é a prática que nos fornece as afirmações mais confiáveis (i.e., epistemicamente justificadas) que podem ser feitas em um determinado momento sobre um objeto de estudos abarcado por uma comunidade de disciplinas do conhecimento (i.e., sobre a natureza, nós mesmos como seres humanos, nossas sociedades, nossas construções físicas e nossas construções mentais).[33]

E a de pseudociência:

Uma afirmação é pseudocientífica se e somente se satisfaz os seguintes três critérios:

  1. Pertence a um assunto que está contido nos domínios da ciência no sentido ampliado (o critério do domínio científico).
  2. Sofre de uma falta severa de confiabilidade a ponto de não merecer crédito (o critério da não-confiabilidade).
  3. Faz parte de uma doutrina em que seus principais proponentes tentam criar a impressão de que representa o conhecimento mais confiável sobre seu objeto de estudos (o critério da doutrina desviante).[33]

De acordo com Hansson, a demarcação entre ciência e pseudociência tem dois tipos de propostas: a primeira, uma definição exaustiva com critérios necessários e suficientes, que inclui proponentes como Popper, Lakatos e Kuhn; e, a segunda, uma abordagem multicritérios não exaustiva, ficando indeterminado se uma afirmação ou teoria pode ser pseudocientífica sem violar algum dos critérios oferecidos.

Ambas as propostas usam critérios concretos e aplicáveis. A definição que Hansson oferece, no entanto, embora tenha critérios necessários e suficientes, não faz parte daquelas. Hansson diz que "a unidade da ciência opera primariamente em outro nível, mais fundamental que o da metodologia científica concreta."

Relevância[editar | editar código-fonte]

Discussões sobre o problema da demarcação deixam a retórica científica em evidência e incentivam o pensamento crítico. Cidadãos que pensem criticamente e se expressem com argumentos bem pensados contribuem para uma democracia mais consciente.[31]

O filósofo Herbert Keuth observou:

A função talvez mais importante da demarcação entre ciência e não-ciência seja a recusa em aceitar que autoridades políticas e religiosas façam julgamentos definitivos sobre a verdade de alguns enunciado factuais.[34][nota 4]

Preocupações com a nutrição humana deram origem à nota à seguir, de 1942:

Se nossos meninos e meninas serão expostos à afirmações superficiais e frequentemente desinformadas sobre ciência e medicina ditas pelo rádio ou na imprensa, é desejável, senão necessário, que algum corretivo, na forma de informação factual correta, seja dado às escolas. Apesar de esta não ser uma defesa de que professores de química devem apresentar o estudo de proteínas no currículo imediatamente, é uma sugestão de que eles no mínimo deveriam se informar e se preparar para responder perguntas e contra-balancear os efeitos da desinformação.[35]

O problema da demarcação foi comparado ao problema de se diferenciar fake news de notícias verdadeiras, que se tornaram mais proeminentes na eleição presidencial dos Estados Unidos em 2016.[36]

Ver também[editar | editar código-fonte]

Notas

  1. Aristotle described at length what was involved in having scientific knowledge of something. To be scientific, he said, one must deal with causes, one must use logical demonstration, and one must identify the universals which 'inhere' in the particulars of sense. But above all, to have science one must have apodictic certainty. It is the last feature which, for Aristotle, most clearly distinguished the scientific way of knowing.
  2. Finally, and this is for now my main point, a careful look at the scientific enterprise suggests that it is normal science, in which Sir Karl's sort of testing does not occur, rather than extraordinary science which most nearly distinguishes science from other enterprises. If a demarcation criterion exists (we must not, I think, seek a sharp or decisive one), it may lie just in that part of science which Sir Karl ignores.
  3. We can now propose the following principle of demarcation: A theory or discipline which purports to be scientific is pseudoscientific if and only if: 1) it has been less progressive than alternative theories over a long period of time, and faces manyunsolved problems; but 2) the communityof practitioners makes little attempt to develop the theory towards solutions of the problems, shows no concern for attempts to evaluate the theory in relation to others, and is selective in considering confirmations and disconfirmations.
  4. Perhaps the most important function of the demarcation between science and nonscience is to refuse political and religious authorities the right to pass binding judgments on the truth of certain statements of fact.

Referências

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Bibliografia[editar | editar código-fonte]

Ligações externas[editar | editar código-fonte]

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