As Duas Culturas

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As Duas Culturas (The Two Cultures [1]) é o título da primeira parte de uma conferência pronunciada pelo cientista e romancista britânico C. P. Snow, em 1959, no âmbito das conferências Rede (Rede Lectures).[2][3] No mesmo ano, foi publicada em livro como The Two Cultures and the Scientific Revolution. [4] A tese de Snow é a de que "a vida intelectual do conjunto da sociedade ocidental" ("the intellectual life of the whole of western society") divide-se essencialmente em duas culturas - a das Ciências e a das Humanidades - sendo que tal divisão seria um importante obstáculo na busca de soluções para os problemas do mundo.[3]

A palestra[editar | editar código-fonte]

A palestra foi proferida em 7 de maio de 1959 no Senado, em Cambridge, e posteriormente publicada como The Two Cultures and the Scientific Revolution. A palestra e o livro expandiram um artigo de Snow publicado no New Statesman de 6 de outubro de 1956, também intitulado "The Two Cultures". [5] Publicada em forma de livro, a palestra de Snow foi amplamente lida e discutida em ambos os lados do Atlântico, levando-o a escrever uma continuação em 1963, The Two Cultures: And a Second Look: An Expanded Version of The Two Cultures and the Scientific Revolution. [6]

Em 2008, o The Times Literary Supplement incluiu The Two Cultures and the Scientific Revolution em sua lista dos 100 livros que mais influenciaram o discurso público ocidental desde a Segunda Guerra Mundial. [3]

Em sua fala, Snow condenou o sistema educacional britânico por ter, desde a era vitoriana, premiado excessivamente as humanidades (especialmente o latim e o grego) em detrimento da educação científica e da engenharia, apesar de tais conquistas terem contribuído tão decisivamente para a vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial.[7] Na prática, isso privou as elites britânicas (na política, administração e indústria) de uma preparação adequada para administrar o mundo científico moderno. Em contraste, disse Snow, as escolas alemãs e americanas buscavam preparar seus cidadãos igualmente em ciências e humanidades, e um melhor ensino científico permitiu que os governantes desses países competissem de forma mais eficaz em uma era científica. A discussão posterior de The Two Cultures tendeu a obscurecer o foco inicial de Snow nas diferenças entre os sistemas britânicos (tanto de escolaridade quanto de classe social) e os de países concorrentes. [7]

Repercussões[editar | editar código-fonte]

Em seu ensaio Two Cultures?: The Significance of C. P. Snow, publicado em The Spectator (1962), o crítico literário F. R. Leavis classificou Snow como "homem de relações públicas" do establishment científico. O artigo atraiu muitas manifestações a favor e contra, na seção de cartas da revista. [8][9]

Com graça e rigor, o crítico Lionel Trilling, em Beyond Culture: Essays on Literature and Learning, assinalou que, embora Leavis tivesse se excedido no tom, Snow estava mesmo gravemente equivocado, ao deformar a chamada cultura "tradicional", que de tantas maneiras se havia enriquecido ao longo do tempo.[10]

Susan Sontag, num ensaio de 1965, depois incluído em seu livro Contra a interpretação, observou o quanto o texto de Snow era grosseiro e não contemporâneo. Segundo ela, "o problema das duas culturas, em suma, repousa numa percepção não educada, não contemporânea de nossa atual situação cultural. É fruto da ignorância dos intelectuais (e dos cientistas que possuem um conhecimento superficial das artes, como o romancista-cientista C. P. Snow) de uma nova cultura e sua emergente sensibilidade.[11]

Simon Critchley, em Continental Philosophy: A Very Short Introduction escreveu: [12]

[Snow] diagnosticou a perda de uma cultura em comum e a emergência de duas culturas distintas: aquela representada por cientistas, de um lado, e aquela que Snow chamou de 'intelectuais literatos', do outro. Se aqueles são a favor da reforma social e do progresso por meio da ciência, da tecnologia e da indústria, então intelectuais são o que Snow chamou de 'ludistas naturais', em sua compreensão e simpatia pela sociedade industrial avançada. Nos termos de John Stuart Mill, a divisão é entre Bentamitas e Coleridgeanos.

Já o presidente estoniano Toomas Hendrik Ilves, no seu discurso de abertura da Conferência de Segurança de Munique, em janeiro de 2014, disse que os problemas atuais relacionados à segurança e liberdade no ciberespaço são o culminar da ausência de diálogo entre "as duas culturas": "Hoje, desprovidos de compreensão de questões fundamentais e escritos no desenvolvimento da democracia liberal, geeks de computador inventam maneiras cada vez melhores de rastrear pessoas... simplesmente porque eles podem e é legal. Os humanistas, por outro lado, não entendem a tecnologia subjacente e estão convencidos, por exemplo, de que rastrear metadados significa que o governo lê seus e-mails." [13]

Referências[editar | editar código-fonte]

  1. Snow, Charles Percy (1959), "The Two Cultures (The Rede Lecture)".
  2. Snow, Charles Percy (2001). The Two Cultures. Londres: Cambridge University Press. 107 páginas. ISBN 0-521-45730-0 .
  3. a b c «The hundred most influential books since the war». The Times. Londres. 30 de dezembro de 2008 .
  4. Snow, Charles Percy (2001) [1959]. The Two Cultures. London: Cambridge University Press. ISBN 978-0-521-45730-9 
  5. Snow 2013.
  6. Snow, Charles Percy (1963). The Two Cultures: And a Second Look: An Expanded Version of The Two Cultures and the Scientific Revolution. [S.l.]: Cambridge University Press 
  7. a b Jardine, Lisa (2010). «CP Snow's Two Cultures Revisited» (PDF). Christ's College Magazine: 48–57. Consultado em 13 de fevereiro de 2012. Cópia arquivada (PDF) em 17 de abril de 2012  Jardine's 2009 C. P. Snow Lecture honored the 50th anniversary of Snow's Rede Lecture. She places Snow's lecture into its historical context, and emphasizes the expansion of certain elements of the Rede Lecture in Snow's Godkin Lectures at Harvard University in 1960. These were ultimately published as Science and Government. [S.l.]: New American Library. 1962 
  8. Kimball, Roger (12 de fevereiro de 1994). «The Two Cultures' today: On the C. P. Snow–F. R. Leavis controversy». The New Criterion 
  9. Collini, Stefan. Leavis v Snow: the two-cultures bust-up 50 years on. The Guardian, 16 de gosto de 2013.
  10. Trilling, L.. "The Leavis-Snow Controversy", em Beyond Culture, 126-149. Harcourt Brace Jovanovich, 1978.
  11. Sontag, S.. "Uma cultura e a nova sensibilidade", em Contra a interpretação e outros ensaios. Tradução: Denise Bottmann. São Paulo : Companhia das Letras, 2020, p. 368s.
  12. Critchley 2001, p. 49.
  13. Ilves, Toomas Hendrik: "Rebooting Trust? Freedom vs Security in Cyberspace Arquivado em 23 fevereiro 2014 no Wayback Machine" Opening address at Munich Security Conference Cyber 31 January 2014. 31.01.2014.