Crise da historiografia: diferenças entre revisões
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* {{citar periódico|ultimo=Kosteczka|primeiro=Luiz Alexandre|data=2020|titulo=História (in)disciplinada nos dilemas do presente|url=https://www.revistas.ufg.br/teoria/article/view/63364|periódico=Revista de Teoria da História|volume=23|número=1|páginas=331-339|issn=2175 - 5892|ref=harv}} |
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* {{citar periódico|ultimo=Laitano|primeiro=Bruno|data=2020|titulo=(Con)figurações do historiador em um tempo marcado pela disrupção tecnológica|url=https://periodicos.ufsc.br/index.php/esbocos/article/view/2175-7976.2020.e67217/43621|periódico=Esboços: histórias em contextos globais|número=27|volume=45|páginas=170-186|doi=10.5007/2175-7976.2020.e67217|ref=harv}} |
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Revisão das 15h30min de 11 de junho de 2021
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Crise da historiografia, ou crise da história, se refere a um processo histórico ligado à historiografia, no qual esta já não mais conseguiria lidar com as diferentes demandas por produção e disseminação do conhecimento histórico no presente. Esta crise também pode ser observada no que se refere à legitimidade da historiografia como conhecimento especializado sobre o passado e dos historiadores como portadores deste conhecimento frente a sociedade. Por estar inserida em um processo onde a percepção da distância entre passado, presente e futuro se modifica, fazendo com que as formas desenvolvidas para se lidar com as demandas históricas do passado já não se aplicam às demandas do tempo presente, entende-se que a crise da historiografia está fortemente ligada a uma crise do tempo.
Esgotamento
A ideia de esgotamento da historiografia parte da constatação de que as condições de emergência da história como uma disciplina acadêmica, no século XIX, que remete à formação dos estados-nação, a solidificação capitalismo, a expansão do colonialismo e o estabelecimento da burguesia como classe dominante na Europa, deixaram de existir[1] Por conta disso, a historiografia estaria correndo risco de extinção.[2][3]
De acordo com o historiador Arthur Lima de Avila, com a obsessão por tornar-se científica, sem questionar as próprias formas organizativas, a historiografia disciplinada teria perdido sua capacidade em responder às questões de ordem prática e de orientação para a solução de problemas relativos à realidade enfrentada pelos seres humanos no presente.[4] Junto da capacidade por suprir essas demandas práticas, a historiografia teria também perdido sua legitimidade como uma forma especializada de construção do saber sobre o passado.[5] Assim, em vez de ser a manifestação superior do saber sobre o passado, entende-se que a historiografia passou a ser apenas uma das formas de representá-lo, estudá-lo e desejá-lo.[6]
A partir da constatação da incapacidade da historiografia em responder às demandas do presente vem à tona a proposição de que a história teria chegado ao fim de suas capacidades políticas e intelectuais. Esta proposição parte da ideia de que a historiografia chegou a um esgotamento de ordem política, referente à capacidade de intervenção crítica na realidade do presente, e um esgotamento intelectual, referente à capacidade de formular novas ideias e propor saídas criativas aos dilemas cotidianos.[7] Tal esgotamento teria como sintoma a sensação de inacessibilidade do passado, relacionada à impossibilidade da construção de narrativas sobre eventos traumáticos, que por sua vez é causada pela superprodução de documentos e imagens sobre os eventos históricos.[8]
Crise do tempo e neoliberalismo
No mundo neoliberal, as tecnologias parecem ser cada vez mais novas e tornam-se obsoletas com grande rapidez. Desta forma, o distanciamento entre o que estava disponível anteriormente e aquilo que ainda pode existir aumenta, fazendo com que o passado e o presente pareçam ainda mais distantes. [9]
Como marcador de uma temporalidade neoliberal, esta hiperaceleração do tempo implica também o surgimento de novas narrativas e novos conceitos que dão sentido à história. Antes da consolidação do neoliberalismo, termos como “libertação”, “emancipação” e “projeto" encaminhavam a percepção de que a história estava indo em direção ao futuro. Já nos termos de sua consolidação, a tendência é a fragmentação das narrativas, que passaram a ser conduzidas por ideais de excelência e pela busca por maior flexibilidade. [10]. Nos termos da flexibilização, a autoridade sobre estudos do passado deixa de ser exclusividade dos historiadores, fazendo com que a fronteira entre profissionais e amadores da história, constituída no século XIX, seja diluída no século XXI. [11]
Descompasso temporal
No século XXI, a hiperaceleração aumentou a distância entre os novos fenômenos históricos e as palavras disponíveis para explicá-los e o distanciamento entre passado e presente evidenciou as grandes diferenças entre o contexto histórico no qual a historiografia se estabelece enquanto disciplina e o contexto histórico no qual se vive desde, pelo menos, o final do século XX.[12][13]
Este fenômeno gera um descompasso entre as palavras das quais a humanidade dispõe para explicar a realidade e os novos acontecimentos que demandam explicações. [14] Assim, haveria um descompasso temporal entre as demandas que levaram à constituição da história como disciplina e as demandas pela interpretação do passado no tempo presente.[15]
Portanto, a historiografia estaria lançando mão de soluções antigas para problemas novos.[12]Assim, cria-se um obstáculo à diferenciação entre o que aconteceu e o que ainda pode acontecer, fazendo com que os eventos traumáticos como o holocausto, passem a ser vistos como a evidência de um passado maligno em oposição a um presente onde o trauma foi superado, sem que sejam feitos questionamentos a respeito das possibilidades de episódios similares ocorrerem no presente.[16]
Novas mídias
Com o advento das novas mídias, o passado passa a ser observado como uma série de figuras expostas, deslocando de sua centralidade o pensamento crítico oferecido pela historiografia e colocando em seu lugar o efeito emocional dos vídeos e fotografias, transformando assim o público em um consumidor de informações engessadas.[17][18][19] Desta forma, a história e a memória passam a ser experimentadas através das tecnologias de mídia. [20]
Um exemplo deste processo são os ataques de 11 de setembro de 2001 às Torres Gêmeas, em Nova York. Neste evento traumático, os limites entre o espectador e a testemunha do ataque se dissolvem por conta de sua grande repercussão midiática, deslocando também os limites entre as relações coletivas e subjetivas com o trauma. [20][21] Neste contexto, o limite entre o historiador profissional e o amador também sofre mudanças. Ao tornar-se facilmente acessível ao mundo por meio da internet ou da televisão, o evento torna-se disponível através da proliferação de imagens tiradas no momento dos ataques e divulgadas instantaneamente. Assim, o acontecimento não é controlado institucionalmente pelos historiadores, mas também pelas testemunhas, com as quais se confundem os espectadores. [22]
Mundo digital
As mídias digitais entregam o à historiografia novas perspectivas e possíveis saídas aos golpes sofridos. Com o sentimento de que a historiografia está deslocada da sociedade, historiadores acabam buscando ocupar o espaço digital com suas produções, indo assim em direção a novas formas de divulgar e apresentar o conhecimento histórico na internet. [2] O digital, no entanto, apresenta-se como desafio aos historiadores por ser uma nova cultura, com uma linguagem diferente daquela com a qual estão acostumados e também por conta da correspondência do mundo digital a uma dinâmica de espaço e tempo própria. [23]
Outro elemento presente nos debates sobre a implicação das novas mídias na historiografia é o deslocamento do papel do historiador na administração de arquivos digitais. Neste processo, a teoria da história passa a ser deslocada dos debates sobre memória, esquecimento e mapeamento dos fundamentos das documentações por conta das características e linguagem próprias ao mundo digital, o que alimenta a crise da disciplina. Alguns dos resultados, e agravantes, deste problema são a exclusão de historiadores do trato com os vestígios do passado e a ocupação dos arquivos por profissionais sem formação para lidar com as documentações, a ocupação dos espaços por grandes corporações privadas que controlam dados pessoais de usuários e a dissolução da memória como elemento formador do espaço público. [24]
Historiografia e sociedade
A crise da historiografia pode ser observada a partir de elementos externos e internos a ela. Externamente, a demanda acelerada por produtividade no mundo capitalista aliou-se às novas formas de relação entre o Estado, a sociedade e as universidades. Já internamente, surgem novas necessidades por produção e divulgação de conhecimento histórico profissional, em busca de legitimar a existência da historiografia frente às demandas do mundo capitalista. [25]
Universidades
As universidades tomam peso nesta relação por serem entendidas como um lugar que confere peso institucional à disciplina da história e onde esta encontra seus modos de produção e reprodução. Por conta disso, são alvos de críticas os efeitos que as metodologias de avaliação e organização do processo de formação de historiadores causam nas formas de se pensar e produzir história. Entre estes efeitos estão a busca incessante por atingir altos índices de produtividade e a lógica concorrencial nas relações entre professores universitários. A busca por atingir maior êxito nas avaliações internas causaria um afastamento dos historiadores da população não acadêmica, o que acabaria contribuindo também ao agravamento da crise da história como disciplina.[26]Também a profissão dos historiadores estaria em risco, porque trabalharia com pressupostos nos quais os historiadores não podem mais acreditar. Assim, a sobrevivência da profissão passaria por repensar seus pressupostos, em vez de insistir em afirmá-los. A esta prática relaciona a busca por indisciplinar a historiografia, ou seja, encontrar novas formas de se pensar, fazer e apresentar o conteúdo produzido nos departamentos de história das universidades. [27][28]
Sociedade
Entre os acadêmicos, a crise da história é enunciada em debates sobre a dificuldade de encontrar espaços de diálogo com públicos amplos e a sensação de que existe um deslocamento do conhecimento histórico especializado em relação à sociedade. Este distanciamento pode ser observado através dos diversos casos de negacionismo histórico nas mídias sociais.[29] São exemplos da tensão entre a historiografia e a sociedade capitalista o senso comum de que as ciências humanas e sociais não fariam parte das necessidades mais urgentes para o desenvolvimento de uma sociedade e a revogação da obrigatoriedade do ensino de ciências humanas nas escolas. No Brasil, o Escola Sem Partido é entendido como uma forma de criminalização da liberdade de ensino dos professores de história sob o pretexto de se combater uma suposta doutrinação ideológica por parte dos professores de ciências humanas.[30]
Mercado de trabalho
A busca pela quebra com as formas tradicionais da disciplina e do ensino da história também se relaciona com as demandas dos historiadores por trabalho. Argumenta-se que o ensino formal da historiografia acadêmica não teria condições de contemplar o grande número de graduados, mestres e doutores em história, tanto em número de vagas de emprego disponíveis quanto em possibilidades de atuação profissional, que na maioria dos casos estaria limitada às escolas e universidades.[31]
Em comparação com o século XIX, os tempos de crise impuseram mudanças nas relações entre historiadores e Estado. No contexto da formação da historiografia como disciplina, o Estado era o grande interessado em profissionalizar o trabalho com o passado, já que era interesse dos governantes fazer com que as histórias nacionais fossem escritas e narradas nos termos da legitimação do Estado como instituição. Já no século XXI, é possível ver a constante busca de historiadores por posicionarem-se no mercado de trabalho nos termos da prestação de serviços, em um contexto de transformação dos postos de trabalho e diversificação das possibilidades e demandas de consumo do passado nas mídias sociais. [32] Assim, as ocupações dos historiadores também diversificaram-se, abrangendo uma atuação que vai dos arquivos e museus até o trabalho nas redes sociais e a conformação do campo da história digital. [33] Para o historiador Rodrigo Turin, a relação da profissão com a crise pode ser observada através da:
“ | necessidade de sua reorientação diante de desafios contemporâneos, como a redefinição dos objetos e recortes cronológicos que definem as grades curriculares, a inserção e a formação de novas habilidades voltadas a novos mercados de trabalho e o trabalho a respeito das demandas de memória por parte de diferentes grupos e identidades sociais, étnicas e de gênero | ” |
— Turin, Rodrigo (2017). Entre o passado disciplinar e os passados práticos: figurações do historiador na crise das humanidades, p. 200[34] |
Ver também
- Fim da história
- Indisciplina da história
- História da historiografia
- Historiografia
- Teoria da história
Referências
- ↑ Avila 2019, p. 19.
- ↑ a b Laitano 2020, p. 183.
- ↑ Turin 2017, p. 187.
- ↑ Avila 2018, p. 245.
- ↑ Avila, Nicolazzi & Turin 2019, p. 7.
- ↑ Avila 2018, p. 257.
- ↑ Avila 2018, p. 246.
- ↑ Avila 2018, p. 2018.
- ↑ Laitano 2020, p. 173.
- ↑ Turin 2017, p. 190-191.
- ↑ Turin 2017, p. 192.
- ↑ a b Avila 2018, p. 255.
- ↑ Avila 2019, p. 24.
- ↑ Avila 2018, p. 254.
- ↑ Avila 2019, p. 20.
- ↑ Avila 2018, p. 252.
- ↑ Avila 2018, p. 253.
- ↑ Burgess & Elias 2016, p. 6.
- ↑ Eley 2011, p. 557.
- ↑ a b Silveira 2016, p. 26.
- ↑ Silveira 2016, p. 30.
- ↑ Silveira 2016, p. 38.
- ↑ Lucchesi 2014, p. 46.
- ↑ Marino, Nicodemo & Silveira 2020, p. 5.
- ↑ Turin 2017, p. 188.
- ↑ Avila, Nicolazzi & Turin 2019, p. 12.
- ↑ Avila 2019, p. 23.
- ↑ Scott 1998.
- ↑ Kosteczka 2020, p. 332.
- ↑ Avila 2018, p. 262.
- ↑ Avila, Nicolazzi & Turin 2019, p. 11.
- ↑ Turin 2017, p. 197.
- ↑ Turin 2017, p. 198.
- ↑ Turin 2017, p. 200.
Bibliografia
Artigos acadêmicos
- Avila, Arthur (2018). «O fim da história e o fardo da temporalidade». Tempo & Argumento. 10 (5): 243-266. doi:10.5965/2175180310252018243
- Eley, Geoff (2011). «The past under erasure? history, memory, and the contemporary». Journal of Contemporary History. 46 (3): 555=574. doi:10.1177/0022009411403342
- Kosteczka, Luiz Alexandre (2020). «História (in)disciplinada nos dilemas do presente». Revista de Teoria da História. 23 (1): 331-339. ISSN 2175-5892
- Laitano, Bruno (2020). «(Con)figurações do historiador em um tempo marcado pela disrupção tecnológica». Esboços: histórias em contextos globais. 45 (27): 170-186. doi:10.5007/2175-7976.2020.e67217
- Lucchesi, Anita (2014). «Por um debate entre história e historiografia digital». Boletim historiar (2): 45-57. ISSN 2357-9145
- Moreira, Igor Lemos (2020). «Debates para (in)disciplinar a história». Tempo & Argumento. 12 (20): 2-8. ISSN 2175-1803. doi:10.5965/2175180312302020e0602
- Marino, Ian Kisil; Nicodemo, Thiago; Silveirda, Pedro Telles (2020). «Arquivo, memória e big data: uma proposta a partir da COVID-19». Cadernos do Tempo Presente. 11 (1): 90-103. ISSN 2179-2143
- Silveira, Pedro Telles (2016). «Da história instantânea ao arquivo infinito: arquivo, memória e mídias eletrônicas a partir do Center for History and New Media (George Mason University, EUA)». Faced da História. 3 (1): 24-42. ISSN 2358-3878
- Turin, Rodrigo (2017). «Entre o passado disciplinar e os passados práticos: figurações do historiador na crise das humanidades». Tempo. 24 (2): 186-205. doi:10.1590/TEM-1980-542X2018v240201
Livros e capítulos de livro
- Avila, Arthur (2019). «O que significa indisciplinar a história?». In: Avila, Arthur; Nicolazzi, Fernando; Turin, Rodrigo. A História (In)disciplinada. Vitória, ES: Milfontes. pp. 19–51. ISBN 978-8594353-64-1
- Avila, Arthur; Nicolazzi, Fernando; Turin, Rodrigo (2019). «Apresentação». In: Avila, Arthur; Nicolazzi, Fernando; Turin, Rodrigo. A História (In)disciplinada. Vitória, ES: Milfontes. pp. 7–18. ISBN 978-8594353-64-1
- Burgess, Joel; Elias, Amy (2016). Time:a vocabulary for the present. Nova York: New York University Press. pp. 1–384. ISBN 978-1479874842
- Oliveira, Maria da Glória (2019). «A história disciplinada e seus outros: reflexões sobre as (in)utilidades de uma categoria». In: Avila, Arthur; Nicolazzi, Fernando; Turin, Rodrigo. A História (In)disciplinada. Vitória, ES: Milfontes. pp. 53–72. ISBN 978-8594353-64-1