Chinelagem

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Apresentação da banda Aristóteles de Ananias Jr na performance Chinelizemo a Vernica, 1994, na Casa de Cultura Mario Quintana.

Chinelagem ou chinelice é uma expressão do regionalismo do Rio Grande do Sul, no Brasil, mais especificamente da região de Porto Alegre, que foi integrada a um socioleto de bandas de rock, indicando uma estética e uma ideologia baseadas no descompromisso e na rebeldia em relação às normas culturais dominantes.

O conceito, segundo Luís Augusto Fischer, em seu Dicionário de Porto-Alegrês, provém de "chinelão", definido como "altamente depreciativo, um xingamento forte. Chamar alguém de chinelão equivale a dizer que o insultado é bagaceiro, pobre, mal arrumado, descomposto, mal educado, tudo isso junto. Também se usa, mais contemporaneamente, dizer chinelo, no mesmo sentido. Usa-se a forma feminina, também, chinelona". Daí que chinelagem seria os atributos e comportamento do "chinelão".[1] Fabricio Lopes da Silveira o define como derivado do hábito de andar de chinelos de dedo, mas com associações semelhantes, como sinal de uma atitude de desprendimento em relação às convenções sociais, "andar à vontade, descompromissar-se, não se preocupar, não se levar muito a sério; quer dizer alguma coisa mal feita ou feita sem muita dedicação". O "chinelão" seria "alguém bagaceiro, tosco e vulgar, mal-arrumado, sem educação".[2] Para Márcio Ezequiel significa "atitude ou coisa de mau gosto. [...] É a tosqueira elevada ao totalmente sem noção".[3]

O termo foi apropriado por grupos de rock entre as décadas de 1980 e 1990, quando ocorreu uma grande proliferação de bandas e selos independentes em Porto Alegre, na intenção de significar essa atitude casual e despojada, baseada no à-vontade, no improviso, mas também na contestação dos costumes, que caracteriza a postura de bandas como Graforréia Xilarmônica, Comunidade Nin-Jitsu e Cascavelletes.[4][5] Felipe Estivalet diz que "a chinelagem é um tipo de anti-profissionalismo", e acrescenta: "Desde os anos 80, a chamada 'cena underground' caracterizou-se por um despojamento no tipo de produção tanto em termos de fonogramas, como na produção de shows, apoiada na caracterização do improviso ou no que muitas bandas e artistas definiam como a grande característica do rock independente gaúcho: a chinelagem".[5] Júpiter Maçã usou o termo na música "Pictures and Paintings", incluída em A Sétima Efervescência, um dos seus álbuns mais marcantes,[6] e que inicia assim: "Quero toda a sua chinelagem / Quero a metade do seu micro-ponto / [...] / Amei o seu estilo e o seu cabelo, curto e grudado na testa / Até parece que você não toma banho".[7]

A Graforréia em apresentação no Bar Ocidente.

Essa estética está intimamente ligada à tecnologia lo-fi, adotada por aquelas e outras bandas na prática de gravações caseiras e improvisadas, onde o "defeito" técnico se transforma em parte da própria linguagem da arte e um dos seus indicativos identitários mais fortes, valorizando a autenticidade e a independência em relação às tendências do mainstream.[5] Também está ligada à cultura punk e ao brega,[4][8] ao uso de figurinos retrô ou descompostos, cenários trash, e aos recursos do humor, da paródia e do nonsense.[4][9][10] No contexto do chamado rock gaúcho, esses componentes de irreverência e anarquia parecem, segundo Ivan Bonfim, "sublimar uma forma de resistência ao caráter conservador atrelado à identidade gaúcha",[11] mostrando, além disso, uma aversão ao regionalismo consagrado pela oficialidade, que tem na figura do gaúcho o seu protótipo.[5] O Bar Ocidente e a Garagem Hermética foram espaços principais para a chinelagem musical rio-grandense. A Garagem ofeceria um troféu, o Garagito, uma espécie de Oscar da subcultura, "para premiar essa chinelagem toda", como lembrou um dos seus fundadores, Ricardo Kudlka.[12]

Humberto Gessinger, apesar de criticar seus excessos, ao mesmo tempo atesta a ampla penetração cultural do conceito: "Ter 3, 4 caras que fazem piadinhas legais, bacanas, nonsense, é legal, mas todo mundo fazendo isso chega uma hora que tu diz: 'Caralho! Com quem é que eu posso falar sério sem me considerarem um chato?' Tudo é meio (imitando um chinelão): 'Pô legal, podre, pô legal!'. Aqui no sul, então, isso é exagerado pra caramba, porque as gírias são todas voltadas para o que é ruim é bom, chinelagem é que é legal. Isso é bacana, mas chega uma hora que enche um pouco o saco".[13] Por outro lado, de acordo com Amaral & Amaral, o rock independente sulino, que foi antes bastante identificado por essa estética, agora movimenta-se para longe dela: "Com o crescimento e a competitividade do mercado independente e a intensa utilização das plataformas de música online para a divulgação das bandas e artistas, hoje há uma reconfiguração desse mercado, uma vez que o investimento na produção aumentou, bem como a preocupação com questões de marketing, estéticas visuais, etc (para além do suposto 'descomprometimento' anteriormente relacionado ao rock independente)".[14]

Hoje o conceito está largamente difundido pelo Brasil, tanto na intenção pejorativa inicial — mas tendo expandido seu significado para incluir o crime, a traição, a pornografia e outros desvios da norma —,[15][16][17] como para a afirmação de uma identidade e uma postura deliberada nos mais variados domínios da cultura, da arte e do comportamento.[14][18]

Referências

  1. Fischer, Luís Augusto. Dicionário de Porto-Alegrês. Artes e Ofícios, 1999, p. 44
  2. Silveira, Fabricio Lopes da. "Arqueologia do Rock Gaúcho: uma década de metal pesado em Santa Maria (1980-1990)". In: Di Pinto, C; Borba, G. (orgs.). Fragmentos de memória do rock gaúcho. Editora UNISINOS, 2014, p. 359
  3. Ezequiel, Márcio. "Ensaio sobre a Chinelice". Diário Popular, 05/04/2013
  4. a b c Ratner, Rogério. "Esse tal de Rock Gaúcho". Overmundo, s/d.
  5. a b c d Estivalet, Felipe. "Ah, os caras são paulistas: Pública e as (não) identificações com o indie rock e o rock gaúcho". In: 40º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Curitiba, 04-09/09/2017
  6. Mathias, Alexandre. "A Sétima Efervescência - Júpiter Maçã (1996, Antídoto)". Rolling Stone Brasil, s/d.
  7. Maçã, Júpiter. A Sétima Efervescência. Encarte do CD. Antídoto, 1997
  8. Pereira, Angélica Silvana. Somos Expressão, não Subversão! — a gurizada punk em Porto Alegre. Tese de Doutorado. UFRGS, 2006, pp. 77-78
  9. Estivalet, Felipe. "Hibridações na canção Amigo Punk, da Graforréia Xilarmônica". In: Revista Sonora, 2016; 6 (11):61-72
  10. Panarotto, Roberto. "Defalla, a pior banda de todos os tempos". Revista Senhor F, s/d.
  11. Bonfim, Ivan. "Longe demais das capitais? O rock gaúcho na imprensa brasileira". In: Anais do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação — Intercom. USP, 2016, p. 14
  12. Ávila, Alisson; Bastos, Cristiano & Müller, Eduardo. Gauleses Irredutíveis: causos e atitudes do rock gaúchos. Buqui Livros Digitais, 2012, s/pp.
  13. Araújo, Tanara de et al. "Entrevista para o Música Tri". Flogão, 18/01/2006
  14. a b Amaral, Adriana & Amaral, João Pedro Wizniewsky. "S2, S2 Happy Rock Gaúcho". In: III Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Música Popular: Negócio da música em tempos de interatividade. Recife, 30/08-01/09/2011
  15. Mello, Marco. "Culturas e identidades juvenis: na EJA, de quem é mesmo o bagulho?" In: Revista Autoria, 2005; (4):1-22
  16. Holanda, Jorge Garcia de. Sofrimentos Explícitos: A Subjetividade Bizarreira e as Imagens de Horror Real. Universidade Federal do Ceará, 2014, pp. 68-69
  17. Pinto, Bruna Knob et al. "Rede social de apoio do homem sobrevivente ao câncer: estudo de caso etnográfico". In: Revista Cuidado É Essencial, 2017; 9 (3):776-785
  18. Silva, Juremir Machado da. "A globalização da chinelagem". Correio do Povo, 05/01/2012

Ver também[editar | editar código-fonte]