Tradição Itaparica

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A Tradição Itaparica se refere a indústria lítica de populações humanas que viveram na América do Sul, na região Central e Nordeste do atual Brasil, durante o final do Pleistoceno e início do Holoceno, entre 10.000 a 3.000 anos atrás, sendo os povos mais antigos conhecidos que habitaram essas regiões.[1] Esses povos teriam uma similaridade em seus modos de vida, associado principalmente ao uso e confecção de ferramentas semelhantes.

O termo Itaparica foi inicialmente usado por Calderón em 1972, para descrever os achados da Gruta do Padre (PE).[2] Pela similaridade desses primeiros artefatos com os achados por Pedro Ignácio Schmitz em Serranópolis, foi cunhada a tradição Itaparica pelo arqueólogo.[3]

Os conceitos de “fase” e “tradição” aplicados por arqueólogos brasileiros são termos teórico-metodológicos usados para classificar os materiais arqueológicos em tamanho, formato e ornamento, como vasos de cerâmica, artefatos líticos e artes em rochas. Esses conceitos foram inspirados pelo modelo histórico-cultural de escolas estadunidenses, usados primeiramente por pesquisadores do PRONAPA (Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas) e são utilizados até hoje. Dessa forma, cada novo material encontrado seria categorizado como uma tradição arqueológica e objetos similares descobertos a posteriori na mesma região, seriam incluídos nesse grupo, enquanto que materiais parecidos, mas possuindo alguma diferença regional ou cronológica seriam categorizados como um subgrupo, chamados de fases arqueológicas.[3]

Nos dias atuais, entretanto, tem sido discutido se o termo “tradição” deve ser mantido ou não. Muitos autores discordam que os achados arqueológicos são pertencentes à mesma cultura e ainda é questionado o nível de detalhamento destes materiais e o método de análise dos pesquisadores.[4]

É importante saber a existência de três Fases Culturais na região: A fase Paraibana, relacionada à tradição Itaparica, a fase Serranópolis e a fase lito-cerâmica Jataí.

Ambiente[editar | editar código-fonte]

Mapa


O mapa mostra a região correspondente a Tradição Itaparica, que se localiza no Brasil Central numa macro região com uma área de aproximadamente 2 milhões de km², abrangendo os estados de Goiás, Minas Gerais, Bahia, Sergipe, Pernambuco, Piauí, Tocantins e Rio Grande do Norte.[5]

Essa região apresenta um domínio morfoclimático onde predominam formações de Cerrado e Caatinga, com alta diversidade e riqueza de fauna e flora.[5] Esses domínios atuais já existiam no final do Pleistoceno, porém as alterações do clima no decorrer do Pleistoceno e Holoceno condicionando uma distribuição diferente dos biomas.[6]

Entre 18.000-13.000 anos atrás predominava um clima mais quente e seco na região, fazendo com que a Caatinga se estendesse pela área atual do Cerrado.[6] Já entre 7.000-4.000 anos atrás a umidade aumentou e assim as fisionomias se alteraram para vegetação mais adaptada a umidade e florestas.[6]

Nesse ambiente, pesquisadores encontraram vestígios de grupos humanos antigos que estavam bem instalados e adaptados, cujos vestígios líticos foram a denominada Tradição Itaparica.[5]

Os pontos indicados no mapa são, de Norte para Sul, os Sítios Arqueológicos Peba (RN), Olho d'Água (RN), da Toca do Boqueirão da Pedra Furada (PI), Lapa do Boquete (MG), GO-JA (GO).[1][7]

Povoamento e Cultura[editar | editar código-fonte]

A sequência arqueológica do Planalto Central não permite atualmente uma reconstituição dos possíveis processos de povoamento da região devido às divergentes hipóteses e interpretações dos materiais estudados.[6]

Contudo, sabe-se que a fase Paranaíba é a mais antiga entre as três fases já citadas, sendo que ela está relacionada à Tradição Itaparica.[4] Essa fase é datada entre 11.000 e 8.500 anos atrás e foi definida pela grande presença de instrumentos unifaciais no conjunto lítico, sendo que esses instrumentos são considerados marcadores crono-culturais, tendo em vista que são numerosos em todos os sítios arqueológicos dessa fase e unicamente nos dessa fase.[6] Além disso, nessa fase tem-se a ocupação de grupos caçadores-coletores-pescadores generalizados e em um ambiente mais frio e úmido,[4] ressaltando-se que eles apresentavam uma tecnologia definida, em que se sobressaem raspadores longos, facas, furadores e alisadores.

Essa indústria lítica era realizada com matéria prima local advinda de rochas suporte de seus abrigos, por exemplo, silexito, arenitos, quartzitos e quartzo.[4] Pesquisadores observaram indústrias líticas semelhantes entre os diversos sítios arqueológicos brasileiros, o que possibilitou a introdução da ideia de que essa tradição teria se desenvolvido no Cerrado e na Caatinga no final do Pleistoceno, em que a caça e a coleta de frutos permitiram a sobrevivência desses povos.[4]

Em relação à alimentação desses povos, restos alimentares variados testemunham a caça generalizada de animais de diversos tamanhos, como mamíferos, peixes, pássaros e até mesmo moluscos.[6]

Os artefatos obtidos posteriormente sugerem que depois dos povos de tradição Itaparica, houve o povoamento de outros grupos, sendo estes mais relacionados com a horticultura, entretanto vestígios relacionados com a tradição Itaparica também foram encontrados, relacionando-os com este grupo mais recente.[7]

Artefatos[editar | editar código-fonte]

O traço definidor dessa tradição são os artefatos trabalhados plano-convexos unifaciais, também chamados de ‘lesmas’.[2] O termo foi cunhado por Pedro Ignácio Schmitz nos anos 70 quando o arqueólogo descobriu e explorou diversos sítios na região de Serranópolis, recuperando grande número de artefatos líticos desse tipo.[3]

As lesmas são geralmente simétricas no sentido longitudinal (mas também podem ser assimétricas) e trabalhadas em torno da periferia.[8][6] O processo de lascamento resultaria em lâminas cortantes na periferia das lesmas, podendo ou não possuir pontas, esses objetos seriam utilizados pelas populações que os produziam para raspar, cortar, furar e bater.[8]


Apesar dos artefatos serem unifaciais há uma grande diversidade de formatos, dimensões, técnicas envolvidas e matéria prima (arenito, sílex e quartzanito).[6]

A maior parte dos artefatos é datado entre 1300 e 8000 anos atrás e foram encontrados perto de abrigos de pedra ou em locais abertos.[6]

O artefato mais antigo dessa tradição é datado entre 1400 e 8000 anos atrás e foi encontrado no sítio da Lapa do Boquete (MG). A região com maior abundância de artefatos é a de Serranópolis (GO).[1]

Nessa mesma camada temporal e em locais próximos onde foram encontrados os artefatos unifaciais, foi encontrada uma indústria lítica sem artefatos unifaciais, representada majoritariamente por fragmento sem ou com poucos retoques, de quartzo e quartzita.[1] Não se sabe se esses achados pertencem a um outro grupo tecnocultural ou se são resultado de uma atividade especializada dos mesmos grupos da Tradição Itaparica.[6]

A diversidade dos processos de confecção das ferramentas como indicador de tradições culturais diferentes, levantou questionamentos sobre a unidade da tradição.[6] Assim o principal critério usado como unificador dos achados, o formato do artefato, sua morfologia é questionado quanto a sua adequação para refletir as possíveis diferenças culturais entre os grupos que as produziam.[4] Alguns autores afirmam que esse critério não é suficiente para afirmar homogeneidade cultural.[4]

Assim mais análises técnico funcionais devem ser feitas com os artefatos para confirmar ou negar a possível relação entre as populações que os produziam.[4] Esse tipo de análise foca no processo de confecção da peça, analisando detalhadamente os recortes causados pelo lascamento e sua utilidade quando finalizado.[6] Com essa abordagem é possível saber a cadeia operatória pela qual a peça foi obtida ou seja, qual matéria prima foi escolhida, qual tipo de suporte de pedra para o lascamento foi utilizado, quais passos foram realizados para chegar na ferramenta final.[6]

A análise dessa sequência de ações é relacionada à cultura do grupo, pois tendo em vista a complexidade e especificidade dos passos de sua realização, seria necessário que fosse culturalmente passada de geração em geração.[1]

Lourdeau, 2011, realizou essa análise tecnofuncional dos artefatos achados nos sítios de GO-JA1 (GO), Toca do Boqueirão da Pedra Furada (PI) e Toca do Pica-Pau (PI) e concluiu que apesar da diversidade, eles fazer parte de uma mesma tradição técnico cultural, indicando que a Tradição Itaparica possa refletir uma unidade tecnocultural entre as populações que habitavam esse vasto território. Entretanto, não há consenso na literatura e mais pesquisas devem ser feitas para elucidar a história de migração e estabelecimento das populações nesta região.[4]

Referências

  1. a b c d e Lourdeau, Antoine (janeiro de 2015). «Lithic Technology and Prehistoric Settlement in Central and Northeast Brazil: Definition and Spatial Distribution of the Itaparica Technocomplex». PaleoAmerica (em inglês) (1): 52–67. ISSN 2055-5563. doi:10.1179/2055556314Z.0000000005. Consultado em 12 de julho de 2022 
  2. a b Araujo, Astolfo G.M. (28 de abril de 2015). «On Vastness and Variability: Cultural Transmission, Historicity, and the Paleoindian Record in Eastern South America». Anais da Academia Brasileira de Ciências (2): 1239–1258. ISSN 1678-2690. doi:10.1590/0001-3765201520140219. Consultado em 12 de julho de 2022 
  3. a b c Carlos Moreno De Sousa, João (23 de dezembro de 2020). Ono, Rintaro; Pawlik, Alfred, eds. «The Technological Diversity of Lithic Industries in Eastern South America during the Late Pleistocene-Holocene Transition». IntechOpen (em inglês). ISBN 978-1-83880-357-5. doi:10.5772/intechopen.89154. Consultado em 13 de julho de 2022 
  4. a b c d e f g h i Rodet, Maria Jacqueline; Duarte-Talim, Déborah; Barri, Luis Felipe (2011). «Reflexões sobre as Primeiras Populações do Brasil Central: "Tradição Itaparica"». Revista Habitus - Revista do Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia (1): 81–100. ISSN 1983-7798. doi:10.18224/hab.v9.1.2011.81-100. Consultado em 13 de julho de 2022 
  5. a b c Schmitz, Pedro Ignacio (1987). «Caçadores antigos no sudoeste de Goiás, Brasil». Estudios Atacameños (8): 16–35. ISSN 0716-0925. Consultado em 12 de julho de 2022 
  6. a b c d e f g h i j k l m Lourdeau, Antoine (19 de janeiro de 2008). «A Pertinência de uma Abordagem Tecnológica para o Estudo do Povoamento Pré-histórico do Planalto Central do Brasil». Habitus (2). 985 páginas. ISSN 1983-7798. doi:10.18224/hab.v4.2.2006.985-710. Consultado em 12 de julho de 2022 
  7. a b Gonçalves, Deivison Do Couto; Almeida, Alexandre Pinto Coelho de; De Sousa, Patricia Fernanda Carvalho (22 de dezembro de 2020). «SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS NO RIO GRANDE DO NORTE: CONTRIBUIÇÕES DA ARQUEOLOGIA PREVENTIVA». Cadernos do LEPAARQ (UFPEL) (34): 392–420. ISSN 2316-8412. doi:10.15210/lepaarq.v17i34.18198. Consultado em 14 de julho de 2022 
  8. a b Bueno, Lucas De Melo Reis (10 de março de 2016). «Variabilidade tecnológica nos sítios líticos da região do Lajeado, Médio Rio Tocantins». Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia. Suplemento (supl.4). 1 páginas. ISSN 2594-5939. doi:10.11606/issn.2594-5939.revmaesupl.2007.113483. Consultado em 12 de julho de 2022