Lei do Ventre Livre

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Lei do Ventre Livre
Data 28 de setembro de 1871
Local de assinatura Rio de Janeiro
País Brasil
Tipo de documento lei

Lei do Ventre Livre (Lei nº 2040/1871[1]), também conhecida como Lei Rio Branco, foi uma lei apresentada na Câmara dos Deputados em 12 de maio de 1871, sendo promulgada em 28 de setembro do mesmo ano.[2] A fim de limitar a duração da escravidão no Brasil Imperial, a lei propunha, a partir da data de sua promulgação, a concessão da alforria às crianças nascidas de mulheres escravas no Império do Brasil.

Contexto histórico[editar | editar código-fonte]

Antecedentes[editar | editar código-fonte]

O processo de desenvolvimento do capitalismo industrial fez com que o centro econômico global fosse deslocado da Península Ibérica para a Grã-Bretanha. Portugal apresentava uma balança comercial deficitária em relação à da Inglaterra, o que levou o Império a viver na dependência inglesa, condição sancionada com o Tratado de Methuen. Assim, todo o ouro extraído do Brasil, cuja exploração era fundamentada no regime escravocrata, e que era levado a Portugal para o enriquecimento da metrópole, nela, não permanecia. Isso porque essa riqueza apenas cobria a margem deficitária que a Balança Comercial Lusitana tinha frente aos mercados ingleses.[3]

A Grã-Bretanha, líder no processo de industrialização, foi também principal força em favor das transformações econômicas que se contrapunham ao sistema escravocrata. Isso porque a fase da Revolução Industrial pela qual passava era incompatível com a escravidão. A acumulação capitalista, a revolução no sistema de produção e nos meios de transporte e a crescente divisão do trabalho foram responsáveis pela expansão do mercado internacional, o que tornava impossível a manutenção do sistema colonial tradicional.

A Inglaterra, que aboliu o comércio de seres humanos em 1808 e a escravatura em suas colônias em 1833, passou a defender fortemente a supressão do tráfico internacional de escravos. Para além das considerações de ordem moral, a motivação dos ingleses era, principalmente, econômica. As Antilhas Britânicas tinham como fortes concorrentes no comércio de açúcar o Brasil e a Cuba. A privação da mão-de-obra barata da escravatura para os plantadores das colônias britânicas significava uma desvantagem competitiva muito forte frente aos rivais, o que motivou a luta inglesa pela extinção do tráfico e do regime escravocrata nas colônias americanas.[4]

Foi a partir de 1825 que iniciaram as relações diplomáticas entre a Inglaterra e o Brasil, enquanto Estado independente. Essas negociações levariam à assinatura da Convenção Anglo-brasileira contra o Comércio de Escravatura em 1826, ratificada no ano seguinte. Dessa forma, o Império se comprometia a extinguir o tráfico negreiro em um prazo de três anos a contar a partir da ratificação do acordo. Isso significa que, após o ano de 1830, o tráfico de escravos era ilegal e considerado pirataria.[5] Assim, em 1831 era promulgada a Lei Regencial de 7 de Novembro de 1831. Também conhecida como Lei Feijó-Barbacena, declarava "livres todos os escravos vindos de fora do Império" e impunha "penas aos importadores dos mesmos escravos".[6]

As autoridades, no entanto, faziam vista grossa à pirataria que facilitava o comércio negreiro. Entre os anos de 1830 e 1850, o tráfico trouxe cerca de 700 mil africanos aos engenhos e fazendas. Ao passo que o governo britânico criticava a constante transgressão ao acordo tratado, nacionalistas protestavam contra à assinatura da Convenção. Segundo eles, a interferência inglesa no controle dos navios negreiros, marcada pela aprovação do “Ato de Supressão do Tráfico Negreiro” (Slave Trade Suppression Act) no Parlamento inglês, era um ataque à soberania nacional.[3] Este cedia autorização a comissões anglo-brasileiras para julgarem navios negreiros brasileiro, os quais, sendo condenados, eram colocados a serviço da marinha inglesa, ou demolidos. O Ato ficou conhecido como Bill Aberdeen, e entrou em vigor em 8 de agosto de 1845.[7]

A abolição da escravatura foi retardada por conta do sistema de plantio. O trabalho escravo era ainda um fator basilar da economia brasileira, o que tornou o regime escravocrata no Brasil o mais longevo da América Latina. Na década de 1860, porém, surge um movimento emancipacionista que resulta, em 1871, na aprovação da Lei do Ventre Livre. O que propiciou essa mudança política foi o reconhecimento, especialmente por elevadas autoridades, da escravatura enquanto uma instituição desacreditada no mundo ocidental, a qual requeria importantes restrições para continuar existindo.[3]

Ilustração do Gabinete Rio Branco em alusão à Lei do Ventre Livre.

Outras tentativas[editar | editar código-fonte]

A Lei do Ventre Livre não foi a primeira tentativa de alforriar as crianças nascidas de escravas no Império do Brasil. Em 1850, o deputado Silva Guimarães, do Ceará, apresentou um projeto que declarava livres os nascidos desde então, e também proibia a separação dos cônjuges, prática estabelecida no regime escravocrata. A proposta não passou por deliberação na Câmara e, dois anos depois, Guimarães apresentaria um outro projeto semelhante, que levou o mesmo fim do primeiro.[8]

Também no ano de 1852, a Sociedade contra o Tráfico de Africanos e Promotora da Colonização e Civilização dos Indígenas publicou um plano, nomeado Sistema de Medidas Adotáveis para a Progressiva e Total Extinção do Tráfico e da Escravatura, argumentando por que e como extinguir o tráfico negreiro e a escravatura no Brasil. Em seu texto, também argumenta em favor da liberdade do ventre, mas sob a condição de os jovens recém-libertos servirem ao senhor até os 18, para as mulheres, e os 21 anos, para o homens.[9] Isso funcionaria como uma indenização pelas "despesas, incômodos e prejuízos resultantes da criação" dos nascidos.[10]

Guimarães, entre os anos de 1862 e 1865, deu entrada a três outros projetos no Parlamento. O primeiro projeto tratava da proibição da comercialização de escravos "debaixo do pregão" e em exposição pública e da separação dos cônjuges e de seus filhos menores de 15 anos. Em 1864, publicava o segundo plano, que proibia a posse de escravos pelo governo, os chamados escravos da nação, e pela igreja. Também a impedia para estrangeiros vindos de países onde fosse proibida a escravidão. O projeto de número três vetava a estrangeiros residentes no Império aquisição e posse de escravos. Apesar de nenhuma das propostas ter sido aprovada, no ano seguinte, frades de São Bento anteciparam-se à lei e declararam livres as crianças nascidas a partir de 3 de maio de 1866.[8]

Caminhos do processo político da emancipação do ventre[editar | editar código-fonte]

Capa da Lei do Ventre Livre Documento sob a guarda do Arquivo Nacional (Brasil)

No ano de 1866, o Visconde de São Vicente apresentou cinco projetos para a emancipação dos escravos ao Imperador. Discutidos pelo Conselho do Estado, foram fundidos em um só texto, que seria a base da Lei do Ventre Livre.[11] Entretanto, a Guerra do Paraguai congelou e retardou as movimentações do governo no processo emancipatório. Salvo a proibição dos leilões de escravos, que se sucedeu em 1869, nenhuma medida foi tomada até 1870 (ver Gabinete Pimenta Bueno).[8] Aquele ano, foi formada uma comissão na Câmara para elaborar um projeto acerca da emancipação da escravatura.[11]

A proposta resultante das deliberações da comissão em 1870 serviu de base para a lei apresentada no ano seguinte. Apesar da reação contrária ao projeto, o governo aprovou a lei em 1871, com alterações em prejuízo da liberdade dos escravos. A batalha parlamentar sustentava uma contradição fundamental da sociedade brasileira imperial. Ao passo que era reconhecido o desejo pela extinção da escravidão, também reconheciam-se os diretos que envolviam a problemática e os interesses da ordem pública: as plantações e a segurança. Esse entrave foi responsável pela gradatividade do processo emancipatório.[11]

De toda forma, em 28 de setembro de 1871, o Senado aprova a lei nº 2040, que já havia sido aprovada pela Câmara dos Deputados. A Lei do Ventre Livre foi aprovada sob o Gabinete do Visconde do Rio Branco, José Maria da Silva Paranhos, cujo objetivo era possibilitar a transição, lenta e gradual, no Brasil do sistema de escravidão para o de mão-de-obra livre, de forma a não romper bruscamente com os interesses econômicos escravocratas.[8] O projeto foi aprovado na Câmara com 65 votos a favor e 45 contrários. A maior parte dos votos contrários estava entre os cafeicultores de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro.[12]

Antecedida pela Lei Bill Aberdeen e sucedida pela Lei dos Sexagenários e pela Lei Áurea, a Lei do Ventre Livre representa o clímax do período de emancipação da escravatura. Após sua promulgação, dá-se início ao período de abolição da escravatura, diferença observada pelo historiador Evaristo de Morais; enquanto aquele é caracterizado pela preparação progressiva do escravo para a liberdade, este consiste no fim imediato do sistema escravocrata.[8]

José Maria da Silva Paranhos, o Visconde do Rio Branco[editar | editar código-fonte]

Firmada pela Princesa Isabel, em sua Primeira Regência, em virtude da primeira viagem do Imperador D. Pedro II à Europa, a Lei foi patrocinada pelo gabinete liderado por José Maria da Silva Paranhos, Visconde do Rio Branco.

Político, diplomata e jornalista, o visconde foi responsável pelo patrocínio da Lei do Ventre Livre, denominada Lei Rio Branco. Nascido em 1819 na capitania da Baía de Todos-os-Santos, Rio Branco entrou para a política na década de 1840,[13] vindo a ser nomeado Presidente do Conselho de Ministros em 1871.

Discussões sobre a lei[editar | editar código-fonte]

José Maria da Silva Paranhos, Visconde do Rio Branco

A lei foi bastante criticada pelo movimento abolicionista, vez que os problemas da escravidão não seriam resolvidos. As principais objeções levantadas foram que a lei:

  • não proibiu o tráfico interprovincial;
  • não estabeleceu o preço máximo para a alforria;
  • não garantiu de forma eficaz o direito da manutenção da família escravizada, vez que apenas a alienação isolada dos membros da família fora proibida;
  • não revogou a pena de açoites ou a lei que instituíra pena de morte aos escravos;
  • não estabelecia um prazo para a extinção da escravidão, tampouco acenava com a liberdade aos escravos nascidos antes da promulgação da lei.[8]

Um discurso do deputado baiano Jerônimo Sodré, preparado antecipadamente na Bahia e proferido em 5 de março de 1879 na Câmara dos Deputados, deu início as discussões mais acaloradas sobre a ineficácia da lei, taxando-a de uma reforma vergonhosa e mutilada.[14] Seus argumentos foram acolhidos por Joaquim Nabuco, que passou a debater sobre a emancipação dos escravos e medidas mais contundentes para a solução definitiva do problema.[15] A efervescência política gerada pelo debate, associada à pressão de outras personalidades abolicionistas da sociedade, tais como José do Patrocínio e Ângelo Agostini, levaram a Lei dos Sexagenários e posteriormente a Lei Áurea, de 13 de maio de 1888, abolindo a escravidão.

Ver também[editar | editar código-fonte]

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Referências

  1. «LIM2040». www.planalto.gov.br. Consultado em 22 de abril de 2023 
  2. «28 DE SETEMBRO DE 1871 - Lei do Ventre Livre». Arquivo Nacional - Ministério da Justiça. 28 de Setembro de 2017. Consultado em 5 de outubro de 2018 
  3. a b c Ramos, Cláudia Monteiro da Rocha (2008). A Escravidão, a Educação da Criança Negra e a Lei do Ventre Livre (1871) (PDF). Campinas: [s.n.] Consultado em 19 de novembro de 2017 
  4. Silva, Ricardo Tadeu Caires (2008). «O Fim do Tráfico Atlântico de Escravos e a Política de Alforrias no Brasil» (PDF). VI Seminário do trabalho 
  5. Carvalho, João Daniel Antunes Cardoso do Lago (2012). «As Relações Diplomáticas entre Brasil e Inglaterra e a Lei de 1831» (PDF). Anais do XV Encontro Regional de História da ANPUH-RIO. ISBN 978-85-65957-00-7 
  6. «LEI DE 7 DE NOVEMBRO DE 1831 - Publicação Original - Portal Câmara dos Deputados». www2.camara.leg.br. Consultado em 20 de novembro de 2017 
  7. Santos, Artur Tranzola (24 de junho de 2013). «Relações Brasil-Inglaterra pós 1845 e o tráfico de escravos: o rompimento, o Bill Aberdeen e a Lei Eusébio de Queirós». Revista de Iniciação Científica da FFC. 13 (2). ISSN 1415-8612. Consultado em 23 de novembro de 2017. Arquivado do original em 1 de dezembro de 2017 
  8. a b c d e f Carneiro, Édison (2012). «A Lei do Ventre-Livre». Afro-Ásia. ISSN 1981-1411 
  9. Art. 1° - § 1° da dada lei, ou a indenização, a qual seria de 600$000 por parte do Estado.
  10. Sociedade contra o Tráfico de Africanos e Promotora da Colonização e Civilização dos Indígenas (1852). Sistema de Medida Adotáveis para a Progressiva e Total Extinção do Tráfico e da Escravatura no Brasil. Rio de Janeiro: [s.n.] Consultado em 19 de novembro de 2017 
  11. a b c Laidler, Christiane (2011). «A Lei do Ventre Livre: interesses e disputas em torno do projeto de "abolição gradual"» (PDF). Revista Escritos. 5 
  12. «28 de Setembro de 1871 – Promulgada a Lei do Ventre Livre». Jornal do Commercio. Consultado em 6 de março de 2016. Arquivado do original em 8 de março de 2016 
  13. Sisson, Sébastien Auguste (1999). Galeria dos brasileiros ilustres. Brasília: Senado Federal 
  14. CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil. 1850-1888. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. p. 166.
  15. NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003. p. 25.