Ana (filme)

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Ana
Portugal Portugal
1982 •  cor •  115 min 
Género drama
docuficção
Direção António Reis
Margarida Cordeiro
Produção António Reis
Margarida Cordeiro
Coprodução Paulo Branco
Roteiro António Reis
Margarida Cordeiro
Elenco Ana Maria Martins Guerra
Octávio Lixa Filgueiras
Música Johann Sebastian Bach
Cinematografia Acácio de Almeida
Elso Roque
Edição António Reis
Margarida Cordeiro
Companhia(s) produtora(s) Nacional Filmes
Studios Billancourt
Tobis Portuguesa
Fundação Calouste Gulbenkian
Distribuição Filme Filmes
Lançamento
  • 15 de setembro de 1982(Figueira da Foz , Portugal)
  • 6 de maio de 1985 (Portugal)
Idioma português

Ana é um filme etnográfico (docuficção) português de 1982, realizado, escrito e produzido por António Reis e Margarida Cordeiro.[1][2][3] É protagonizado por Ana Maria Martins Guerra, mãe de Margarida Cordeiro, interpretando uma versão de si mesma. Com base nos poemas de Rainer Maria Rilke, a longa-metragem centra-se em três gerações de uma família transmontana: uma avó, um filho cientista que vive na cidade e passa férias na aldeia, e duas crianças (neto e neta).[4]

Ana foi exibido no Festival Internacional de Cinema da Figueira da Foz a 15 de setembro de 1982 e estreou-se nos cinemas de Portugal a 6 de maio de 1985.[5]

Sinopse[editar | editar código-fonte]

Tudo começou num dia “em que a neve e o vento eram mais puros”. Ana é o nome de uma velha, deixada em casa, ereta como um emblema. O seu rosto é sulcado e orgulhoso, o seu corpo pesado e digno. Ana é um pouco mais que uma avó e um pouco menos que um símbolo. Ana também é mulher e fica doente, mas não se deixa levar.

O filho de Ana, um antropólogo, dá uma longa palestra sobre a antiga história das jangadas na Mesopotâmia. A lembrança de Ana de um eclipse de há muito tempo atrás assombra-a como representante do fim das coisas. Ainda assim, na própria narrativa de Ana sobre o eclipse, numa passagem da "Terceira Elegia" de Rilke sobre sonhos febris primitivos, uma cena mostra a luz do sol através de um prisma num quarto escuro.[6]

Vestida com uma capa larga com franjas de pele de arminho, Ana atravessa o campo com uma elegância discreta, enquanto se ouve "Magnificat" de Bach. Vista por trás, a velha chama um nome: Miranda. O sangue sai de sua boca, ela olha suas mãos vermelhas, sabendo que vai morrer. Miranda é o nome da pequena vila mais próxima e o nome de uma vaca perdida que encontra de seguida. Existe o perigo de se morrer no campo, mas restará sempre a poesia.[7]

Elenco[editar | editar código-fonte]

  • Ana Maria Martins Guerra, como Ana (A Mãe).[8]
  • Octávio Lixa Filgueiras, como filho de Ana.
  • Ana Umbelina, como Ana (Neta).
  • Manuel Ramalho Eanes, como Alexandre.
  • Mariana Margarido.
  • Aurora Alfonso, como Aurora.

Produção[editar | editar código-fonte]

A longa-metragem foi produzida por Paulo Branco e José Mazeda, com a assistência de produção de Vítor Gonçalo e Carlos Gonçalo a partir de um patrocínio da Fundação Calouste Gulbenkian.[9] Ana foi distribuída em pela Filme Filmes em formato 35mm, cor.

Desenvolvimento[editar | editar código-fonte]

Textos de Rainer Maria Rilke foram incluídos no argumento da longa-metragem.

Os processos criativos e produtivos adotados por António Reis e Margarida Cordeiro implicavam uma comunhão com as suas vidas privadas que se torna difícil separar a experiência cinematográfica das vivências pessoais e familiares. Os autores abordaram este projeto como um conjunto de referências das suas infâncias, sem que Ana fosse uma recriação fidedigna de acontecimentos das suas memórias. Nas palavras de Reis: "Toda essa memória foi absolutamente submetida a um processo imaginário, senão seria a ilustração de um fenómeno de memória, que estava num arquivo. Aliás o próprio tempo já se escorrega de esbater coisas, de alterar umas e de trazer outras…"[10] Tal resulta numa coleção de imagens mentais que, com recurso a poemas de Rainer Maria Rilke selecionados para o argumento, traçam um paralelo, no retrato simbólico, entre os personagens e o seu meio.[11]

Rodagem[editar | editar código-fonte]

Por este comprometimento pessoal e familiar se justificou a inclusão no elenco do filme a filha do casal, Ana Umbelina, e a mãe de Margarida Cordeiro, Ana Maria Martins Guerra, como protagonista. Ana foi filmada em três temporadas e cinco anos, processo que terminou em 1982. Foi produzido em moldes de extrema economia: filmado em 16 m/m, com uma equipa técnica restrita e atores não-remunerados.[12] Em entrevista Martins Guerra, destacou a exigência pedida para a rodagem, recordando que "por vezes fazíamos os mesmos planos 15 vezes, e isso era o pior".[13] Os autores consideraram que Ana foi o seu filme mais pensado, pelo seu domínio sobre a história dos locais de gravação e o envolvimento de colaboradores que os conheciam bem e os corrigiam. O processo de rodagem foi caracterizado pelo nível de exigência que os cineastas procuraram na dialética entre imagens e uma grande proximidade sonora primitiva (fogo, vento, inundação).[14]

Temas e estilo[editar | editar código-fonte]

Ana é um filme que parte de uma base do cinema de etnoficção, mas evolui para uma maior estilização do género. Críticos de cinema caracterizaram a longa-metragem de uma docufábula, por ser a mais ficcionada das fitas da dupla, ou pelo menos o seu filme onde quase existe um enredo.[6] Ainda assim, há uma continuidade artística com a primeira longa-metragem de Reis e Cordeiro, Trás-os-Montes. Tal é evidente numa cena em Ana, onde um etnólogo relaciona os antigos costumes de Trás-os-Montes com os da antiga Mesopotâmia, o que contribui para olhar interno sobre um terreno cujos habitantes são depósitos geológicos e cujas paisagens são filmadas como se fossem cidades.[14]

A figura e tema dominante da obra é a da Mãe, que domina o espaço da casa e a paisagem. O olhar dos autores centra-se numa idosa (avó e mãe) e em reminiscências de tudo o que os seus familiares viram, ouviram, tatearam e cheiraram. O filme explora a ideia de morte ser ressurreição através da memória e da saudade, nomeadamente através da sequência final do filme retratando o falecimento da protagonista no espaço oval do lago transmontano.[15]

Distribuição[editar | editar código-fonte]

Ana estreou-se a 15 de setembro na edição de 1982 do Festival Internacional de Cinema da Figueira da Foz, em Portugal, onde seria premiado. O filme viria a ser distribuído comercialmente no país três anos depois, com nova estreia a 6 de maio de 1985. Internacionalmente, Ana teve exibição comercial em Paris (França) durante três meses no Centro de Cultura Portuguesa da Fundação Gulbenkian. Também foi exibido na Alemanha, Áustria, Suíça e Bélgica.

Festivais[editar | editar código-fonte]

O filme percorreu um longo circuito de Festivais internacionais de cinema nos anos que se seguiram à sua estreia em 1982. Nesse ano, esteve também presente nos Festivais Internacionais de Valladolid, Veneza, Festival de Montreal, de Bruxelas, Bois de la Batie, Antuérpia e Chicago. No ano seguinte estreou a 21 de fevereiro de 1983 no Berlin International Film Festival (Alemanha Ocidental). Ana viria a ser selecionado para os Festivais Internacionais de Hong-Kong, Roterdão, Tenerife, São Paulo, Locarno, Mannheim, Edimburgo, La Rochelle e Flandres. Na Semana dos Cahiers du Cinéma, integrou a retrospectiva de Digne (com Jaime e Trás-os-Montes).[16] A longa-metragem foi exibida nos Festivais de Genebra e Lausanne em 1985 e, em 1986, no Festival de Los Angeles.

Reconhecimentos[editar | editar código-fonte]

Ana recebeu, de forma geral, comentários positivos pela crítica especializada. Na sua crítica, Eduardo Prado Coelho, considerou Ana o filme mais ambicioso de Cordeiro e Reis até a data, por um lado, por deixar aparentemente de ter objeto, e por outro, pela sua intenção de descoberta do homem português desembocar na sua relação com a terra, com o nascimento e a morte.[17] Desenvolvendo esta ideia, João Lopes (Diário de Notícias) destaca como o carácter cíclico do filme se enreda com o movimento da vida e da morte, das vidas e da mortes, perturbando a linearidade inicial do próprio espaço.[18]

José Gabriel Pereira Bastos (Jornal da Letras) caracteriza a longa-metragem de cinema da cumplicidade enigmática, onde é impossível separar-se o conteúdo, a forma e o clima, "a marca principal da radicalidade poética deste filme e o sinal que nos encontramos perante uma obra quase perfeita, na sua trabalhada imperfeição".[12] Em concordância, Cláudia Baptista (Jornal Se7e) escreve que este filme subverte o cinema estandardizado e os códigos de narração ortodoxos.[13] Nesse sentido, também José Vaz Pereira (A Capital) defende que este é o menos convencional dos filmes, por não respeitar nenhuma das regras a que a produção massificada foi pouco a pouco habituando o espetador, quase o amolecendo nas suas escolhas.[19] António Loja Neves (Revista Cinema) destaca igualmente o ritmo transmontano da longa-metragem, que acontece por herança da própria vida e do ambiente que retrata. Yann Lardeau (Cahiers du Cinema) elogia a equivalência simbólica colocada entre os seres vivos e a terra, entre o homem e a paisagem, concluindo que o filme é um meteoro de inspiração mística nas telas do cinema.[20]

Vários consideraram a obra cinematográfica uma obra também poética. Nomeadamente Jorge Leitão Ramos (Diário de Lisboa) escreve que tal como numa obra poética, Ana traz a "edificação de uma realidade que só é também a nossa porque, para que aconteça, é preciso que fale de algo de essencial: amor, morte, espantos."[21] Também Miguel Esteves Cardoso (O Sete) escreve que o que o filme tem de poético é "o ato de pacientemente ter procurado apanhar uma essência, o trabalho de riscar a superfície e desbastar e escanhoar uma matéria bruta até revelar o seu segredo, que não é segredo nenhum, porque o somos e pisamos sempre – portugueses, e Portugal".[22]

Ana, fascinou e influenciou vários cineastas contemporâneos, como Jean Rouch, Jacques Rivette e Joris Ivens. Sobre o filme, Ivens admira o modo como os realizadores utilizam o vento como elemento dramático e não como um artifício.[23] Em conjunto com a filmografia de António Reis e Margarida Cordeiro, Ana revelou-se uma obra radical e decisiva para a identidade do cinema contemporâneo português, encontrando seguidores em Pedro Costa, João Cesar Monteiro e João Pedro Rodrigues.[24]

Premiações[editar | editar código-fonte]

Ao longo do circuito de Festivais internacionais de cinema para o qual foi selecionado, Ana valeu aos autores inúmeros prémios e nomeações, como a Espiga de Ouro do Festival de Valhadolide. O filme foi escolhido para representar Portugal na competição do Óscar de melhor filme estrangeiro da edição de 1986.[25]

Ano Prémios Categorias Destinatários e nomeados Resultado Referências
1982 Festival Internacional de Cinema da Figueira da Foz Menção Especial Ana Venceu [26][27][25]
Semana Internacional de Cinema de Valhadolide Espiga de Ouro Ana Venceu
1983 Academia Francesa Prémio René Clair Ana Indicado
Academia do Cinema Italiano Prémio David di Donatello Ana Indicado
1985 Prémios Nova Gente Melhor realização António Reis e Margarida Cordeiro Venceu
Melhor atriz revelação Ana Maria Martins Guerra Venceu
Melhor ator revelação Manuel Ramalho Eanes Venceu
Prémios Se7es de Ouro Melhor realização António Reis e Margarida Cordeiro Venceu
Melhor direção de fotografia Acácio de Almeida e Elso Roque Venceu
Melhor atriz revelação Ana Maria Martins Guerra Venceu

Ver também[editar | editar código-fonte]

Referências

  1. «Los principios cardinales: Ana, de Margarida Cordeiro y António Reis». Xcèntric (em inglês). Consultado em 28 de novembro de 2020 
  2. «Ana (Margarida Cordeiro, Antonio Reis, 1982) - La Cinémathèque française». www.cinematheque.fr. Consultado em 28 de novembro de 2020 
  3. «Porto/Post/Doc - Ana». www.portopostdoc.com (em inglês). Consultado em 4 de dezembro de 2020 
  4. «Ana (1985)». Cinema Português. Universidade da Beira Interior. Consultado em 10 de julho de 2017 
  5. «Cinema Português: Cronologia — 1985». Instituto Camões. Consultado em 10 de julho de 2017 
  6. a b «Dennis Lim on António Reis and Margarida Cordeiro». www.artforum.com (em inglês). Consultado em 28 de novembro de 2020 
  7. «Te midden van het einde van de wereld | Serge Daney». www.sabzian.be (em neerlandês). Consultado em 28 de novembro de 2020 
  8. Nascimento, Frederico Lopes / Marco Oliveira / Guilherme. «Ana». CinePT-Cinema Portugues. Consultado em 4 de dezembro de 2020 
  9. «Dennis Lim on António Reis and Margarida Cordeiro». www.artforum.com (em inglês). Consultado em 4 de dezembro de 2020 
  10. «panorama 2010» (PDF). CMLisboa  |nome1= sem |sobrenome1= em Authors list (ajuda)
  11. Erro de citação: Etiqueta <ref> inválida; não foi fornecido texto para as refs de nome :0
  12. a b «ANTÓNIO REIS : 180. «ANA» - Crítica de José G. P. Bastos» (em inglês). Consultado em 4 de dezembro de 2020 
  13. a b «ANTÓNIO REIS : 169. «ANA» - Crítica de Cláudia Baptista» (em inglês). Consultado em 4 de dezembro de 2020 
  14. a b «Fundamental principles: Ana, by Margarida Cordeiro and António Reis | Activities». CCCB (em inglês). Consultado em 27 de novembro de 2020 
  15. «FOCO - ANA, por João Bénard da Costa». www.focorevistadecinema.com.br. Consultado em 4 de dezembro de 2020 
  16. «ANTÓNIO REIS : 068. "ANA" - Texto de Rodrigues da Silva a propósito do êxito do filme no estrangeiro» (em inglês). Consultado em 28 de novembro de 2020 
  17. «ANTÓNIO REIS : 022. "ANA" - Crítica de Eduardo Prado Coelho» (em inglês). Consultado em 4 de dezembro de 2020 
  18. «ANTÓNIO REIS : 171. «ANA» - Crítica de João Lopes» (em inglês). Consultado em 4 de dezembro de 2020 
  19. «ANTÓNIO REIS : 172. «ANA» - Crítica de José Vaz Pereira» (em inglês). Consultado em 4 de dezembro de 2020 
  20. «ANTÓNIO REIS : 058. "ANA", notícia nos Cahiers du Cinema» (em inglês). Consultado em 4 de dezembro de 2020 
  21. «ANTÓNIO REIS : 170. «ANA» - Crítica de Jorge Leitão Ramos» (em inglês). Consultado em 4 de dezembro de 2020 
  22. «ANTÓNIO REIS : 048. "ANA" - Crítica de Miguel Esteves Cardoso» (em inglês). Consultado em 4 de dezembro de 2020 
  23. «ANTÓNIO REIS : 065. "ANA" - Crítica de Joris Ivens» (em inglês). Consultado em 4 de dezembro de 2020 
  24. «Actividad - Far from the Laws - The cinema of Margarida Cordeiro and António Reis». www.museoreinasofia.es (em inglês). Consultado em 4 de dezembro de 2020 
  25. a b Observatório dos Recursos Educativos (23 de abril de 2012). «Filmes que deveriam ser mostrados nas escolas» (PDF). Público 
  26. «Ana». Amor de Perdição. Consultado em 10 de julho de 2017. Cópia arquivada em 11 de abril de 2015 
  27. «27 Semana Internacional de Cine de Valladolid (9 al 17 de octubre de 1982)» (em espanhol). Semana Internacional de Cinema de Valhadolide. Consultado em 10 de julho de 2017 

Ligações externas[editar | editar código-fonte]