Cultura do cancelamento

A cultura do cancelamento é um fenômeno moderno segundo o qual uma pessoa ou um grupo é expulso(a) de uma posição de influência ou fama devido a atitudes consideradas questionáveis — seja online, no mundo real ou em ambos.[1][2] É uma espécie de boicote em que um indivíduo, geralmente uma celebridade, que demonstrou uma postura questionável ou controversa, ou que no passado teve comportamento percebido como ofensivo nas redes sociais, é "cancelado".[3] Eles são ostracizados e afastados por ex-amigos, seguidores, apoiadores e adversários, levando a um grave prejuízo na carreira do indivíduo cancelado. Em caso de celebridades, sua base de fãs pode diminuir significativamente.[4][5] A expressão "cultura de cancelamento" tem sobretudo conotações negativas e é normalmente usada em debates sobre liberdade de expressão e censura.[6]
É um tema polêmico sem definição clara, utilizado comumente em discursos inflamatórios, com alta carga ideológica, muitas vezes com o objetivo de atacar outro grupo social ou político. Por isso, segundo algumas vozes, pode ser considerada como um "golpe" ("scam") político: atacar uma suposta cultura do cancelamento é a reação desesperada de grupos reacionários que se veem prejudicados devido a reação a seus comportamentos considerados, por críticos, como sendo inadequados para a sociedade moderna.[7]
Barack Obama, comentando em 2019, sobre denúncia online, pureza pessoal e ser "politicamente desperto", disse: "Se tudo o que fazes é atirar pedras, provavelmente não vais chegar muito longe". Qual a real extensão do fenómeno, que se verifica essencialmente nos EUA e Reino Unido, não é muito claro.[2][8]
Existem vários graus de cancelamento. Bill Cosby, R. Kelly, Harvey Weinstein e outros foram "cancelados" por motivos bem sérios, como agressão ou assédio sexual ; abusadores não famosos e executivos de meios de comunicação predatórios também foram " cancelados".Os meramente ofensivos, como Roseanne Barr, ou Shane Gillis estão algures mais abaixo na escala, perto dos provocadores, desinformados ou insensíveis, como Dave Chappelle, ou Scarlett Johansson.[2]Na ponta inferior, o cancelamento consiste em algumas críticas suaves e inconsequentes. No YouTube, os vloggers cancelam-se uns aos outros e mesmo eles próprios regularmente, muitas vezes por queixas mesquinhas ou inventadas.[2]
Uma Carta sobre Justiça e Debate Aberto[editar | editar código-fonte]
A prática começou para defender causas progressistas como justiça social e preservação ambiental, mas atualmente é alvo de críticas tanto da direita como da esquerda.[9] Em julho de 2020, um grupo de 153 figuras públicas progressistas, entre elas Noam Chomsky, Margaret Atwood, Salman Rushdie, Margaret Atwood, Gloria Steinem, Martin Amis e J.K. Rowling, publicaram na Harper's Magazine um carta intitulada "A Letter on Justice and Open Debate" (Uma Carta sobre Justiça e Debate Aberto) apresentando argumentos contra "uma intolerância de pontos de vista opostos, uma moda de humilhação pública e ostracismo, e a tendência para dissolver questões políticas complexas numa cega certeza moral".[10][6] A carta observa os efeitos da cultura do cancelamento nos meios académicos: "Editores são demitidos por publicarem peças controversas; livros são retirados por alegada inautenticidade; jornalistas são impedidos de escrever sobre certos tópicos; professores são investigados por citarem obras de literatura nas aulas; um investigador é demitido por fazer circular um estudo académico revisto por pares; e líderes de organizações são expulsos por aquilo que por vezes são apenas erros desajeitados. Quaisquer que sejam os argumentos em torno de cada incidente em particular, o resultado tem sido a redução constante dos limites do que pode ser dito sem ameaça de represálias."[10]
Uma carta de resposta ("A More Specific Letter on Justice and Open Debate") organizada pela professora Arionne Nettles foi assinada por mais de 160 pessoas no meio académico e nos media e criticou a carta de Harper´s como um apelo para acabar com a cultura do cancelamento por profissionais de sucesso com grandes plataformas, mas para excluir outros que foram "cancelados durante gerações".[11][12]
Na cultura popular[editar | editar código-fonte]
Em 14 de julho de 2020 a jornalista Bari Weiss pediu demissão do jornal New York Times, onde havia sido contratada para expor "os muitos tons do conservadorismo e muitos tons do liberalismo", alegando ser intimidada por seus colegas por defender valores conservadores. Segundo a jornalista, que se considera uma liberal centrista, alguns dos seus colegas a chamaram de nazista e racista. por discordar de seus pontos de vista. Formada em jornalismo pela Universidade de Columbia, Bari Weiss deixou o cargo de editora de opinião do The New York Times, criticando o jornal americano por não a proteger do “bullying” constante dos colegas. A sua saída teve grande repercussão na mídia americana e internacional.[13][14]
Em Novembro de 2021, o humorista John Cleese protestou contra a cultura do cancelamento ao colocar-se a si próprio na lista negra por causa de uma controvérsia acerca duma imitação de Hitler na Cambridge Union Society. [15]
Livros sobre o tema[editar | editar código-fonte]
Apesar de a imprensa tratar sobre a cultura do cancelamento em suas páginas, ainda são raros exemplos de uma literatura específica sobre o tema. Um dos livros bastante citado, a partir dos casos que enfrenta, é "Humilhado" (2015), do jornalista britânico Jon Ronson e já traduzido para o português.[16] Também referenciais e ainda inéditos de uma publicação no Brasil são "Cancel Culture: The Latest Attack on Free Speech and Due Process"' (2020) do advogado e escritor Alan Dershowitz,[17] e "Cancel This Book: The Progressive Case Against Cancel Culture" (2021) de Dan Kovalik.[18]
Em 2021, foi lançado "Cancelado - A Cultura do Cancelamento e o Prejulgamento nas Redes Sociais", dos escritores Marcelo Hugo da Rocha, advogado e Fernando Elias José, psicólogo.[19]
Ver também[editar | editar código-fonte]
Referências
- ↑ Thinkhouse. «Cancelled Culture». Thinkhouse (en-IE) (em inglês). Consultado em 27 de julho de 2020
- ↑ a b c d McDermott, John (2 de Novembro de 2019). «Those People We Tried to Cancel? They're All Hanging Out Together (Published 2019)». The New York Times (em inglês)
- ↑ of 'Privilege.'", Phoebe Maltz BovyPhoebe Maltz Bovy is the author of "The Perils. «Perspective | Cancel culture is a real problem. But not for the people warning about it.». Washington Post (em inglês). Consultado em 27 de julho de 2020
- ↑ Sills, Sophie; Pickens, Chelsea; Beach, Karishma; Jones, Lloyd; Calder-Dawe, Octavia; Benton-Greig, Paulette; Gavey, Nicola (23 de março de 2016). «Rape culture and social media: young critics and a feminist counterpublic». Feminist Media Studies. 16 (6): 935–951. doi:10.1080/14680777.2015.1137962
- ↑ Munro, Ealasaid (23 de agosto de 2013). «Feminism: A Fourth Wave?». Political Insight. 4 (2): 22–25. doi:10.1111/2041-9066.12021
- ↑ a b Brown, Dalvin (17 de Julho de 2020). «Has Twitter's cancel culture gone too far?». USA Today (Arq. em WayBack Machine)
- ↑ Hobbes, Michael (10 de julho de 2020). «Don't Fall For The 'Cancel Culture' Scam». HuffPost Brasil. Consultado em 14 de agosto de 2020
- ↑ Rueb, Emily S. Rueb (e outro) (31 de Outubro de 2019). «Obama on Call-Out Culture: 'That's Not Activism' - The New York Times». New York Times
- ↑ «O que é a 'cultura de cancelamento'». BBC News Brasil. Consultado em 17 de fevereiro de 2021
- ↑ a b «A Letter on Justice and Open Debate | Harper's Magazine». Harper´s Magazine (Arq. em WayBack Machine). 7 de Julho de 2020
- ↑ Schuessler, Jennifer (10 de Julho de 2020). «An Open Letter on Free Expression Draws a Counterblast». The New York Times (em inglês)
- ↑ Roberts, Mikenzie (12 de Julho de 2020). «Harper's letter and response signed by Northwestern academics». The Daily Northwestern
- ↑ Izadi, Elahe; Barr, Jeremy (14 de Julho de 2020). «Bari Weiss resigns from New York Times, says 'Twitter has become its ultimate editor'». Washington Post (em inglês). ISSN 0190-8286
- ↑ https://nypost.com/2020/07/14/bari-weiss-on-why-she-left-the-new-york-times/
- ↑ McCarthy, Tyler (11 de novembro de 2021). «John Cleese takes stand on cancel culture, blacklists himself over Hitler controversy». Fox News (em inglês)
- ↑ RONSON, Jon (2015). Humilhado. São Paulo: BestSeller
- ↑ Dershowitz, Alan M. (2020). Cancel culture : the latest attack on free speech and due process. New York, NY: [s.n.] OCLC 1197842055
- ↑ Kovalik, Dan (2021). Cancel this book : the progressive case against cancel culture. New York: [s.n.] OCLC 1242855892
- ↑ Rocha, Marcelo Hugo da (2021). Cancelado : a cultura do cancelamento e o prejulgamento nas redes sociais. Fernando Elias José, Cristiano Nabuco de Abreu. Belo Horizonte, MG: [s.n.] OCLC 1264228119