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História[editar | editar código-fonte]

A excursão do Vasco da Gama[editar | editar código-fonte]

Em 1930 o futebol brasileiro se encontrava num período de transição. Se por um lado o regime dominante era o amador, com os clubes jogando pela chamada ideologia do ethos amador, isto é, pelo interesse lúdico, sem o envolvimento de valores pecuniários,[1] por outro lado já se notava a crescente pressão para a adoção do profissionalismo, vinda de jogadores e dirigentes.[2][3] Na prática, o que se via nas diversas ligas pelo país era o chamado "amadorismo marrom": apesar das competições terem em seus regulamentos regras proibindo expressamente o profissionalismo,[nota 1] a maioria dos clubes já remunerava seus atletas. Para fugir das imposições legais, o artifício era dar aos jogadores gratificações, e não salários propriamente ditos, ou registrá-los em empregos falsos, como justificativa dos valores recebidos.[nota 2]

Apesar da proibição, o amadorismo marrom já era regra no final da década de 20. Começara com o Bangu, time que surgiu da Fábrica de Tecidos Bangu. O time de futebol da fábrica era usado como meio de divulgação dos seus produtos. Dessa forma, os operários que se destacavam no esporte começaram a gozar de vários benefícios, como prêmios por vitória (o 'bicho'), dispensa para treinos e trabalhos mais leves.[4] O profissionalismo começou a se espalhar, contudo, em 1923, com a ascensão do Vasco da Gama à primeira divisão do Campeonato Carioca de Futebol. O time vascaíno era composto em sua maioria por negros, pobres e analfabetos,[nota 3] fato totalmente dissonante do futebol da época, de caráter elitista. O elenco cruzmaltino também era remunerado, com o clube registrando seus atletas como funcionários de estabelecimentos comerciais, para fugir das restrições ao profissionalismo.[5]

O Vasco acabou se sagrando campeão em 1923, levando a uma reação dos clubes etilistas do Rio de Janeiro, notadamente o América, Botafogo, Flamengo e Fluminense. A vitória de um escrete composto por negros, pobres e analfabetos, que se dedicavam em tempo integral ao esporte, e por ele recebiam, não podia ser aceito dentro da filosofia amadora que reinava ainda na época. Desse modo, esses clubes abandonaram a Liga Metropolitana dos Desportos Terrestres (LMDT), que organizava as competições, fundando a Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (AMEA). O Vasco foi convidado a participar da nova liga, mas com a condição de eliminar de seus quadros 12 atletas, a maioria deles negros, mulatos, nordestinos ou pobres, por serem jogadores "de profissão duvidosa".[6][nota 4]

O Vasco declinou do convite, no que ficou conhecido como "resposta histórica". Assim, o Campeonato Carioca passou a ter duas competições paralelas em 1924, situação que perdurou até 1932.[7][nota 5] A resposta cruzmaltina é considerada por historiadores e imprensa como um fator modificador e revolucionário do futebol na época, abrindo espaço para os jogadores de camada mais baixas e para a difusão do profissionalismo[8][9][nota 6] Isso porque o time vascaíno, por romper com a mentalidade dominante da época, foi cada vez mais fazendo sucesso. O público para acompanhar o escrete vascaíno era a cada partida maior, numa época em que os jogos de futebol não produziam grandes públicos,[10] impulsionando a média de torcedores do campeonato.[11] Numa partida contra o Flamengo, em 1923, muito esperado pela cidade, vieram mais de cinco mil torcedores de outros estados para acompanhar a disputa.[12] A expectativa era tão grande que a partida chegou a ter maior repercussão que o Campeonato Sul-Americano de Futebol de 1919 (hoje Copa América), quando o Brasil sagrou-se campeão pela primeira vez.[nota 7]

Desse modo, pela popularidade alcançada pelo Vasco da Gama, tornava-se difícil para a AMEA ignorá-lo em seus quadros. O time vascaíno levava grandes públicos onde quer que jogasse, e a associação necessitava de outras partidas como aquele Vasco x Flamengo.[10] Dessa forma, tornou-se inevitável a incorporação do Vasco a AMEA, o que de fato ocorreu em 1925, por influência de Carlito Rocha, dirigente do Botafogo, que alegou que a entidade não podia mais ignorar a importância do time vascaíno.[13] Com a inserção do Vasco o profissionalismo ganhou força, com o São Cristóvão vencendo o campeonato no ano seguinte, em 1926, com um time composto por jogadores de baixa renda.[14] No mesmo ano, no Campeonato Paulista, o Paulistano, insatisfeito com o profissionalismo que já se disseminava pelo torneio, fundou uma nova liga, a Liga dos Amadores de Futebol (LAF).<ref>{{citar web || url = http://www.campeoesdofutebol.com.br/historia_futebol_paulista.html || titulo = Campeões do Futebol: A História do Futebol Paulista || autor = Sidney Barbosa da Silva || data = 11 de setembro de 2008 || acessodata = 24 de julho de 2010}}</ref>

Notas

  1. Mais claro exemplo do fenômeno se encontra na chamada Lei do Amadorismo, regulamento da CBD de 1917 e que vigorou até a década de 30, com a competência de reger os esportes nacionais. Estabelecia em seus três primeiros artigos:
    Art. 1°. A Confederação considera amador todo aquele que se dedicar aos desportos, tendo em vista a sua educação physica e não lucros diretos ou indiretos.
    Art. 2°. A confederação não considera amadores:
    a) Os que obtenham dos exercícios de qualquer desporto proventos.
    (...)
    Art. 3°. Na realização de campeonatos nacionaes, as Ligas e Federações observarão rigorosamente as suas leis sobre amadorismo as quaes poderão exigir condições mais rigorosas das que acima são designadas." (Correio da Manhã, 06/02/1917, In. Botelho, André; 2006, p. 318)
  2. O profissionalismo oculto era praticado pelo menos desde 1915, segundo matéria de jornal carioca, que assim descrevia os artifícios para que os clubes escapassem das restrições legais ao profissionalismo: "(...) atraindo para seus quadros exímio jogador, que por achar-se desempregado, sem recurso e com dificuldade para colocar-se, ele, em troca de seus esforços, exige que lhe dêem uma módica quantia que especifica", enquanto que "os clubes lhe arranjavam um emprego qualquer (...) que só serve para constar, pois o ordenado estipulado sai, mas é dos cofres do club."("Football". O Imparcial, 1 de fevereiro de 1915. In. Pereira 2000, p. 310)
  3. O elenco vascaíno era composto por jogadores como Nelson Conceição (chofer de táxi) Ceci (pintor de paredes), Nicolino (estivador) e Bolão (motorista de caminhão), todos negros, e mais quatro brancos analfabetos. (Caldas, Waldenir. Pontapé Inicial: memória do futebol brasileiro 1894-1933. São Paulo: IMBRASA, 1990).
  4. A restrição referida tinha como base o art. 65 do regulamento da AMEA, que dispunha:
    "Art 65 - Não poderão, porém, ser inscriptos:
    (...)
    ITEM 9 - os que habitualmente não tenham profissão ou empregos certos"
  5. A Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro (FFERJ) só considera a existência de dois torneios em 1924, quando são considerados campeões Vasco (LMDT) e Fluminense (AMEA). (http://www.fferj.com.br/2009/Filiados/campeoes1divisao.pdf)
  6. O caráter revolucionário da resposta cruzmaltina pode ser conferido na nota publicada pelo jornal Correio da Manhã, em 1927, quando o time vascaíno viajou a Montevidéu: "O 'caso' do Vasco parece destinado a revolucionar de novo o nosso mundo sportivo, esse 'caso' da ida do Vasco a Montevidéo".(Correio da Manhã, 28 de abril de 1927. In. Santos 2006, p. 52)
  7. Conforme visto na matéria escrita pelo Correio da Manhã:
    "[A] partida [Vasco x Flamengo] que se anunciava a mais importante não apenas de ontem, mas de todo o campeonato, assumiu proporções de um vultuoso acontecimento que ultrapassou os limites do mundo esportivo, para interessar fora desse âmbito toda a cidade. Não há positivamente no Rio de Janeiro, de um fato ou de um match, que tenha desperto na multidão interesse tão vivo como esse de ontem. Não conhecemos francamente na história do futebol carioca, nem mesmos nos famosos jogos do sul-americano, uma competição que tivesse alcançado tão ruidoso sucesso. Não vai nenhum exagero nessa afirmação, e quem assistiu ao jogo pode atestar, como o fazemos, que nunca se viu um espetáculo inédito da multidão invadindo as imediações do campo, porque as arquibancadas não suportavam mais gente". (Correio da Manhã, 9 de julho de 1923. In. Da Silva 2006, p. 302-303)

Referências

  1. Dunning 1992, p.312
  2. Franzini 2003
  3. Correa 1933
  4. Filho 2003, pp. 84-89
  5. Carlos Napoleão 2006, p. 95
  6. Alexandre Mesquita (07 de abril de 2009). «Netvasco: OS 85 ANOS DA 'RESPOSTA HISTÓRICA'». Consultado em 22 de julho de 2010  Verifique data em: |data= (ajuda)
  7. Carlos Napoleão 2006, p. 101
  8. Filho 2003
  9. Branco 2006, p. 201
  10. a b Filho 2003, p. 141
  11. Da Silva 2006, p. 303
  12. Filho 2003, p. 124
  13. Carlos Napoleão 2006, p. 99
  14. Da Silva 2006, p. 292